domingo, 25 de agosto de 2013

NOVELA "AMOR À VIDA": um genuíno dramalhão mexicano "made in Brazil" na carreira de Walcyr Carrasco

 
OBS: O texto abaixo foi publicado também na Bula, revista dedicada ao jornalismo cultural da qual sou colaborador. Eis o link para quem quiser ler o texto tal como apresentado na revista:
http://www.revistabula.com/810-a-novela-amor-a-vida/

- E como você, Ninho, fará para reconquistar o amor da Paloma?
- Vou sequestrar a nossa filha e levá-la para o Peru.
A Paloma vai achar maneiro. 
Ninho, um dos heróis românticos de "Amor à Vida" (2013).
 
Walcyr Carrasco começou sua carreira de autor de telenovelas no SBT com Cortina de Vidro (1989). Mas foi com Xica da Silva (1996), escrita para a TV Manchete sob o pseudônimo de Adamo Rangel, que experimentou seu primeiro êxito na carreira. A novela narrava as aventuras de uma escrava negra que, ao casar com um homem rico da sociedade escravagista brasileira, tinha de enfrentar o preconceito da elite daquele tempo. O ritmo ágil da trama, beneficiada pela ótima atuação da novata Taís Araújo, conquistou os telespectadores. Xica da Silva tornou-se um grande sucesso. Anos depois, após mais uma bem sucedida novela no SBT (Fascinação, de 1998), Walcyr Carrasco foi contratado pela Globo.  

Na maior emissora do País, Carrasco estreou com O Cravo e a Rosa (2000). A telenovela, cujo enredo havia sido livremente inspirado na clássica comédia A Megera Domada (The Tamming of The Shrew), de William Shakespeare, obteve enorme audiência na faixa das seis. Com isso, Carrasco escreveu outras novelas de época para o mesmo horário, como Chocolate com Pimenta (2003), igualmente bem sucedida. Sentiu então o gosto amargo do fracasso com Sete Pecados (2007), já na faixa das sete. Recuperou-se depois com Caras & Bocas (2009), mas patinou na audiência com Morde & Assopra (2011). Por fim, obteve relativo sucesso com o remake de Gabriela (2012) na novíssima faixa de "novelas das onze" da Rede Globo, apesar de praticamente ter cortado do roteiro a crítica salutar ao coronelismo e ao machismo baianos, marca indelével do romance de Jorge Amado, além de ter permitido que a dupla de diretores Mauro Mendonça Filho e Roberto Talma escalasse Juliana Paes para o papel principal - uma atriz tão ruim que sua maior contribuição para a teledramaturgia nacional até hoje foi ter sido capa da Playboy.    

Eis um breve resumo da trajetória de Walcyr Carrasco antes que, finalmente, fosse guindado ao cobiçadíssimo posto de autor de novelas da faixa das nove - o mais nobre dos horários da grade de programação da Rede Globo. Para que o leitor tenha uma ideia, ser admitido a integrar a faixa das nove equivale, no mundo da teledramaturgia global, ao lutador de boxe que é chamado a disputar o título mundial dos pesos pesados: aí o soco bate mais forte, mas o cinturão vale muito mais (em termos de dinheiro, poder e prestígio). Estar na faixa das nove significa estar no topo da categoria dos teledramaturgos brasileiros - e em 2013 Walcyr Carrasco foi chamado a subir ao ringue.   

De boas intenções o inferno está cheio

O escritor Walcyr Carrasco faz sua estreia na faixa das nove da Rede Globo
com a novela "Amor à Vida".

Carrasco assumiu a missão de substituir Manoel Carlos - o mais medíocre dos autores de telenovelas da Globo, com suas tramas chatíssimas, com suas crônicas de tédio infinito dos super-ricos, com suas "Helenas" idealizadas como o pretenso arquétipo da "mulher brasileira", mas que, no fim das contas, não passam de representação modorrenta da perua carioca que só sai do Leblon quando viaja para Nova Iorque.  A substituição de Manoel Carlos por Walcyr Carrasco poderia significar uma injeção de vitalidade na faixa das nove. Afinal, depois do extremo sucesso de Avenida Brasil (2012), de João Emanuel Carneiro, a Rede Globo amargou, com Salve Jorge (2013), de Glória Perez, um dos piores fracassos da sua história. Definitivamente a tresloucada mistura de traficantes de mulheres com turcos falantes de português e militares adúlteros praticantes de hipismo não agradou ao público. Mesmo os telespectadores de novelas globais, sabidamente pouco exigentes do ponto de vista intelectual, percebiam com facilidade os erros grosseiros dum enredo que, de tão estapafúrdio, só poderia ter sido escrito por uma Glória Perez embriagada (de álcool ou de arrogância, tanto faz). Resultado: Salve Jorge teve o pior índice de audiência da história e amargou o merecido fiasco ("Mashallah!"). Assim, foi cercado das melhores expectativas, e inspirado pelas melhores intenções, que Carrasco anunciou a telenovela Amor à Vida (2013) - sua estreia no ringue dos pesos pesados da teledramaturgia nacional.   

Contudo, de boas intenções o inferno está cheio, já reza o velho ditado. E com Amor à Vida não é diferente. Seu enredo é uma costura de vontade (de retomar o caminho do sucesso da Globo) com clichês patéticos e total falta de senso crítico. E o que estamos a ver na tela é a gênese de um legítimo dramalhão mexicano - do pior quilate, por sinal.  

O mochileiro e a patricinha

A princesa e o plebeu, a bela e a fera: em Amor à Vida, Ninho e Paloma apaixonam-se perdidamente.
Eles formam um casal que combina perfeitamente.
 

Senão vejamos: Amor à Vida, como acontece em todas as novelas, parte do surrado clichê da paixão arrebatadora como fio condutor da trama. Paloma (Paolla Oliveira) é filha de um riquíssimo casal da alta sociedade paulistana. Seus Pais César (Antônio Fagundes) e Pilar (Susana Vieira) são médicos bem sucedidos, proprietários do "San Magno", conceituado hospital particular (obviamente particular, porque no Brasil os hospitais do SUS só servem como locação para filmes de terror). Paloma tem um irmão mais velho, o ambicioso Félix (Mateus Solano), que pretende assumir a direção do hospital. Mesmo a caçula tendo acabado de ingressar na faculdade de medicina, e sem demonstrar o menor interesse na administração hospitalar (como toda boa heroína romântica, ela preocupa-se mais em viver um grande amor que investir na sua carreira profissional), Félix é louco o suficiente para desejar destruí-la a qualquer custo. Ambos são filhos e herdeiros necessários do patrimônio milionário. Mas Félix não quer saber: ele precisa destruí-la e evitar a todo custo que Paloma assuma a direção do hospital. Repito: mesmo que ela não tenha demonstrado nenhum interesse nisso. Agressão preventiva-fratricida: eis aí uma motivação absolutamente plausível para um vilão convincente.   

Certo lindo dia, para comemorar sua aprovação no vestibular, Paloma viaja com seus pais milionários para Machu Picchu, no Peru. Lá ela conhece Ninho (Juliano Cazarré). Ninho é um mochileiro desempregado, que passa os dias a reviver o sonho hippie em viagens sem sentido pelo mundo. Ele é feio, grosseiro e usa dreadlocks no cabelo que lhe conferem uma aparência assustadora, tornando-o quase um dublê do Predador - a raça alienígena de assassinos caçadores, que toca o terror pelos mundos da galáxia de blockbusters. O mochileiro também é mal cheiroso; é fácil presumir isso quando se pensa em alguém que viaja sem dinheiro pelo interior do Peru. Enfim, Ninho é o perfeito estereótipo do "príncipe encantado" com que toda mulher com o perfil de Paloma - linda, bem nascida, milionária, que estudou nos melhores colégios, usa roupas de grife, cura qualquer deprê com viagens a Paris, e faz medicina - sonha. Por isso mesmo eles se apaixonam perdidamente. E ela, que tinha acabado de passar no vestibular de medicina (e como é fácil passar em medicina!), decide largar tudo (sua mansão, a faculdade, seus pais, o chocolate suíço light no café da manhã, o luxo a que estava acostumada), para viver um "grande amor" neohippie na estrada. Jack Kerouac ressuscitou! Ah! Como o amor romântico é lindo.   

Então acontece de Paloma, ardendo nas chamas de uma paixão súbita e avassaladora, engravidar do maltrapilho Ninho nos cafofos onde se embrenhavam sem rumo (mas com muito tesão) pela América do Sul. A gravidez da moça era algo previsível, se considerarmos que um mochileiro desempregado, que mal tem onde cair morto, com certeza não vai desperdiçar recursos comprando camisinha. Grávida, Paloma tem um surto de lucidez; de volta à razão, decide retornar a casa dos pais milionários. O mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso vai junto. Mas, para pagar sua passagem, precisa trabalhar como "mula" do tráfico internacional de drogas. Inexperiente na atividade criminosa, ele é preso na Bolívia. Paloma retorna sozinha para o Brasil. Aí eu fico a me perguntar: se Paloma é tão rica, porque não pagou a passagem de Ninho? Se os pais lhe cortaram o dinheiro, por que não ligou para algum amigo (ricos são amigos de outros ricos) e pediu emprestado? Essa Paloma é avara mesmo. Preferiu ver o pai do seu futuro filho traficar.

Dramalhão de boteco

Numa das cenas mais inacreditáveis da história da teledramaturgia nacional,
Paloma dá à luz uma menina no banheiro imundo de um boteco.

Voltando ao Brasil, Paloma decide manter a gravidez em segredo. Seu irmão-vilão Félix ajuda-a com o engodo. Os pais nada sabem. Paloma, que sempre fora um primor de esbelteza, aparece com uma barriguinha saliente. Assim mesmo, ninguém percebe a gravidez (e olha que os pais são médicos!). Incrível o que umas roupas largas podem esconder no corpo de uma mulher macérrima.   

Movido pela insânia, Félix repatria Ninho - o mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante. Ele o leva para São Paulo. A intenção do irmão mais velho ressentido é fazer com que Paloma, ao reencontrar sua paixão peruana, deixe-se novamente seduzir pelo sonho beat de cruzar a América do Sul. Quem nunca sonhou em largar uma vida milionária, para viajar de carona e transar loucamente em meio a ruínas pré-colombianas? Ela decerto esquecerá o maldito hospital, pensa o vilão. Detalhe: uma menina mimada que abandona os próprios pais durante as férias no Peru, e parte em viagem sem rumo com um molambo brasileiro, com certeza é o tipo de pessoa que ambiciona seriamente dirigir um conceituadíssimo hospital particular de São Paulo.    

O plano malévolo de Félix dá certo. Paloma reencontra seu amor indigente e decide fugir com ele. Seus pais flagram-na no momento da fuga. Agora sabem que ela está grávida e, inda pior, o pai do bebê é o mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante Ninho. Paloma discute com seus pais. Ela não se conforma que sejam tão preconceituosos, que não aceitem os dreads nos cabelos do mochileiro que arrebatou seu coração. Afinal, que mal há se ele não tem dinheiro, não tem emprego, não tem nem barbeador e foi preso por tráfico internacional de drogas na Bolívia? Ninho é uma vítima do sistema. Ele é o par perfeito da patricinha rica e mimada no seu mais alto grau - daquelas criadas com pêssegos da Geórgia no café da manhã e Danoninho no lanche da tarde com as amigas -, que largou a faculdade de medicina para reviver o Festival de Woodstock na cidade perdida do povo inca no Peru. 

Paloma foge com Ninho e vai para um bar. Ela está grávida. Ninho então toma todas. Ele comemora sua liberdade ao lado da mulher que ama. O cenário não poderia ser mais romântico: uma pocilga, homens desocupados a esfaquear-se, tacos acertam bolas de bilhar. A iluminação é fraca e o vozerio poético incessante ("Ô patrôa, coloca a tevê no jogo do Flamengo!"). Por isso ninguém vê quando Ninho bate-boca com Paloma. Ela descobre que ele "não quer formar uma família", que é um fanfarrão, um irresponsável (será que ainda não tinha dado para perceber?).

Decepcionada, ela despacha o mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante-alcoólatra. Mas a dor da perda repentina de um amor tão grande é forte demais. Paloma entra em trabalho de parto. Então a teledramaturgia brasileira conhece uma das melhores cenas da sua história: deitada no chão imundo de um banheiro de boteco (alguém consegue imaginar o quão sujo é um banheiro de boteco?), Paloma dá à luz uma menina. Por sorte, Márcia, uma ex-chacrete que tem o edificante objetivo de vida de enriquecer às custas de sua filha "periguete", passava marotamente pelo local e, fazendo as vezes da parteira, ajuda Paloma. Depois Márcia foge do local, temendo ser presa pelo crime de ajudar uma mulher a parir dignamente (Hã? Como assim?). Dando uma de Sherlock Holmes contemporâneo, o vilão Félix fareja pistas e chega ao local. No banheiro do boteco, vê sua irmã deitada num chão imundo, inundado pelo xixi dos bêbados. Sua sobrinha recém-nascida está ao seu lado totalmente indefesa. E o que ele faz? Cruel até os ossos, sem um pingo de escrúpulos, Félix sequestra a criança, abandonando-a em seguida em uma caçamba de lixo. Paloma continua desmaiada no chão cheio de xixi. Coincidentemente, o galã Bruno (Malvino Salvador), um homem que é quase um santo, passa pelo local, ouve o choro do bebê recém-nascido e retira-o da caçamba de lixo. Eis o nosso herói. Bruno fica ilegalmente com a criança.

Sequestro internacional de crianças: uma prova de amor à vida 

O asqueroso Ninho sequestra Paulinha: uma legítima "prova de amor" por Paloma.

Mais de uma década depois, Paloma continua a busca por sua filha "roubada". Enquanto isso, o mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante-alcoólatra Ninho não está nem aí. Mal ele sabe que sua menina agora se chama Paulinha (Klara Castanho), a filha adotiva do galã-santo Bruno.

De sua parte, o vilão Félix continua obcecado com a ideia de se tornar o único dono do hospital. Mesmo Paloma estando interessada apenas em viver um "novo grande amor" (não, pós-graduação não é prioridade na vida de uma mulher), Félix culpa-a por tudo que de ruim acontece no hospital e na sua vida de gay enrustido. Pior. Agora a ameaça é dupla: Paulinha e Paloma. Não! Elas não vão ficar com o hospital!  

Félix une-se então a Glauce (Leona Cavalli), uma médica-obstetra que arrisca toda sua carreira ao falsificar prontuário do San Magno para acobertar o registro civil ilegal que Bruno faz de Paulinha. Não seria mais fácil tentar a adoção? O problema é que Bruno é um pegador nato e agora não está interessado em Glauce, mas sim em "consolar" a fossa eterna de Paloma (nossa, como essa personagem chora!). Mesmo sendo um suburbano alheio à classe social da milionária filha do dono do hospital, estranho inclusive à medicina, Bruno conquista o coração da moça com sua virtude de "pai amoroso" e suas qualidades de... deixa pra lá. O que é para a riquíssima filha do dono do hospital San Magno namorar um suburbano pobretão quando engravidou de um mochileiro desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante-alcoólatra, não é mesmo?    

Félix (sempre ele!) aproveita-se do rancor de Glauce e pede que ela falsifique o exame de DNA que poderia comprovar que Paulinha era a filha "roubada" de Paloma. Mas Ninho não confia nesses exames, nessa ciência. No mundo neohippie em que vive a costurar miçangas em pulseiras, o pai sente quando é pai. Ninho sabe, sobrenaturalmente, que Paulinha é sua filha. E ele está disposto a tudo para recuperar o amor de Paloma.  

Agora vem o melhor: Ninho então tem a brilhante ideia de sequestrar a própria filha. Seu objetivo é levá-la ao Peru, para onde espera que Paloma também se dirija tão logo saiba que Paulinha está lá. E por que Ninho cometeria um ato tão extremo quanto o do sequestro de uma criança indefesa? Dinheiro? Não, caro leitor. Isso seria plausível. Ocorre que Ninho é uma personagem surreal do teatro do absurdo. Ou melhor: do melodrama mexicano mais absurdo. Ele sequestra Paulinha por amor à Paloma. Quer levar a mãe de sua filha novamente para Machu Picchu no Peru, onde acredita que lá, inspirado pela mitologia inca da fertilidade, ele poderá recuperar o amor perdido da sua musa. Sim, vejam como é inteligente esse Ninho: segundo entende, Paloma, ao saber que ele praticou sequestro internacional de uma criança, ficaria tão enternecida com o "gesto carinhoso" que voltaria correndo para os seus braços. Genial esse Ninho, não?

Convencido de que o sequestro internacional de crianças é a melhor maneira de impressionar uma mulher, Ninho soma forças só com a galera "gente boa" da novela: Félix, Glauce e Alejandra - uma traficante boliviana que entrou na história só para dar emprego para a filha do diretor Wolf Maya. E assim o melodrama prosseguirá até que finalmente Paloma descubra (1) que Ninho é um mochileiro-desempregado-maltrapilho-malcheiroso-traficante-alcoólatra-sequestrador mau caráter e que, portanto, não merece ficar com ela; (2) que Bruno é um homem-santo, perfeito para casar ao final da novela; e (3) que Félix é um sujeito cruel e, por isso, o autor da novela ou vai matá-lo ou vai colocá-lo na cadeia. 
  
Enredo patético, subtramas ridículas

Em Amor à Vida, Caio Castro encarna o estereótipo do médico playboy
que nunca viu um livro de medicina na vida: inexpressivo e canastrão,
ele é candidato fortíssimo a se tornar o novo Marcos Pasquim da TV brasileira. 

Descrevi acima, caro leitor, apenas o enredo principal. Como se sabe, uma novela, pela dimensão que possui (centenas de capítulos espalhados em vários meses, a serem exibidos diariamente) comporta dezenas de subtramas espalhadas em núcleos os mais diversos. Por exemplo, como que adivinhando que o público telespectador não suportaria esse dramalhão mexicano patético, o autor Walcyr Carrasco investiu no núcleo de comédia e criou Valdirene (Tatá Werneck), que funciona com uma "válvula de escape" do riso para os litros de choro que a atriz Paolla Oliveira verte a cada capítulo. Há também o núcleo familial, polêmico, mais sério, alicerçado no dilema do casal homossexual vivido por Niko (Thiago Fragoso) e Eron (Marcelo Antony), que planejam ter um filho via inseminação artificial.    

Entretanto, das muitas subtramas inverossímeis criadas por Carrasco, pelo menos duas se destacam. A primeira é a que envolve Patrícia (Maria Casadevall) com o médico Michel (Caio Castro). E o que falar disso? Nada. Não há absolutamente nada de interessante nesse pedaço mal feito de enredo. Patrícia foi traída e busca descontar sua raiva contra o ex-marido transando com o primeiro que aparecer. O sortudo Michel aparece pelo meio do caminho e acaba sendo o felizardo. Ponto. Tudo o mais é desculpa furada para que Caio Castro permaneça sem camisa durante quase toda a trama, a seguir fielmente a cartilha da escola de atores medíocres como Marcos Pasquim, que busca compensar sua inexpressividade dramática com músculos e escândalos em revistas de fofocas (assim o ator não sai da mídia, o que diminui suas chances de ir para a "geladeira"). Por sinal, a personagem Michel ainda presta um desserviço à categoria dos médicos, na medida em que reproduz o estereótipo do "playboy da medicina", isto é, um sujeito irresponsável e farrista, nem um pouco dedicado aos estudos, que não trabalha, vira as noites em boates (eu disse boates, não plantões), além de procurar qualquer oportunidade para dar em cima de suas pacientes (atitude altamente profissional). A segunda subtrama, de tão inverossímil, beira o cômico. Ela versa sobre o golpe que Leila (Fernanda Machado) arma com o namorado Thales (Ricardo Tozzi) para cima de Nicole (Marina Ruy Barbosa). A ideia de um casal inescrupuloso que decide dar o "golpe do baú" em uma menina boboca com câncer é terrivelmente perversa. E poderia ter sido o ato mais corajoso do autor em toda a novela, já que Nicole vem a morrer em pleno altar após descobrir a farsa do noivo (o altar é um exagero melodramático tipicamente mexicano). Ou seja, o casal de golpistas teria logrado êxito no seu intento maldoso - algo impensável nas telenovelas brasileiras, nas quais é regra religiosamente seguida o maniqueísmo segundo o qual o bem sempre vence o mal. Mas Carrasco não quis ser tão ousado e retomou a pasmaceira de Amor à Vida da pior forma possível: Nicole volta como um fantasma, para assombrar a vida dos golpistas. Thales fica atormentado com a assombração; já não consegue viver com o sentimento de culpa. Sua parceira Leila terá destino ainda mais ridículo: após dar de cara com o fantasma de Nicole, cairá da escada e poderá ficar paraplégica. E assim o mal foi castigado. O clichê foi mantido. O público respira aliviado. Novela é para isso mesmo, minha gente.

Dramalhão mexicano "made in Brazil"

Mateus Solano como o vilão Félix: a interpretação impecável do ator
é uma das poucas coisas que se salvam em Amor à Vida.

Amor à Vida tinha tudo para se tornar uma surpresa positiva na teledramaturgia brasileira. Ao escrevê-la, Walcyr Carrasco estava num cenário privilegiado. Como ninguém, ele pôde comparar dois resultados diametralmente opostos: o do sucesso (Avenida Brasil) e do retumbante fracasso (Salve Jorge). Seria inteligente da parte do autor apropriar-se dos acertos da trama de João Emanuel Carneiro, ao passo em que poderia corrigir os erros de Glória Perez. No entanto, Carrasco não fez nem uma nem outra dessas coisas. Sua novela abeberou-se no que há de pior na teledramaturgia mexicana: o melodrama exagerado, atitudes injustificadas, personagens vazios, enredos caricatos. No meio de tantos aspectos ruins, é difícil apontar qual a principal falha da novela (até a canção de abertura, "Maravida", inesquecível nas interpretações de Gonzaguinha e Maria Bethânia, tornou-se um brega choroso insuportável com o estridente sertanejo Daniel).      

Sinceramente, não sei se Amor à Vida tem ido bem nos índices de audiência. Tampouco faço ideia de como o restante da crítica tem julgado essa telenovela. Minha avaliação, todavia, excetuando-se a atuação brilhante de Mateus Solano como o vilão Félix (sua interpretação salva a trama), é a pior possível. Walcyr Carrasco, em sua estreia na faixa das nove, entrega um folhetim patético, um genuíno melodrama mexicano made in Brazil. O amor romântico, calcado no extremo da pieguice, conduz uma trama cuja inverossimilhança é tanta que eu chego a pensar se a Globo não deveria dar uma chance à mulher do Silvio Santos, Iris Abravanel, com suas telenovelas brejeiras. Porque do jeito que Amor à Vida caminha, cheia de "reviravoltas" sem pé nem cabeça, personagens sem carisma, atuações horríveis (Paolla Oliveira, com sua choradeira insuportável, é disparada a pior, quase tão inconvincente quanto uma Grazi Massafera), com fantasmas de meninas mortas, prisão preventiva de alto executivo acusado de bigamia (com direito a ser algemado dentro do hospital!), médico playboy vagabundo, mochileiro que acha que pode reconquistar sua mulher ao sequestrar a filha ("Vou sequestrar a nossa filha! Ela vai achar maneiro!"), o posto de enredo mais inverossímil da história, orgulhosamente conquistado por Salve Jorge, está ameaçado. E quanto ao dramalhão patético e piegas, enredo principal que norteia Amor à Vida, tudo o que tenho a dizer é: o México que se cuide!            

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

"SAIR, PARA NÃO ROUBAR": mais um episódio de humor "nonsense" na política brasileira

Márcio Faber, ex-prefeito de Paranapanema/SP. Foto: Divulgação.

Tinha dois rumos a seguir: ou voltava a trabalhar
e ganhava meu dinheiro honestamente,
ou tirava da prefeitura.
Preferi sair a roubar.
Márcio Faber, ex-prefeito de Paranapanema/SP.
 
Sempre defendi a democracia como regime de governo. Sempre entendi que é preferível um Parlamento problemático a uma ditatura funcional. Mas há certas situações que, de tão constrangedoras, por vezes me levam a duvidar da minha convicção inarredável no regime democrático.

Foi assim que me senti quando tomei partido, pelos jornais, da renúncia do então prefeito de Paranapanema, município do interior de São Paulo. Numa decisão surpreendente, Márcio Faber deixou o cargo no começo do mês de agosto. Surpreendente não pelo ato em si (como sabemos, renúncias fazem parte do jogo político), mas pelos motivos que levaram o alcaide ao gesto extremo de abdicar do poder. Que teria acontecido? Escândalo sexual? Ameaça de morte? Flagrante de corrupção? Dinheiro na cueca? Certamente o eleitor brasileiro, habituado aos vícios da política, teria mil razões infames a especular, mil conjeturas a fazer. Mas eis que o prefeito vem a público e anuncia: "Saí para não roubar".

É isto mesmo, caro leitor: o prefeito, ao renunciar, alegou que "preferiu sair a roubar". Ele declarou à imprensa que sua decisão foi motivada pelo baixo salário do cargo (5,8 mil reais). Como antes de ascender à condição de chefe do Executivo municipal Faber atuava como um bem sucedido médico ginecologista na região, o que lhe rendia um salário mensal em torno de trinta mil reais, considerou que o salário de prefeito não lhe permitiria manter o seu padrão de vida. Por isso, veio a público justificar a grandeza do seu gesto: "Preferi pedir para sair a roubar dinheiro dos cofres públicos", alegou aos jornais. Em entrevista televisiva, foi ainda mais incisivo na sua sinceridade de homem público corruptível: "Tinha dois rumos a seguir: ou voltava a trabalhar e ganhava meu dinheiro honestamente, ou tirava da prefeitura". Palmas, por favor.     

Sinceridade ética

Mas o pior do episódio ainda estava por vir. Conforme apurei pela leitura de comentários em jornais online e redes sociais, boa parte do público elogiou a atitude do ex-prefeito. "Ele é um homem muito ético", um sujeito escreveu. "Sabia que se ficasse teria de roubar, por isso preferiu sair antes de fazer isso". Outro disparou: "Preferiu renunciar a roubar o dinheiro da prefeitura: se essa moda pega, a sociedade seria mais beneficiada". Com efeito, não foram poucos os comentários elogiosos que li a respeito da "sinceridade ética" do prefeito.  

Ora, eu pergunto: que espécie de sinceridade elogiável é essa, segundo a qual o prefeito renuncia "para não roubar"? E desde quando salário baixo é justificativa moral aceitável para "roubar"? Que homem público é esse que age como se o dinheiro do povo fosse uma barra de chocolate que, diante da porta aberta da geladeira, o chocólatra não resiste e põe-se a devorá-la? Seria alguma espécie de adúltero compulsivo que, ao ver mulher alheia, não hesita em flertar, sob a alegação de "instinto masculino"? Por acaso desconhecia a remuneração do cargo quando se candidatou? Os jornais informam então que ele tentou aumentar o seu salário, mas a Câmara Municipal negou o pedido. Ah, está explicado. Melhor mesmo sair. Porque se ficasse, aí já sabíamos: ele com certeza ia roubar.    

Nivelando por baixo

Já não bastasse a piada de mau gosto que é alguém vir a público dizer que renuncia ao cargo por ser volúvel, do tipo corruptível, ainda há que se considerar o mais absoluto desrespeito de Faber para com seu eleitorado. Sim, pois o ex-prefeito obteve um total de 5.873 votos. E por votos, entenda, amigo leitor: mais de cinco mil pessoas, as quais, se soubessem que estavam a votar num candidato que após sete meses renunciaria a seu mandato por razões exclusivamente financeiras, decerto teriam optado por outro nome no pleito. Afinal, a abstrair as condições sociológicas, o voto representa - no limite filosófico-democrático - a expressão de um gesto de confiança. Quem vota em alguém, vota porque confia naquela candidatura, nas suas propostas, na esperança que ela encerra de uma boa gestão da res publica. Não me parece de nenhuma maneira justa, assim, a postura daquele que, uma vez eleito, ignora essa confiança, dando de ombros para o eleitor. E tal é exatamente o que ocorre quando o prefeito, após sete meses de mandato, decide renunciar, insatisfeito com o baixo salário. Toda a confiança depositada naquele candidato é posta a perder, e por motivação das mais inconsistentes.     
 
Assim, a impressão que fica é a de que não só a política brasileira encontra-se atolada num humor nonsense, mas que o próprio eleitor, ao elogiar a renúncia do prefeito insatisfeito com o baixo salário, vai "nivelando por baixo" seu juízo crítico, a satisfazer-se com o "menos pior". Porque o "sair, para não roubar" não passa de uma reinvenção do velho "rouba, mas faz": tanto em um quanto em outro caso estamos diante de condutas reprováveis, inadmissíveis na pessoa de um gestor público, mas que começam a ser socialmente toleradas por razões estultas. No "sair, para não roubar" tem-se um administrador vítima do determinismo ambiental, um corrupto em potência, um oportunista que teme a chance de que seu lado sombrio venha de chofre a se manifestar: "Se eu ficar, não adianta: com esse baixo salário, vou ter de roubar!" A ocasião faz o ladrão. Já no velho "rouba, mas faz", atravessa-se o umbral da falta de vergonha na cara; aqui o administrador é um criminoso assumido, um bandido infiltrado no Estado, mas que, para compensar cada centavo que põe no bolso, executa uma ou outra obra. "Tem gente que já é eleito pensando em roubar. Eu não. Eu roubo, ok, mas eu faço também alguma coisa pelo povo, né? Pior o cara que só fica roubando".

Inovação é agora
Diante de todo esse humor nonsense, para o qual o político brasileiro apresenta um talento inato (ou seria apenas cara de pau?), fica difícil sustentar convicções inarredáveis. Mas a democracia há de sobreviver; tem de sobreviver. O que não dá para aceitar é que o desapontamento do eleitor com a política leve-o a perder seu juízo crítico, nivelando-o "por baixo". Nesse sentido, o argumento do "sair, para não roubar" não é demonstração elogiável de desapego nem de ética. Pelo contrário, é ardil tão censurável quanto o "rouba, mas faz" e quaisquer outros bordões que visem a ridicularizar a vida pública, a ignorar a imensa responsabilidade que o administrador estatal - seja um prefeito, um governador ou um presidente - possui diante do mandato que lhe é outorgado pelo povo.

Contudo, justiça seja feita: pelo menos em uma coisa o ex-prefeito Márcio Faber merece ser aplaudido. Ao propor o argumento do "sair, para não roubar", ele inova o riquíssimo anedotário de "desculpas esfarrapadas" da política brasileira. E nisso ninguém poderá tachá-lo de não ter feito jus ao nome da coligação que o elegeu em Paranapanema: "Inovação é agora". Uma inovação e tanto, caro leitor.