sábado, 22 de março de 2014

A Igreja Universal do Reino do Rock



A Elayne encontrou o Adauto no corredor da repartição. Apesar de trabalharem em setores próximos, pouco se viam. A Elayne era muito reservada e quase nunca saía da sua sala.

Com o tempo, aqueles encontros “casuais” se tornaram mais frequentes. Já a Elayne ia a observar o Adauto com outros olhos. No início, julgava-o estranho, com os cabelos rareando na cabeça e a camisa de botão preta, sempre preta, como se tivesse comprado várias delas numa liquidação de shopping. Mas entre um olhar e outro, um copo d’água e outro na copa, trocavam umas palavras. Era quando ele sorria para ela com a boca grande, os dentes perfeitamente brancos. Elayne derretia-se. Logo se apaixonou.

O problema é que ela nada sabia sobre o Adauto. Ele nunca haviam conversado sobre coisas pessoais. Nem uma palavra sobre família, sobre onde morava, nem mesmo sobre o colégio em que estudaram na infância. Tudo o que Elayne sabia era que o Adauto tinha passado no concurso e vindo de outro Estado. Mas quando se viu apaixonada, preocupou-se. Afinal, quem seria aquele colega de trabalho tão misterioso?

Como a Elayne era uma mulher muito religiosa, do tipo que frequentava o culto todos os sábados, pagava dízimo ao pastor e lia salmos bíblicos antes de dormir, quis logo desvendar aquele que, segundo supunha, era o maior dos mistérios que o Adauto poderia esconder: a sua religião. “Se for católico, não namoro; vai dar problema em casa”, ela pensou. Mas seu maior medo era que ele, com aquelas roupas pretas, com aquele jeitão de roqueiro, fosse ateu. “Meu Deus, eu não posso namorar um ateu! A bíblia diz que o ímpio está condenado ao inferno! O que o pastor vai dizer? E as virtudes teologais?”

Mas Elayne tinha coragem. A coragem que só tem quem está apaixonado. Assim, mesmo aturdida por esse rodamoinho de pensamentos confusos, mesmo temerosa de que pudesse vir a decepcionar-se, estava decidida a esclarecer a dúvida. Gostasse ou não, ela precisava saber a religião do rapaz por quem se deixara enamorar.   

Naquele mesmo dia, como de costume, encontraram-se no corredor durante o horário de expediente.   

- Oi Adauto.

- Olá Elayne.

- Posso te fazer uma pergunta?

- Contanto que não envolva dinheiro, pode sim – ele brincou.

- É que estou com uma dúvida.

- Pois diga.

- Qual é a tua religião?

Ao ouvir a pergunta, Adauto vacilou. Coloco as mãos no queixo. Parecia pensativo por alguns instantes. Depois, como se tivesse tido uma ideia que o alegrou, pôs-se a responder:

- Minha religião é o rock n’ roll.

- Como?

- É isso mesmo que tu ouviste. Minha religião é o rock.

Elayne, que já desconfiava pelas roupas pretas que ele era roqueiro, não demonstrou grande surpresa. Na verdade, até ficou aliviada por saber que ele não era ateu. “Pelo menos ele tem religião”, ela pensou numa fração de segundos, a rir invisivelmente. Então, intuindo o tom zombeteiro da resposta, não se fez de rogada e emendou:

- Ah é? Tua religião é o rock? Hum. Interessante. Nunca tinha ouvido falar que rock fosse a religião de alguém. Mas então me dizes: a tua religião tem igreja?
 
- Temos sim, Elayne. É a Igreja Universal do Reino do Rock.
 
- Igreja Universal do Reino do Rock?
 
- Isso mesmo.
 
- E o que se faz na Igreja Universal do Reino do Rock? 

- Exorcismo. Fazemos exorcismo.

Ela esbugalhou os olhos. Exorcismo?

Adauto, ao perceber a expressão de incredulidade de Elayne, continuou.     

- Olha, Elayne, na Igreja Universal do Reino do Rock, é tudo muito simples. Não existem princípios religiosos nem tábua com os dez mandamentos. Também não tem código canônico nem hierarquia eclesiástica. E com certeza ninguém paga dízimo ou guarda os sábados - ele riu sozinho. - E vou logo te adiantando que não faço a mínima ideia se existe algo parecido com as tais “virtudes teologais” de que tu sempre falas. Tudo o que fazemos nessa igreja é exorcizar o demônio do corpo.

Ela riu.

- E que demônios são esses que vocês, da Igreja Universal do Reino do Rock, exorcizam? – Elayne perguntou sorridente, a enfatizar propositalmente o nome do templo.

- Depende. Tem muitos demônios, dos mais variados tipos. Alguns são mais fortes. Outros mais fracos. No passado, tínhamos “É o Tchan”, “Companhia do Pagode”, “Terra Samba”, “Harmonia do Samba”, Art Popular com “O Pimpolho”, “As Meninas” com “Xibom bombom”, Grupo Molejo com sua “Dança da Vassoura”, Só Pra Contrariar, Katinguelê, Negritude Junior, Os Travessos, “Babado Novo”, “Tiazinha e Vinny”, “P. O. Box” com “Papo de Jacaré”, Luka com “Tô nem aí” e vai embora. Eram demônios que se incorporavam com facilidade ao corpo de uma grande parcela da juventude brasileira, especialmente nos anos 90. Quase sempre eram demônios enviados por uma entidade maior e mais poderosa: o Exu de Axé – nosso maior inimigo e "rei dos abadás", "senhor todo-poderoso das micaretas". Felizmente hoje já exorcizamos todos esses demônios na Igreja.

- Amém.      

- Calma. É cedo para comemorar. Ainda temos muito trabalho pela frente. O Exu de Axé continua forte. Existem ameaças do passado que ainda estão por aí infernizando os corpos e ouvidos humanos, como Chiclete com Banana, Asa de Águia e o cantor Latino. Além disso, o Exu de Axé, que não é bobo, quando se tocou que estava perdendo força graças ao pessoal da nossa igreja, tratou logo de reagir. Matou alguns de nossos santos, como o Raul Seixas, o Renato Russo, o Cazuza, a Cássia Eller. Depois ainda foi se aliar a uma entidade demoníaca mais poderosa, chamada “Pomba Gira dos Monossílabos”, que tem como principal avatar o demônio “Tranca-Rua da Palavra”.

- Hum. Não é que é interessante? Continua.

- Pois bem – disse ele, enquanto se posicionava junto ao bebedouro para pegar um copo d’água. - O demônio "Tranca-Rua da Palavra" afeta a parte cognitiva do cérebro humano e impede a pessoa de conjugar verbos ou cantar palavras que tenham mais de uma sílaba. Foi graças ao "Tranca-Rua da Palavra", filho da "Pomba Gira dos Monossílabos", que surgiu o “sertanejo universitário”. Hoje é possível ver muitos jovens brasileiros possuídos por essa nova ameaça. Basta olhar a plateia de shows de duplas como Munhoz & Mariano, Guilherme & Santiago, Jorge & Mateus, além de Luan Santana, o seu genérico Gusttavo Lima, até a Paula Fernandes! Ali está todo mundo endemoninhado.

- Sabias que eu nunca tinha pensado nisso – confessou Elayne, surpresa com a própria confissão.

- Muitas pessoas ignoram isso. É normal. As entidades estão todas aí, firmes e fortes, cada vez mais. Pra piorar, de vez em quando novos demônios surgem. É o caso da Anitta e a feitiçaria do “show das poderosas”. E no carnaval todo mundo viu o que o “Lepo, Lepo”, do Psirico, o popular demônio da histrionice, foi capaz de fazer com o corpo das pessoas. Que vergonha ver alguém dançando daquela maneira! Aquela coreografia ridícula! Só estando possuído!

Adauto tomou seu copo d’água. Fez uma pausa. Refletiu um pouco. Finalmente prosseguiu com um ar frustrado.

- Mas é pena, Elayne, que nossa maior inimiga ainda não conseguimos derrotar.

- Quem é?

- A “Rainha Zumbi”.

- “Rainha Zumbi?”, repetiu Elayne já um pouco assustada.

- Sim. Ela é conhecida pela maioria das pessoas como Ivete Sangalo. Mas a verdade é que se trata de um demônio raro, dono de uma habilidade poderosíssima, que é a de hipnotizar os ouvidos. Quase a conseguimos eliminar na época da Banda Eva, mas ela é muito forte e escapou para fazer carreira solo. Aí a coisa piorou de vez. Com o apoio do governo e da Globo, ela se tornou a cantora mais famosa do País. Está em todo lugar. De trilha sonora de novela a festa agropecuária, de micareta de carnaval a especial de fim de ano do Roberto Carlos, só dá ela. Uma praga pros ouvidos! O demônio Ivete Sangalo é o responsável por possuir o corpo de milhares de brasileiros com aberrações auditivas como "Levada Louca", “Poeira”, “Carro Velho”, "Acelera Aê", "Qui Belê" e “Pomba Suja”. Ela não nos deixa em paz! E ainda invocou uma entidade irmã-genérica: Cláudia Leitte, que canta coisas como “Largadinho", "Me Pega de Jeito", "Pancadão Frenético", "Claudinha Bagunceira", "Reboladinha", "Dia da Farra e do Beijo" e "Segura na Corda do Caranguejo”. Sinto tanta pena do caranguejo. Lá no seu manguezal ele não faz ideia da humilhação por que passa.

- E não é, Adauto? - ela concordou, a rir timidamente, enquanto se deixava apaixonar mais e mais pelo moço.

- Mas na igreja ninguém perde a esperança, Elayne. Estamos trabalhando duro pra exorcizar o corpo dos fiéis dessas ameaças. Porque só alguém possuído pelo demônio pra tolerar músicas tão ruins, feita por gente semianalfabeta e que seria reprovada facilmente em qualquer teste básico de musicalização em um conservatório. Felizmente, não há demônio que o som dum riff de guitarra não possa exorcizar!
 
– Amém! 
 
E, em tom bastante entusiasmado, Adauto completou:
 
- Só o rock salva!

- Só o rock salva!

- Amém!

- Amém!

No dia seguinte, Elayne e Adauto saíram juntos pela primeira vez. Anos depois eles se casariam numa cerimônia inesquecível na Igreja Universal do Reino do Rock. Com muitos riffs de guitarra, é claro.  
 

terça-feira, 18 de março de 2014

O HABITANTE SOLITÁRIO DE UMA TERRA DE NINGUÉM: ou a apologia de Masha Marshon contra a sociedade de baixo nível cultural


Foi ano passado que, caminhando pela vizinhança do conjunto residencial onde moro, flagrei crianças a ser instruídas por suas genitoras e cuidadoras a cantar. A intenção é nobre, pois, quanto mais precoce for a iniciação do infante na educação artística, tanto maiores as chances de ele vir a se tornar um verdadeiro artista (ou, pelo menos, um adulto com bom gosto para arte, que se recusa a aceitar qualquer porcaria que lhe vendem sem o mínimo de qualidade). Seria uma cena prosaica, portanto, não fosse o fato de que as crianças eram "educadas" ao aprendizado do funk "Piradinha" (que eu soube depois ser tema de novela global). "Como um pai ou mãe é capaz de ensinar ao filho o 'kitsch' sem nenhum pudor?", refleti tristemente. "Na minha infância", recordei-me, "eu cantava 'Aquarela' do Toquinho, 'A Casa' de Vinícius de Moraes". Em que ponto da história a inteligência brasileira morreu? Em que momento da nossa sociedade o baixo nível cultural alastrou-se mais que a peste bubônica pela Europa Medieval?
 
Foi tomado por essas reflexões, incontornavelmente acabrunhado por uma sombra dostoievskiana, espécie de mau agouro de quem muita vez se sente sozinho lutando contra a mediocridade imperante no campo da cultura, que tornei a casa. Estava triste. Ver pais supliciarem os próprios filhos com cousas do tipo de "Piradinha" não é fácil. É uma tortura psicológica das mais covardes, que ataca justamente aqueles que, não tendo o necessário discernimento para distinguir o "kitsch" da arte, caem na armadilha da vulgaridade e pobreza cultural. Tanto pior ser uma criança hoje. É possível mesmo que esses pais cruéis filmem seus rebentos a dançar coreografias constrangedoras, embalados por músicas cujos compositores seriam reprovados em um teste de musicalização em qualquer conservatório sério do mundo. Tudo filmado e documentado para a história em vídeos caseiros compartilhados no Youtube. Dá-me pena dos intelectuais do futuro. Alguns deles terão de conviver com um passado sombrio de superexposição em redes sociais. Alguns deles estarão condenados à humilhação pública perpétua que atende pelo nome engraçado de Google.
 
Eis que me ponho a pensar: que futuro tem uma criança educada num seio familiar assim, isto é, instigada a cantar "Piradinha", "Beijinho no Ombro" e composições vulgares desse nível? Daí surge o papel da escola, que hoje, mais do que nunca, precisa substituir os próprios pais na tarefa hercúlea de proporcionar às crianças o acesso à cultura. Sim, pois quem quiser formar sua bagagem "cultural" pela TV aberta está inevitavelmente condenado a participar do BBB em algum momento da vida adulta e se "eternizar" pateticamente em 15 minutos de fama (uma fama desprezível, a propósito). Preocupa-me pensar que nossa sociedade naturaliza a ofensa aos ouvidos de uma criança, como se ouvir "Piradinha", "Beijinho no Ombro" etc. não causasse dano cerebral num infans. Mas sobretudo me entristece saber que, no futuro, pessoas que apreciam a música erudita continuarão a ser minoria, vistos como "elitistas", "boçais", "preconceituosos", entre outros adjetivos que são comumente atribuídos àqueles que ousam resistir à vulgaridade de uma sociedade mediocrizada, que tem como "modelos de sucesso" panicats e atores globais baladeiros. Uma sociedade em que as pessoas pagam milhares de reais por um abadá, a fim de ver um trio elétrico passar com um sujeito cantando "Lepo, Lepo", mas que não se envergonha de nunca ter frequentado uma sala de concerto na vida. Que cultura é essa? Que sociedade é essa? Não sem razão o crítico literário Luiz Costa Lima já se definiu em entrevista como "o habitante solitário de uma terra de ninguém".
 
Curiosamente, as pessoas que tacham os amantes da cultura erudita de "preconceituosos", dado o fato de estes não se conformarem com a miséria cultural humana, são as mesmas que habitualmente escrevem críticas ao meu trabalho. A censura, obviamente, repete o discurso estereotípico: sou preconceituoso, sou elitista. E, no entanto, onde está o elitismo da música erudita? Vai-se falar em "elitismo" no Brasil, onde tal estilo só sobrevive à custa do patrocínio do Estado? Lamento dizer, mas já perdi a conta de quantos concertos gratuitos assisti com a sala esvaziada. Onde está o público? Simples: está a pagar milhares de reais num abadá de carnaval ou enfurnado numa casa de shows, a ver uma dupla sertaneja "universitária" cantar refrães "ricos" em monossílabos ininteligíveis. Não há problema nisso, reafirmo. O mau gosto (e o mau emprego do dinheiro) vai de cada um. Mas não é aceitável que tais pessoas venham a público invocar o qualificativo de "arte" para o lixo que consomem, acusando de "preconceituoso" quem simplesmente sabe diferenciar, dentro da Filosofia, os campos da democracia e da estética. É democrático deixar que todos toquem e cantem e ouçam o que quiserem. Isso é política. Mas aceitar que a palavra "artista" pode ser usada para designar indistintamente Heitor Villa-Lobos e Valesca Popozuda é um descalabro. Isso é estética. E é a este último campo que dedico minhas pesquisas e ensaios.   
 
Pois bem. Aos meus críticos, sinto dizer, mas hei de continuar a arrostar a mediocridade. Tal enfrentamento é a missão precípua do crítico de cultura (seja literário, musical, de cinema etc.). Um crítico que sucumbir ao kitsch, tratando-o com condescendência, frauda a confiança do seu público leitor. E um crítico precisa ter coragem. A mesma coragem de que se valeu o poeta austríaco Georg Trakl ao versificar os traumas de guerra no poema em prosa "Verwandlung des Bösen" ("Metamorfose do Mal"), o seu genial tour de force poético que é homenageado no título deste blogue. Porque no dia em que qualquer porcaria que alguém fizer puder receber o selo de "arte", sob o argumento pálido de que "gosto não se discute", então não só se terá esvaziado o papel da crítica (o que significa desprezar toda a obra de Otto Maria Carpeaux, George Steiner, Edmund Wilson, Harold Bloom, Álvaro Lins, Alfredo Bosi, Antônio Cândido, Pauline Kael, Susan Sontag, Paulo Ronái, Benedito Nunes, Jorge Luis Borges, D. H. Lawrence, Ernesto Sábato, Truman Capote, Alex Ross etc) como ainda a inteligência humana, tal qual a conhecemos, terá regredido, quiçá desaparecido. Voltaremos às cavernas! Ecce Homo! O homem de neandertal! 
 
Apesar disso, não faço gosto do tom derrotista. Um crítico (no limite também um filósofo) não se pode deixar abater, não obstante a solidão do seu ofício. A despeito desses maus exemplos da minha vizinhança (e olhem que moro num conjunto cujos habitantes estão muito longe de pessoas que se poderia alegar não terem tido oportunidade de acesso à cultura por falta de recursos financeiros; antes o contrário, há algumas pessoas até bastante abastadas), acredito que ainda há esperança no mundo. Existem crianças que, vocacionadas para a arte, podem produzir maravilhas, contanto que sejam instruídas de maneira adequada na sua educação artística. São crianças capazes de protagonizar momentos extáticos de beleza. É o caso da jovem violinista israelense Masha Marshon, que, com apenas 11 anos de idade, surpreendeu o mundo (ou, pelo menos, quem acompanha o cenário erudito no mundo) ao entregar uma belíssima interpretação de "Méditation de Thaïs", interlúdio que integra a ópera "Thaïs", escrita em três atos pelo francês Jules Massenet no século XIX. Compartilho, dessa feita, esse sublime momento de um talento infantil promissor. E que o exemplo de Marsha Marshon seja seguido. Vê-la tocar dessa maneira é o que me dá a esperança de um novo amanhã - o póstero onde o belo substituirá a fealdade e os amantes da cultura erudita não mais se sentirão sozinhos num barco a singrar um mar sangrento e ameaçador de vulgaridade, mediocridade e, para falar com estes nossos tempos internéticos, de "veneno digital".
 
Viva o talento de Masha Marshon!