sexta-feira, 24 de abril de 2015

Uma noite de concerto com Johann Sebastian Bach


Sempre me pergunto o que seria da minha vida se não tivesse sido inventada a internet. Decerto seria uma vida menos feliz. Talvez nem pudesse chamar de "vida". Talvez só pudesse chamar de existência terrena maquinal, de gesto irrefletido, de acaso desapercebido de sentido ao comum dos mortais impossibilitado de compreender-lhe a essência. Sim, pois nasci num País onde sabidamente a cultura erudita é pouco valorizada - a cultura erudita que me faz tão feliz. Sejamos sinceros: quantos pais levam seus filhos às salas de concertos? Agora quantos levam seus filhos religiosamente aos estádios de futebol e aos sambódromos? É sintoma do desprezo inda notar que, nos cadernos brasileiros de jornalismo cultural, há uma quase total invisibilidade da agenda das grandes orquestras que excursionam pelo Brasil. Isso não é um um problema para a maioria das pessoas. Mas, para mim, é quase uma sentença de morte, pois, repito, é a cultura erudita  que me faz feliz.

           Ter acesso à cultura erudita, no Brasil, não é uma mera questão de gosto. É preciso ter a vocação inata que conduzirá a disposição do espírito nobre ao estudo. É preciso não ter medo de dialogar com o pensamento complexo dos filósofos. É preciso escavar bibliotecas em busca da leitura dos grandes literatos e pensadores clássicos. É preciso ter discernimento crítico para avaliar a estética da arte, não se deixando submeter ao que é apresentado sob o rótulo de "cool", de "curtição", de "barato do público jovem". É preciso, sobretudo, vencer o padrão do relativismo estabelecido, que considera aceitável qualquer porcaria como arte, contanto que envernizada pelos rótulos de "cultura pop", "cultura nerd/hipster", "cultura popular". É indispensável não se sujeitar, subserviente, à influência dos programas de TV, das revistas e dos jornais, da indústria do cinema (não levar a sério o Oscar). É imperioso resistir até mesmo às escolas, ante a suprema contradição de professores que subestimam cada vez mais a inteligência de alunos cada vez mais mentalmente preguiçosos (na era da "Geração Harry Potter", quem lê os grandes clássicos da tragédia grega  hoje em dia?). Só assim o jovem que ambicione a erudição dos doutos poderá sobreviver, em tudo animado por um senso estético singular, porquanto infinitamente mais rigoroso.   

Por isso, no Brasil, o jovem aspirante à erudito vive jogado aos leões da mediocridade humana, isolado por uma sociedade que naturalizou o estereótipo do "jovem imbecilizado, irresponsável e indisciplinado". Vê seus contemporâneos aderirem ao mote do carpe diem da maneira mais cretina possível, já que quem o esposa não conhece a obra do poeta romano Horácio e, quando muito, colheu seu fundamento no filme "Sociedade dos Poetas Mortos". Logo, para atravessar este "mar de lama humano",  só resta ao jovem erudito confiar numa rara e extraordinária sensibilidade do seu espírito altaneiro. Nesse sentido, a internet pode ajudar. Mas é necessário saber o que se busca. Proceder a uma espécie de "garimpo do ouro no meio dos tolos da cultura". Assim, o "garimpeiro" deve procurar referências de cultura erudita. Não é empresa das mais fáceis. No rodamoinho do besteirol em que se converteu a internet atualmente, é preciso um mínimo de juízo crítico, sob pena de naufragar, ou morrer envenenado com mercúrio.

           Ciente disso, desafiei-me  a pôr os pés nesse garimpo; raro é surpreender-me. Mas, quando tal acontece, faz valer a pena toda a paciente garimpagem. 

Alegre como um infante deslumbrado. Pois foi assim que me senti ao deparar-me no Youtube com um breve videoclipe. Nele se vê uma linda reconstituição histórica do período em que viveu Johann Sebastian Bach. O compositor alemão aparece em cena de cenho franzido, a reger uma orquestra barroca (as orquestras barrocas tinham uma composição menor que as atuais orquestras, daí o número reduzido de músicos).

Sentado junto ao órgão da igreja, Bach está diante do que aparenta ser a tentativa de um ardil. Um pequeno corista põe-se a cantar nas baias da orquestra. Por detrás da pasta com a partitura, homizia-se uma linda mulher. É ela quem sustenta o engodo. O garoto finge cantar, escorando-se naquelas notas maravilhosas que a jovem homiziada alcança com doçura. Mas a ardileza não sobrevive muito. Para o azar do peralta, era impossível ludibriar o ouvido apuradíssimo do regente - nada menos que Johann Sebastian Bach. Eis o homem da música! Eis o robusto senhor, afamado em seu tempo como organista virtuoso, para o qual a história reservaria ulteriormente – com toda a justiça – o nobilíssimo epíteto de “maior músico de todos os tempos”.

A mezzo-soprano tcheca Magdalena Kožená
 
O videoclipe é uma construção ficcional, sei-o bem. Ele foi produzido em 1997, com o propósito de funcionar como propaganda na TV da República Tcheca, a aproveitar o azo de lançamento do álbum “Johann Sebastian Bach: Arias”. O disco fora gravado à época pela mezzo-soprano tcheca Magdalena Kožená com a participação da Musica Florea, renomeada orquestra da República Tcheca, especializada em música barroca. É a própria Kožená quem aparece a cantar e a interpretar no vídeo, ainda muito jovem, iniciando sua carreira como cantora lírica. Ela é a loira de linda voz que, ao interpretar a “Aria (alto): Kommt, ihr angefochten Sünder”, da cantata “Freue dich, erlöste Schar” (BWV 30), cai nas graças do maestro Bach.  

Apesar de se tratar duma ficção, o videoclipe nem por isso deixa de ser emocionante. Para aqueles que, como eu, cresceram amando a música barroca como parte quintessencial de suas vidas, é verdadeiramente entusiasmante imaginar como teria sido ouvir Bach – ele próprio – a tocar e reger. Assim, a ficção torna-se crível à luz da pura emoção, à medida da semelhança impressionante do ator com as imagens conhecidas do rosto do compositor alemão. Qual de nós afinal poderá dizer que aquela cena não ocorreu mesmo?

A história registra que Bach foi um pai amado pelos seus filhos e devoto dedicado à Igreja Protestante (nas suas cantatas, ele usou a tradução que Martinho Lutero fez da bíblia em latim para o idioma germânico). É conhecido também o seu temperamento forte. Dono de uma inteligência musical sem par, Bach foi um maestro rigoroso e professor exigente. Há registros de episódios em que ele se indispôs com a nobiliarquia que o empregava na Alemanha, caso do duque de Weimar, que o irritou ao obrigá-lo a trabalhar com músicos de baixa qualidade. Se Bach criticava os músicos do seu tempo na corte, imaginemos o que pensaria se ouvisse aquilo que hoje chamamos de “cantores”, de "instrumentistas", de “compositores”, de "gênios" e "divas" na música pop? O que ele diria então se soubesse que são justamente esses os “artistas” mais idolatrados? Que reação teria se soubesse que esses "artistas" são menos conhecidos por sua "arte" que pelos muitos escândalos sexuais que protagonizam em suas vidas sociais tresloucadas e carentes de superexposição? Tenho para mim, com a mais absoluta certeza, que o mestre alemão lamentar-se-ia. Feliz dele que não teve de testemunhar tamanha decepção. Bach era um verdadeiro artista - na acepção mais legítima que o substantivo encontra na obra dos dicionaristas. E se reclamava junto aos seus empregadores, aborrecido com músicos displicentes e de nível técnico sofrível, era porque, como todo grande gênio da música erudita, Bach não se contentava com nada menos que a perfeição em sua obra. O verdadeiro artista respeita o seu público e faz o seu melhor. O verdadeiro artista sabe que arte é coisa séria.   

O único defeito do vídeo é ser curto demais. Fato só relevado pela belíssima ária da cantata que a jovem Magdalena Kožená interpreta com expressividade encantadora. E, claro, pela maravilhosa chance de permitir aos amantes da música erudita imaginar como teria sido estar ali, numa igreja em Leipzig, numa noite qualquer do ano, num simples ensaio para um concerto, diante dele, o “pai artístico de todos nós”, o homem que Mozart e Beethoven apelidaram  de “o pai da harmonia”, o grande e inigualável Johann Sebastian Bach.       
 
 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Einstein vira Flesch e grava Mozart: o curioso "hoax" de música erudita na internet


Hoje uma das poucas pessoas que me são próximas nesta vida, sabedora da minha paixão pela música erudita como pela ciência, enviou-me, via aplicativo para telemóvel denominado “whatsapp”, o link para um vídeo musical no Youtube. A pessoa dizia-se maravilhada; apontava que eu haveria de maravilhar-me com aquilo também.

Intrigado, pus-me a investigar.

Acesso o link. Ponho-me diante da suposta maravilha: o registro sonoro daquela que seria a única gravação conhecida de Albert Einstein enquanto violinista. Ouço-a. Estou atento aos detalhes da execução. Deixo-me surpreender provisoriamente pela sua notável qualidade. Malgrado o som deficiente, prejudicado por certo pela baixa qualidade da gravação, tenho consciência de que ali está um violinista de talento indiscutível. Seria mesmo Albert Einstein?

A resposta é não. Dizê-lo custou-me mais que perceber a farsa. Ao assistir ao vídeo, deu-me pena da pessoa que mo enviou. Ela o fez de boa-fé. Decerto supôs que sou um cultor da música erudita (suposição correta) e que, assim agindo, impressionar-me-ia de maneira positiva. Não funcionou. Após ouvir a gravação, notei tratar-se de mais um embuste. Ou, para usar do conhecido jargão da internet, um hoax.

Albert Einstein empunha seu violino.
 
É notória a ligação de Albert Einstein com a música. Nascido na Alemanha, país onde a educação musical é acessível e a música erudita é valorizada como patrimônio cultural do povo germânico (quem já teve o privilégio de frequentar o circuito erudito da Alemanha sabe do que estou a falar), o físico alemão teve aulas de violino. É sabido que tocava o instrumento. No entanto, não há registro de que tenha deixado gravação conhecida. Nem poderia fazê-lo, pois ele próprio se considerava um mero "músico amador", e os contemporâneos que o viram tocar apontavam-no como um violinista claudicante, de nível técnico medíocre. Por isso, tornou-se fácil intuicionar que o vídeo do Youtube é falso.

Na verdade, qualquer ouvinte experiente de música erudita perceberia que, dado o apuro técnico com que a peça foi executada, o seu registro jamais poderia ser creditado a um músico amador. A gravação do “Andantino sostenuto e cantabile”, segundo andamento da Sonata em Si bemol maior (K. 378), de W. A. Mozart, esbanja técnica. Percebe-se o domínio seguro do arco na inflexão das notas na escala. Há cor e sentimento. Numa palavra: só poderia ser mesmo obra de músico profissional! E dos bons!


O violinista húngaro Carl Flesch (1873-1944).
Aqui cabe um parêntese: quando eu falo de “profissionalismo” em sede de música erudita, o referencial do qual me valho não é o juízo vulgar, comumente associado à ideia do sujeito que “vive de música”. Esta é uma acepção corrente na música popular, sobretudo na música pop, cujo nível de qualidade é quase sempre baixíssimo, a engendrar um terreno fértil para o artista picaresco, que, se apresenta o domínio de meia dúzia de acordes do dicionário básico, logo passa a ser idolatrado pelo fã idiotizado, sem pudores em tachar de “gênio da música” o ídolo de fim de semana, cuja obra musical dura, o mais das vezes, uma temporada – ou, como se quer no Brasil, o “período do carnaval”. À parte a patifaria da arte popularesca, a música erudita erige o patamar de profissionalismo a um grau de excelência; com efeito, pressupõe-se alguém que dedicou toda sua vida aos estudos musicais. Só assim é possível atingir o nível técnico elevadíssimo que está na raiz daquilo que se pode considerar um “músico erudito profissional”.

Sendo assim, diante da gravação atribuída a Einstein no Youtube, outra não poderia ser minha reação que não fosse a do sobressalto perante a ingenuidade do ouvinte comum. Eis a sensação imediata que tive. Em seguida, impulsionado pelo hoax faceto, flagrei-me a matutar: “Se Einstein tivesse sido capaz de tocar violino nesse nível técnico, ele não só não teria desenvolvido a Teoria da Relatividade, pilar da Física Moderna, como sequer teria se tornado cientista. Tivesse Einstein tanto talento musical, o mais provável é que se tivesse tornado violinista e seguido carreira na música como concertista”. Na verdade, a gravação pertence ao célebre violinista Carl Flesch (1873-1944), renomeado professor húngaro pelo sistema de estudo de escalas que desenvolveu, e foi resgatada pelo selo britânico "Symposium Records", quando do lançamento das suas "Historical Recordings". As gravações de Flesch são datadas de 1905 a 1936.


 
Então fica a sugestão, meu caro leitor: da próxima vez que alguém lhe apontar tal ou qual registro sonoro, atribuindo-a a algum personagem famoso da história, cumpre ter cautela, para não se decepcionar. Mais cautela ainda se se tratar de música erudita, que, no nosso mundo de majoritário baixo nível cultural, é arte para poucos ouvidos exigentes e para muito poucos musicistas executarem a contento.     

Superado esse infortúnio, ao menos posso dizer que a gravação sugerida me permitiu ouvir boa música pelo telemóvel. A sonata para violino em Si bemol maior, de Mozart, é linda, em que pese não tenha sido o cientista Albert Einstein quem a gravou. Acrescento que não deixa de ser curioso – e isto é o mais divertido – saber que alguém deu-se ao trabalho de criar, em meio a tantas estupidezes na forma de hoax que se espalham pela internet, um embuste dedicado à música erudita e a um personagem conhecido do mundo científico. Infelizmente, é uma fraude que sucumbe com facilidade diante dos ouvidos apurados dum ouvinte erudito mais experiente.