
Muito conhecido por seus filmes, o italiano
Pier Paolo Pasolini foi também um intelectual de obra multifacetada. Participou
ativamente da vida pública, tentando conciliar três característicos
inarredáveis da sua personalidade: era cristão, marxista e homossexual
assumido. A conjugação desses fatores tornou-o uma figura controversa,
sobretudo na Itália fascista onde cresceu e viveu. É célebre a celeuma em que
se envolveu nos jornais da época, quando, acusado por Italo Calvino de
ingenuidade e saudosismo do mundo pré-burguês, escreveu a sua famosa “Carta
aberta a Italo Calvino”, onde rebateu as críticas às suas posições políticas e
estéticas, a sentenciar lindamente seu rechaço à crescente superfluidade do
consumismo no mundo. “Aqui fique claro que os bens supérfluos tornam supérflua
a vida”, escreveu Pasolini. (Ao leitor interessado nesse debate intelectual, a versão
integral da carta pode ser lida em: PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013. Prefazione di Alfonso
Berardinelli. Settima ristampa).
Contudo, além de cineasta, ativista político
e intelectual público, Pasolini foi também poeta de grande talento. Sua obra
inclui, por sinal, vários livros de poesia. Infelizmente quase todos eles ainda
carecem de tradução no Brasil. Assim, ao leitor brasileiro resta socorrer-se
das obras no original em italiano, a exigir obviamente o domínio do idioma, ou
das traduções publicadas em Portugal.
Abaixo, separei o poema “I primi che si amano”
(no original em italiano e na tradução para o português realizada por Rubens
Zárate) qual homenagem a esse grande intelectual italiano, cuja carreira cessou ante seu assassinato brutal no ano de 1975. O poema que destaco foi publicado no livro “Teorema”, de 1968, e revela a força
de versos que denunciam o hermetismo da arte inacessível – uma das polêmicas,
entre tantas outras, nas quais Pasolini meteu-se, a destacar a “vanguarda
histórica” dos anos sessenta do século XX e seu espírito libertador das "fotografie ingiallite" dos "poeti i pittori dela generazione precedente".
I primi che si amano
I primi che si amano
sono i poeti e i pittori della generazione precedente,
o dell'inizio del secolo; prendono
nel nostro animo il posto dei padri, restando,
però, giovani, come nelle loro fotografie ingiallite.
Poeti e pittori per cui l'essere borghesi non era
vergogna.
figli in vigogna e feltri...
o povere cravatte che sapevano di ribellione e di madre.
Poeti e pittori che sarebbero divenuti famosi
verso la metà del secolo,
con qualche amico sconosciuto di grande valore,
ma, forse per paura, disadatto alla poesia,
(poeta vero morto fuori dagli anni).
Selciati di Vienna o Viareggio! Lungofiumi
di Firenze o Parigi !
Fatti risuonare con quei piedi di figli
calzati di grosse scarpe.
La ventata della disobbedienza sa di ciclamino
sulle città ai piedi dei poeti giovani !
I poeti giovani che chiacchierano
dopo una vile bevuta di birra,
da borghesi, indipendenti,
— locomotive abbandonate ma ardenti
costrette per qualche tempo su tronchi ciechi,
a godersi la mancanza di fretta della gioventù :
certi di poter cambiare il marcio mondo
con quattro appassionate parole e un passo da rivoltosi.
Le madri come madri di uccelli
nelle piccole case borghesi
intrecciano il gelsomino dell'aria
col significato della luce privata di una famiglia,
e del suo posto in una nazione piena di feste.
Le notti, così, risuonano solo dei passi dei ragazzi.
La malinconia ha infinite tane
infinite come le stelle,
a Milano o in un'altra città,
da cui far alitare la sua aria di stufa accesa.
I marciapiedi scorrono lungo case del settecento,
scrostate case con sacrosanti destini
(strade di paese divenuto città industriale),
con un lontano odore romanico di stalle gelate.
È così che i poeti ragazzi fanno esperienza del vivere.
E hanno da dirsi quello che si dicono gli altri,
i ragazzi-non poeti (signori anche loro della vita
e dell'innocenza)
con madri che cantano
alle finestrelle dei cortili interni
(pozzi puzzolenti alle stelle non viste).
Dove si sono persi quei passi :
Non basta una severa paginetta di memorie,
no, non basta — forse il solo poeta non poeta,
o pittore non pittore,
morto prima o dopo una guerra, in qualche
città dei trasferimenti leggendari,
si tiene in sé quelle notti, con verità.
Ah, quei passi — dei figli
delle famiglie migliori della città (quelle
che seguono il destino della nazione
come un'orda di animali segue l'odore
— aloè, cannella, barbabietola, ciclamino —
nella sua migrazione) quei passi di poeti
con gli amici pittori, che battono i selciati,
parlando, parlando...
Ma se questo è lo schema, altra è la verità.
Riproduci, figlio, quei figli.
Abbi pure nostalgia di loro quando hai sedici anni.
Ma comincia subito a sapere
che nessuno ha fatto rivoluzioni prima di te;
che i poeti e i pittori vecchi o morti,
malgrado l'aria eroica di cui tu li aureoli,
ti sono inutili, non t'insegnano nulla.
Godi delle tue prime ingenue e testarde esperienze,
timido dinamitardo, padrone delle notti libere,
ma ricorda che tu sei qui solo per essere odiato,
per rovesciare e uccidere.
Os primeiros que se amam
Os primeiros que se amam
são os poetas e os artistas da geração anterior,
ou do início do século; eles ocupam
em nosso espírito o lugar do Pai, tornando-se,
no entanto, jovens como fotografias amareladas.
Poetas e artistas para os quais não havia
vergonha alguma em ser burguês.
Filhinhos de papai.
Roupas pobres com sabor de Rebelião e de Mãe.
Poetas e artistas que se tornariam famosos
lá pela metade do século,
ao lado de algum desconhecido amigo de grande talento,
mas impotente para a poesia, por covardia talvez
(os verdadeiros poetas morrem jovens).
Calçadas de Viareggio ou de Viena! Cais
de Florença ou de Paris!
Os fatos ecoando nos passos das crianças
que calçam botas pesadas.
Os ventos da desobediência têm perfume de cíclame
sobre as cidades aos pés dos poetas jovens.
Os poetas jovens que falam e falam
depois de alguns copos de cerveja,
independentes, livres como a pequena burguesia
– locomotiva abandonada, mas ardente,
por certo tempo obrigada a apreciar
a lentidão da juventude:
a firme certeza de mudar o mundo podre
com quatro palavras apaixonadas e um caminhar de
revoltosos.
As mães, como em ninhos
em seus pequenos lares burgueses,
bordam os jasmins das árias
com o sentido da luz privada da família
e seu lugar em um país repleto de festas.
As noites, então, ressoam apenas os passos dos filhos.
A melancolia tem infinitas tocas.
Tão infinitas como as estrelas
em Milão ou em outra cidade
onde se respira o ar dos aquecedores.
Pelas calçadas percorremos casas do século XVIII,
pinturas descascadas com sacrossanto destino
(as estradas da nação tornando-se uma civilização
industrial),
com um distante odor românico de estábulos gelados.
É assim que os rapazes poetas sofrem a experiência
da vida.
E têm de dizer o que dizem os outros,
os rapazes que não são poetas (senhores também da vida
e da inocência)
junto às mamães que cantarolam
nas janelas dos pátios
(fossas que fedem para as estrelas).
Onde perdemos esses passos:
não basta uma grave página de lembranças,
não, não basta – talvez o único poeta não seja poeta,
ou o único artista não seja artista,
talvez ele tenha morrido antes ou depois de uma guerra,
em qualquer
cidade durante legendária passagem,
as noites realizadas, com autenticidade.
Ah, esses passos – os filhos
das melhores famílias da cidade (aquelas
que seguem o destino da nação
como uma horda de animais seguindo cheiros
– dracena, canela, beterraba, cíclame –
em suas migrações) que passam a poetas
com seus amigos artistas, batendo as ruas,
falando e falando.
Mas se é esse o modelo, é outra a verdade.
Repete, filho meu, aquelas outras crianças.
Sente saudades delas em teus dezesseis anos.
Mas fica ciente desde já
de que ninguém antes de ti fez qualquer revolução;
que os poetas e artistas antigos ou mortos,
apesar dos ares heroicos de suas auréolas,
são inúteis e não te ensinam nada.
Goza tuas primeiras experiências ingênuas e teimosas,
tímido dinamitador, senhor das noites livres,
mas não te esqueças de que estás aqui apenas para ser
odiado,
para destruir e para matar.