domingo, 22 de abril de 2012

A VIA MAIS POTENTE DO CORAÇÃO: a filosofia e a poesia como antídotos para a monotonia do mundo a partir dos "Princípios de Crítica Poética" de Ugo Foscolo e do pensamento filosófico de Deleuze e Guattari.


Introdução


Queste osservazioni desunte dalle belle arti servono a illustrare l'origine e lo scopo della poesia, tanto più che le altre arti agiscono su[lle] immaginazioni per la via de' sensi, mentre la poesia ci eccita ad immaginare per la via più potente del cuore.
Ugo Foscolo, in Principi di critica poetica (1823)

          Há uma indiscutível proximidade entre o fazer filosófico e o fazer poético.  Essa asseveração talvez explique o porquê de ser tão comum encontrar filósofos que foram poetas e poetas que foram filósofos. A reciprocidade dos ofícios conduz quase que imperceptivelmente a uma ou outra das missões. Ora o filósofo pensa como um poeta; ora o poeta poetiza qual um filósofo.

          A afirmação inicial deste texto permanece, contudo, irrespondida. Que fundamentos aproximariam o filósofo de um poeta? Ou, por outras palavras, que elo haveria entre o poetizar e o filosofar? Seriam dimensões de circunstância? A famosa "licença-poética" - autorizando filósofo e poeta a subverter e (re) criar a linguagem? Seria um método peculiar a ambos os afazeres? Haveria um método filosófico-poético?

Filósofo: o criador de conceitos

          Tomado por essas interrogantes, decidi perquiri-las contextualizadas com o próprio entendimento do que vem a ser a filosofia e o fazer filosófico. Cumpre aqui colocar a velha questão, de resto tantas vezes repetida, mas sempre objeto de renovadas respostas, e que pode mui bem ser resumida nesta pergunta: "O que é a filosofia?".

          Evidentemente, a resposta pode assumir os mais distintos contornos possíveis de conformidade com o prisma de quem se proponha a respondê-la. O meu ponto de vista, que o leitor já conheceu logo no início deste artigo, cinge-se às interseções do fazer filosófico com o fazer poético. Nesse sentido, parece-me interessante dialogar com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997, p. 8) quando afirmam que "[...] la filosofia es el arte de formar, de inventar, de fabricar conceptos." (1)

          Criar conceitos é, com efeito, uma maneira interessante de definir a filosofia desde a perspectiva da poesia. O filósofo, considerado o conceito acima aludido, torna-se um criador: incumbe a ele elaborar o acervo conceptual sobre e a partir do qual transitam as categorias do pensamento. Mas, como esses conceitos necessitam de personagens que os definam, ao filósofo chamar-se-á "amigo" (da sabedoria). Segundo a tradição da filosofia grega, os "amigos da sabedoria" substituíram os antigos sábios, na medida em que aqueles são também sábios, porém mais modestos, de tal modo que buscam a sabedoria, pois não a possuem formalmente.
          Deleuze e Guattari estabelecem uma diferenciação entre as personagens do sábio, vindo do Oriente, e a do filósofo, oriundo da tradição grega, baseada na capacidade de criação. Para os autores (1997), essa diferença não é somente de níveis, como numa escala de gradações, mas essencialmente de método de pensamento: enquanto o sábio oriental pensa mediado por figuras, o filósofo inventa e pensa mediado por conceitos.     

El filósofo es un especialista  en conceptos, y, a falta de conceptos, sabe cuáles sob inviables, arbitrarios o inconsistentes, cuáles no resisten ni un momento, y cuáles por el contrario están bien concebidos u ponen de manifiesto una creación incluso perturbadora o peligrosa. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 9). (2)
          Mas não se deve considerar, de maneira simplista, que a tarefa do filósofo resumir-se-ia a apreender os conceitos que estão espalhados pela natureza como um dado invisível. O filósofo não é um "caçador de conceitos". O fazer filosófico é um fazer criativo. O filósofo, portanto, é essencialmente um criador - um "amigo" - do conceito, isto é, ele cria aquilo que está em seu poder (ele próprio um conceito em potência).

El filósofo es el amigo del concepto, está en poder del concepto. Lo que equivale a decir que la filosofía no es un mero arte de formar, inventar o fabricar conceptos, pues los conceptos no son necessariamente formas, inventos o productos. La filosofía, com mayor rigor, es la disciplina que consiste en crear conceptos. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 11, grifo dos autores).(3)

         
Não é sem razão que Deleuze e Guattari sublinham o verbo "criar" na citação supra. A capacidade criativa é, com efeito, a nota distintiva do fazer filosófico. O filósofo é um criador antes de tudo; sua missão é servir de "ponte" para a gênese do ferramental conceitual do pensamento. Cabe ao filósofo a tarefa de criar conceitos sempre novos, pois a renovação dos conceitos é o objeto próprio da filosofia. 

Crear conceptos siempre nuevos, tal es el objeto de la filosofía. El concepto remite al filósofo como aquel que lo tiene en potencia, o que tiene su poder o su competencia, porque tiene que ser creado. [...] Los conceptos no nos están esperando hechos y acabados, como cuerpos celestes. No hay firmamento para los conceptos. Hay que inventarlos, fabricarlos o más bien crearlos, y nada serían sin la firma de quienes los crean. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 11). (4)

          O fundamental é perceber que, na visão de Deleuze e Guattari, o fazer filosófico é antes de tudo um processo de criação. A menção a esse asserto está a referir-se ao papel criativo, fecundo, inventivo do filósofo na geração do aparato conceitual que instrumentaliza o pensamento humano. O fazer filosófico, acorde com as proposições dos autores, deixa, assim, de ser uma mera apreensão de formas, uma contemplação passiva do "espaço sideral" por onde se movimentam os corpos celestiais dos conceitos, a esperar a cata do filósofo predestinado. Essa visão ingênua é superada ao se observar que o conhecimento não é um dado "natural", o que significa dizer que os conceitos não estão postos o tempo todo e para todo o sempre. Não há verdade absoluta para o filósofo simplesmente porque a reflexão opera a descoberto, engendrando o entendimento pari passu com as experiências humanas, com aquilo que está debaixo do "céu dos conceitos", com o que há de propriamente humano, não extraplanar. Há, nesse sentido, um cruzamento entre o pensamento de Deleuze e Guattari e o "método de filosofar a marteladas" inaugurado pelos escritos niezscheanos que se reportam à "arte da desconfiança". Sobre o assunto, Hélio Rebello Cardoso Junior (2007) assim se pronuncia:    

Segundo Nietzsche, o filósofo precisa praticar uma certa "arte da desconfiança", sendo seu principal instrumento o "martelo". Estamos distantes demais do diálogo filosófico grego, pois com Nietzsche os filósofos aprendem que as idéias não são extraídas, de um céu filosófico que seria alcançado por meio de uma espécie de contemplação. Nietzsche demonstra que os conceitos têm uma origem sublunar, que são criações, e sofrem por isso as vicissitudes empíricas das experimentações. Os conceitos não estão prontos, à espera de que os filósofos mais argutos, mais votados à sua contemplação, mais amigos da sabedoria, venham resgatá-los de seu recesso supra-sensível. Os conceitos têm uma origem, em sua maior parte, baixa. 

         
Dessa maneira, ao retomar a pergunta do introito - "O que é a filosofia?" -, concluo, com Deleuze e Guattari, que o fazer filosófico é criativo - e que o filósofo é sujeito ativo no processo do conhecimento. Ele não contempla, mas sim cria os conceitos que estão na esfera da sua competência, uma esfera por certo idiossincrásica, pois o filósofo é o próprio conceito "em potência".  O filósofo é, portanto, um criador.

Poeta: o criador de um novo mundo (5) 

          Se o filósofo é um criador de conceitos, o poeta não está muito distante de semelhante definição. Não que a poesia tenha de, precipuamente, tal como ocorre com a filosofia na visão deleuzeana e guattariana, estabelecer conceitos em versos - o que seria uma espécie de "métrica filosófica". A poesia também pode fazê-lo, é claro, mas não está adstrita a isso. Assim, é relativamente fácil admitir que o fazer poético é um fazer criativo, pois arte pressupõe criação. E o poeta, como um artista, traduz seus sentimentos na arte poética que produz.

          É nesse sentido que Ugo Foscolo (1778-1827), poeta e romancista italiano, especialmente conhecido pelo romance Ultime Lettere di Jacopo Ortis, desenvolve suas ideias expostas no "Princípios de crítica poética: com especial referimento à literatura italiana" (Principi di critica poetica: con speciale riferimento alla lettteratura italiana.), texto publicado originalmente na revista inglesa European Review em 1824. Foscolo, nesse ensaio que serviu de introdução ao seu estudo extenso sobre a língua e literatura italianas na série de conferências, que proferiu em Londres em 1823, intituladas Epoche della lingua italiana, já no século XIX, defendia o fazer poético como essencialmente criativo, estando ligado, de modo umbilical, ao subjetivismo artístico de cada autor, e não a uma racionalidade formal explicável pela imitação da natureza. 
          Foscolo acreditava existir no mundo uma harmonia secreta e universal. Era anseio natural do homem reencontrá-la, porquanto necessária para restaurar as fadigas e as dores da existência humana. Consequência dessa aproximação com a harmonia, no entender do escritor italiano, seria enaltecer suas sensações, aproveitando-as de tal maneira que as paixões humanas despertariam exaltadas e purificadas, no que se daria o aperfeiçoamento da razão do homem. 

Esiste nel mondo una universale secreta armonia, che l'uomo anela di ritrovare come necessaria a ristorare le fatiche e i dolori della sua esistenza; e quanto più trova si fatta armonia, quanto più la sente e ne gode, tanto più le sue passioni si destano ad essaltarsi e a purificarsi, e quindi la sua ragione si perfeziona. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (6)    

           Para o autor italiano, essa harmonia, malgrado sua existência evidente, experimentada de forma correntia por grande parte dos mortais, surgiria, contudo, misturada à desarmonia, aos elementos colidentes e opostos que se encontram na natureza e, por vezes, destroem-se entre si. À arte caberia, nesse prisma, promover o reencontro do homem com a harmonia turvada pela desarmonia com que a natureza apresenta suas coisas. A música ocuparia um papel especial quanto a esse objetivo: combinando sons agradáveis à alma e aos ouvidos humanos, ela não só conseguiria subtrair os sons entediantes e discordantes, como ainda comprovaria, com seu poder universal, a necessidade humana de harmonia. O raciocínio aplicar-se-ia à arquitetura, à escultura, à pintura - estas últimas pela via dos olhos, valorizando formas e proporções que se harmonizam entre si. À poesia, de sua parte, restaria buscar essa harmonia ao reunir a música nos versos e nas palavras, gerando uma eficácia que, se não for mais manifesta que a das outras artes, é decerto mais potente, uma vez que opera pela via do coração.

Questa armonia nondimento di cui l'esistenza è si evidente, e di cui la necessità è sì fortemente esperimentata più o meno da tutti i mortali, vedesi (como tutte le cose che la natua ofre all'uomo) commista a una disarmonia di cose, le quali cozzano e si attraversano, e spesso si distruggono fra di loro. Però nella musica più che nelle altre arti appaare evidentemente che l'immaginazione umana trovò il modo di combinare i suoni, ch'esistono in natura onde produrre melodia ed armonia, sottraendo tutti i suoni rincrescevoli o discordi. Il potere univrersale della musica è prova evidente della necessità che noi sentiamo dell'armonia. [...] Vero è che la specie d'armonia propria a ciascuna delle altre arti è più espressa, e conseguentemente più efficace; tuttavia l'efficacia della poesia è più potente, tanto a cagione della riunione di tutti i generi d'armonia, quanto per la simultaneità e rapidità del loro progresso. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (7)

          O que o leitor deve perceber é que as ideias foscolianas iam de encontro ao senso comum teórico da crítica literária do século em que viveu. À época, os críticos, mormente influenciados pela Poética de Aristóteles, impunham a noção de que a obra de arte resultaria da imitação da natureza, tendo tanto mais valor artístico quanto mais fielmente capaz de se enquadrar nos modelos cunhados pelo pensamento estético aristotélico. Foscolo opunha-se ferozmente a essa tendência do período. Para ele, a literatura, especialmente a poesia, derivariam das características individuais de cada autor, bem como do ambiente histórico no qual se inseria.

           Esse posicionamento do escritor italiano revelava seu inconformismo com a moldura teórica, muito incensada pela crítica italiana epocal, do "poeta imitador" da natureza . Para Foscolo, a tentativa de imitar, pela poesia, com fidelidade escorreita a lógica natural das coisas, significaria condenar o fazer poético à esterilidade, pois este perderia sua capacidade criadora de objeto e mundo diversos - precisamente o elemento singular que permite à poesia livrar o leitor do assédio da realidade monótona da vida à medida que o poeta, com sua arte, corrige idealmente a natureza.  
[...] Il mondo in cui viviamo ci affatica, ci affligge e, quel che è peggio, ci annoia; però la poesia crea per noi oggetti e mondi diversi. E se imitasse fedelissimamente le cose esistenti e il mondo qual è, cesserebbe d'essere poesia, perchè ci porrrebbe davanti agli la fredda, trista, monotona realtà. [...] La immaginazione dell'artista corregge idealmente la Natura anche quando sa cogliere e rappresentare la gioventù e la bellezza nel più bel punto della lor maggior perfezione. [...] E nondimento l'artista imitando la natura la corregere in guisa da fermare e perpetuare le sue più bele creazioni in quel punto quasi impercettibile di perfezione. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (8)    
           É nesse sentido que se pode dizer que  
Bensí maggior pittore e poeta è colui che sortì tale anima da sentire vivamente gli effetti delle varietà sparse sopra gli oggetti della natura; e tale ingegno da osservarle prontissimo; e tal fantasia da immaginarle riunite, e creare di vsrie parti esistenti un nuovo tutto ideale - e, finalmente, tale giudizio da sapere applicare le varietà dove e come consuonano in armonische proporzioni fra loro. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962, grifo meu). (9)
           Foscolo defende inclusive que o conceito de "gênio" está associado à sua função criadora. Gênio, para o crítico italiano, é aquele que tem capacidade de criar, de recriar, de reconstruir idealmente a natureza, reunindo no objeto de sua arte as condições propícias à harmonia que o homem busca, pois a arte que se propõe a imitar a realidade, desapercebida desse elemento evocativo das impressões subjetivas do artista, cairá na vulgaridade.
L'Arte, imitando la creazione invariabile, coglie il Vero; ma il Genio crea L'Ideale, indovidando, radunando e distribuendo sopra un solo oggetto, com le stesse leggi e con la stessa spontaneità della natura, le varietà ch'ella ha sparso sopra diversi oggetti, o che ella avrebbe potuto creare e spargere onde rendere più belle le opere sue. L'Ideale scompagnato dal Vero non è che o stranamente fantastico, o metafisicamente raffinato; ma senza l'Ideale, ogni imitazione del Vero riescirà sempre volgare; non avrà né la grazia delle figure del Coreggio, né la divina beltà della Venere de' Medici e della Madonna della Seggiola, né il sublime dell'Apollo di Belvedere. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962, grifo meu). (10)    

          Como pondera Karine Simoni, 
Para Foscolo, o reconhecimento do Vero está ligado a uma experiência interiorizada e subjetiva, que se pode mais sentir do que manifestar em palavras. O que equivale a dizer que o pleno significado de uma obra de arte pode ser tomado através de um processo de valorização da individual sensibiliade e não mediante a atitude interpretativa fria e racionalizante do rigor filosófico. (SIMONI, 2008, grifo do autor).
          Todas essas observações hauridas do pensamento foscoliano demonstram uma visão peculiar da crítica literária, opondo-se ao senso comum teórico da época, que, afetado a uma visão classicista aristotélica, julgava a estética de uma obra de arte tendo por parâmetro sua capacidade de emular a natureza com a maior fidelidade possível. Em sentido contrário, Foscolo introduz na teoria literária a observação dos aspectos psicológicos que movem o artista, sobrevalorizando-os, bem assim sua personalidade no contexto do momento história em que vivia, em detrimento à concepção do fazer poético qual imitador fiel da natureza.
Filosofia e poesia como antídotos para a monotonia do mundo
          Na confluência do pensamento de Deleuze e Guattari com aquele desenvolvido na ensaística da crítica literária foscoliana, creio existir o elo que permite entender a proximidade, que reconheço como ínsita, ao fazer poético e ao fazer filosófico. Aqui se cuida de estabelecer, num e noutro caso,  qual a similitude existente entre filosofia e poesia. Eis a pergunta: o que faz, não raras vezes, um filósofo proceder a uma leitura filosófica da poesia (isso quando ele próprio não se torna poeta) ou um poeta versificar ideias filosóficas (se ele não já não for um filósofo também)?

          Nesse sentido, parece-me de fundamental importância notar que tanto a filosofia, na visão de Deleuze/Guattari, quanto a poesia, na concepção de Ugo Foscolo, enaltecem como decisivo o momento de criação. O filósofo e o poeta, num e noutro caso, aproximam-se ao criar. São, assim, criadores. Aquele é o amigo da sabedoria - o criador de conceitos (ele próprio um conceito em potência); este é o artista que diversifica, com seu gênio, o que está posto na natureza, reoordenando os elementos em busca da harmonia, daquilo que se poderia idealmente chamar de "o belo". O filósofo não é, portanto, um mero catador da ideação, mas é seu autor original. Da mesma forma, o poeta não se pode considerar senão em seu mais lídimo processo criativo, quando o artista lança em sua obra suas idiossincrasias.

          Com Deleuze e Guattari, noto que, à pergunta "O que é a filosofia?", a resposta foi dada num sentido de arte. Uma arte de criar, de fabricar, de engendrar conceitos sempre novos, renovando o arcabouço do pensamento. Também por isso o filósofo há de ser sempre alguém desconfiado - talvez até de sua sombra. Desconfiança, generatriz da dúvida, é o que o coloca no mundo onde é (ou pretende ser) amigo da sabedoria, um mundo de investigações, onde não há ideias atemporais ou imutáveis, onde não há espaço para dogmas a serem assumidos maquinalmente. Um filósofo que não desconfia, que não usa seu martelo para afundar pregos na própria carne, esvaindo-se em sangue, não é um filósofo. Evitar a dor na filosofia é aceitar o que está posto - o pensamento ex datis. Para esses pseudofilósofos, facilmente identificáveis pelo seu conservadorismo atávico e aceitação inconteste da realidade circundante, não há lugar no mundo sublunar das coisas terrenas, senão no "reino dos céus" dos conceitos preconcebidos por entes indecifráveis, inimagináveis e, por conseguinte, inatingíveis. O pseudofilósofo não sabe, mas ele apenas se põe a catar conceitos criados por outrem. E o pior: considera-os a "verdade". Em todos esses casos, acompanhando as ideias deleuzianas/guattarianas, não estaríamos diante de um autêntico filósofo - isto é, um criador de conceitos; mas sim diante de um idólatra de mitos modernos. Alguns nem tão modernos assim, pois mitos há que são cultuados há milênios e, por mais que se lhes mostrem as incongruênciass nas suas "verdades", são constantemente renovados por um espírto acrítico de crença - e credo é algo que, por definição, não se discute.

          De outro lado, observo em Foscolo o mesmo cuidado em frisar o ímpeto criativo do artista, afastando-se o arquétipo reducionista do reprodutor da natureza das coisas. O fabrico da poesia  foscoliana, asssim, é essencialmente criação. É um erro reduzi-lo à imitação ou à reprodução da realidade. Sim, pois, a aceitarmos que a realidade é monótona, triste, fria, fastienta, quem buscaria a arte para imegir ainda mais no tédio do cotidiano? Ora, a poesia é uma expressão de inconformidade com o que está posto; é fuga da realidade pela criação de um mundo e objeto diversos. Afinal, segundo Ugo Foscolo (1962), "le altre arti agiscono su [lle] immaginazioni per la via de' sensi, mentre la poesia ci eccita ad immaginare per la via più potente del cuore." (11)

          Todas essas ilações explicam o porquê de o poeta assemelhar-se ao filósofo e vice-versa. Em ambos, o fazer filosófico e o fazer poético, parte-se de um processo essencialmente criativo, mas que mudam conforme a finalidade de um e outro. Na filosofia, o filósofo é o artista criador de conceitos. Na poesia, o poeta é o artista criador de um mundo novo de sentimentos que animam o homem assediado, dia e noite, pela natureza monótona da vida. Isso explica ser comum ver filósofos-poetas e poetas-filósofos: conquanto ajam com finalidades diversas, em um e outro caso, estar-se-á diante de um criador. Filosofia e poesia caminham, assim, de mãos dadas com um rumo certo: livrar, pela desconfiança do filósofo e pela imaginação do poeta, o homem da realidade monótona do mundo.

Notas
1 Traduzo: "[...] a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos."
2 Traduzo: "O filósofo é um especialista em conceitos e, à falta de conceitos, sabe quais são inviáveis, arbitrários ou inconsistentes, quais não resistem nem um instante e quais, ao contrário, estão bem concebidos e manifestam uma criação, ainda que inquietantes ou perigosas."
3 Traduzo: "O filósofo é o amigo do conceito, está em poder do conceito. Isso equivale a dizer que a filosofia não é uma mera arte de formar, inventar ou fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, inventos ou produtos. A filosofia, rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos." 
4 Traduzo: "Criar conceitos sempre novos, eis o objeto da filosofia. O conceito remete ao filósofo como aquele que o tem em potência, que o tem em seu poder ou em sua competência, porque o conceito deve ser criado. . [...] Os conceitos não estão esperando prontos e acabados, como corpos celestes. Não há firmamento para os conceitos. É preciso inventá-los, fabricá-los ou, para ser mais preciso, criá-los, até porque eles não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam." 
5 O leitor notará que baseei meu escrito nos originais em italiano de Ugo Foscolo. Mas não os traduzirei, como de praxe, pois encontrei tradução em português disponível no meio acadêmico. Nesse caso, as notas de tradução dos excertos dos textos referir-se-ão àquela elaborada pela professora Karine Simoni (UFSC), divulgada na 3ª edição da Revista Literária em Tradução (2011), bem como no seu artigo "Notas sobre a crítica literária de Ugo Foscolo: uma leitura de Principi di critica poetica".   
6 "Existe no mundo uma harmonia secreta universal que o homem anseia por reencontrar como necessária para restaurar as fadigfas e as dores da sua esistência; e quanto mais encontra essa harmonia, quanto mais a sente e ela aprovieta, tanto mais as suas paixões se despertam para se exaltarem e se purificarem, e então sua razão se aperfeiçoa."
7  "Essa harmonia, apesar de tão evidente existência, e cuja necessidade é tão fortemente experimentada mais ou menos por todos os mortais, é vista (como todas as coisas que a natureza oferece ao homem), misturada a uma desarmonia de coisas, que colidem e se opõem, e muitas vezes, se destroem entre si. Porém, na música, mais do que nas outras artes, é evidente que a imaginação humana encontrou a maneira de combinar os sons que existem na natureza, e através deles produzir melodia e harmonia, subtraindo todos os sons entediantes ou discordantes. O poder universal da música é prova evidente da necessidade que nós sentimos da harmonia."  
 8 "[...] O mundo em que vivemos nos afadiga, nos aflige e, o que é pior, nos entedia; mas a poesia cria para nós objetos e mundos diversos. E se imitasse muito fielmente as coisas que existem e o mundo tal como ele é, deixaria de ser poesia, pois nos colocaria diante dos olhos da fria, triste, monótona realidade. [...] A imaginação do artista corrige idealmente a Natureza mesmo quando sabe colher e representar a juventude e a beleza no mais belo ponto da sua maior perfeição. [...] E apesar disso o artista, imitando a natureza, corrige-a de modo a parar e perpetuar as suas mais belas criações naquele ponto quase imperceptível de perfeição."
9 Mas a grandeza principal do pintor ou do poeta consiste em sentir vivamente os efeitos das variedades esparsas sobre os objetos da natureza; e tal engenho de observá-las sempre pronto; e tal fantasia de imaginá-las reunidas, e criar de várias partes existentes um novo ideal, - e finalmente, tal juízo de saber aplicar as variedades onde e como concordam em harmônicas proporções entre elas."
10 "A Arte, imitando a criação invariável, colhe o Verdadeiro, mas o Gênio cria o Ideal, adivinhando, aproximando e distribuindo sobre um só objeto, com as mesmas leis e com a mesma espontaneidade da natureza, as variedades que ela estendeu sobre diversos objetos, ou que ela teria criado e propagado para tornar mais belas as suas obras. O Ideal desacompanhado do Verdadeiro não é que ou estranhamente fantástico, ou metafisicamente refinado, mas sem o Ideal, toda imitação do Verdadeiro permanecerá sempre vulgar; não terá nem a graça das figuras de Coreggio, nem a divina beleza da Venere dos Medici e da Madonna della Seggiola, nem o sublime do Apollo di Belvedere."   
11 "[...] as outras artes agem sobre [as] imaginações pela via dos sentidos, enquanto a poesia nos instiga a imaginar pela via mais potente do coração."
REFERÊNCIAS
CARDOSO JUNIOR, Hélio Rebello. A amizade como paisagem conceitual e o amigo como personagem conceitual, segundo Deleuze e Guatttari. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo Horizonte, vol. 48, nº 115, 2007. Disponível em: www.scielo.com.br. Acesso em: 21 abr. 2012. 
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. ¿ Qué es la filosofía? Traducción de Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 1997, 220 f.
FOSCOLO, Ugo. Epoche della lingua italiana (Principi di critica poetica con speciale riferimento alla letteratura italiana). In: PUPPO, Mario. Opere di Ugo Foscolo. Milano: Mursia, 1962.  
______. Princípios de crítica poética: com especial referimento à literatura italiana. Trad. Karine Simoni. Revista Literária em Tradução. Ilha de Desterro, ano II, nº 3, p. 118-120, 2011. 
SIMONI, Karine. Notas sobre a crítica literária de Ugo Foscolo: uma leitura de Principi di critica poetica. In: XI CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. Anais on line. São Paulo, USP, 2008. Disponível em: www.abralic.org.br/anais/cong2008/anaisonline/simposios. Acesso em: 21 abr. 2012.  

segunda-feira, 9 de abril de 2012

BBB e a Corrosão do Caráter: corpos sarados, comportamentos patéticos e cabeças vazias como terapia para a angústia heideggeriana

No dia 29 de março deste ano, o Brasil assistiu ao término de mais uma edição do reality show mais famoso do País: o Big Brother Brasil (BBB). A décima segunda, para ser mais exato. Sinceramente, não sei quem foi o vencedor. Também não importa. Em pouquíssimo tempo, a imagem dele desaparecerá e será substituída por outro produto mais rentável aos cofres da Rede Globo.
Há tempos desejo escrever sobre o assunto, máxime inspirado pelo excelente artigo “Cabeças vazias, corpos sarados e comportamentos patéticos” (2012). Esperei que o programa terminasse e a “poeira baixasse” para escrever sobre o tema, no entanto. Não quis parecer oportunista, buscando holofotes, ao atacar um programa já destruído de todas as maneiras, ainda mais este ano, cuja edição trouxe a polêmica - aparentemente não fabricada, mas conveniente ao extremo pelo escândalo que proporcionou junto à opinião pública - da prática de um suposto estupro envolvendo dois de seus participantes. Tampouco poderia furtar-me ao debate, pois não me parece acertado ignorar a realidade circundante de que o programa tem, sim, muita audiência – conquanto já haja sinais perceptíveis de sua diminuição. Fingir que a TV trash não existe é condenar a crítica ao mundo fantasioso e autofágico de sua própria intelectualidade. Por outras palavras, é seu dever enfrentar aquilo que considera qualitativamente ruim. Afinal, nem sempre frequentamos hotéis de luxo; às vezes, é preciso descer ao esgoto...
Reality show e a fórmula do mal
Ao contrário do que o leitor mais açodado possa ter presumido par a par do que redigi acima, não sou contra reality shows. Vejo, com muita desconfiança, as opiniões dos que advogam incisivamente que a fórmula é a responsável pela mediocrização da TV brasileira. Na verdade, o formato, se bem aproveitado, pode ser interessante, como sucede com os que visam a apurar novos talentos musicais. Em tais casos, a despeito do uso comercial que se faz desses participantes, é inegável que há pessoas com talento artístico verdadeiro nessas disputas de espaço na mídia.
O problema, portanto, não é o reality show em si, mas a ausência do bom senso. Vejamos o caso do BBB. Temos aqui um programa de televisão explorado da maneira mais rentável possível: a invasão da intimidade, a apelo à sensualidade do corpo feminino, o incentivo à autoflagelação, a exposição voluntária ao ridículo, a celebração da estultícia humana em meio ao merchandising de grandes marcas. É quase como se o telespectador brasileiro fosse um pornógrafo a esperar a absolvição de seus próprios vícios reproduzidos na tela da TV de maneira mais sofisticada do que ocorreria num filme pornô softcore. No fundo, isso não deixa de ser verdade, pois, no BBB,
O que está em jogo, mais do que o prêmio em dinheiro, é a relação de cada participante com uma plateia que, embora absolutamente diversa, é relativamente previsível na medida em que se encontra no canal de comunicação preferido da nação e reconhece os símbolos e valores que ele veicula. (AZEREDO, 2012). 
Colocado o assunto dessa maneira, o BBB deixa de ser um programa feito para um público intelectualmente desqualificado e torna-se ponto de partida para reflexão sobre a própria sociedade em que vivemos.
O caráter corroído e a ética da efemeridade: não há longo prazo?
O sociólogo estadunidense Richard Sennet, no seu livro “A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo” (2009), investiga como a ética do mundo do trabalho capitalista moderno influencia a ética individual. O objetivo de seu ensaio é demonstrar de que maneira as relações de trabalho no capitalismo contemporâneo têm contribuído para o desfazimento de laços sociais que pressupõem relações continuadas no tempo, no longo prazo, a exemplo da confiança, da lealdade, do compromisso mútuo. Com esse fim, toma por base a ideia de que
O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro. Da confusão de sentimentos em que todos estamos em algum momento em particular, procuramos salvar e manter alguns; esses sentimentos sustentáveis servirão a nossos caracteres. Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. (SENNET, 2009, p. 10, grifo meu). 
O objetivo de seu ensaio sociológico é caracterizar a sociedade na perspectiva do capitalismo que, ao flexibilizar as relações de trabalho, produz uma ética própria às novas maneiras de organização do tempo. É quando o lema “Não há longo prazo” toma força como diretriz ideológica do tempo do trabalho, corroendo valores como lealdade, confiança, compromisso mútuo. Esse fenômeno ultrapassa, no entanto, o mundo do labor e invade a esfera familiar, ensejando a crise consistente em saber se a ética do capitalismo contemporâneo (volátil, veloz, flexível), fundada numa cooperatividade superficial, constitui uma blindagem mais eficaz para lidar com a sociedade que o comportamento que se baseia em valores só cultiváveis em longo prazo, a exemplo da lealdade e da confiança (SENNETT, 2009, p. 25).
Diante disso, é possível identificar na sociedade capitalista uma ética da efemeridade, do fugaz, do enaltecimento da adaptabilidade a qualquer meio como virtude-mor do mundo do trabalho. É quando caem as hierarquias piramidais e a sociedade passa a funcionar em rede – o que facilita sua permanente decomposição ou recomposição.
Essa ética da efemeridade, que corrói o caráter na organização do tempo do trabalho, corrói também o caráter das relações privadas da sociedade. A indústria do entretenimento reflete e apropria-se desse movimento. É assim que a velocidade invade, por exemplo, o cinema com seus blockbusters que, não obstante durarem algumas horas, são filmados com a agilidade de um videoclipe. Na televisão, o entretenimento toma, o mais das vezes, a forma de um reality show, o ápice maior da velocidade-superficialidade na conquista dos famigerados “15 minutos de fama”.
No BBB, o reality show que centraliza minha reflexão, não há caráter justamente porque nada há de duradouro. Sequer a fama conquistada dura mais do que o tempo necessário à exploração comercial da imagem pelos produtores do programa. Os participantes sabem disso. Ingressam na disputa, a princípio, motivados pelo prêmio milionário, mas, no decurso do “circo televisivo”, notam, ainda que inconscientemente, a flexibilidade-velocidade dos julgamentos éticos na “casa” onde estão confinados. Assim, surge uma nova liberdade moral, à medida que cresce o consumo de álcool e o “medo” do ridículo é perdido. Tanto mais factível se torna a certeza de que tudo o que ocorrer naqueles três meses de programa não trará consequências de futuro. É o senso do instante, do efêmero, afastando a confiança, a lealdade, dando azo ao que de pior há no ser humano: a perfídia, a inveja, o fingimento de ser quem não se é só para estar-com. Esses sentimentos aparecem plasmados em “comportamentos humanos aceitáveis na esfera privada e patéticos quando transbordam para a esfera pública” (ARAÚJO, 2012), que vão do coma alcoólico à ebulição hormonal adolescente de tipo imoderada (daí as muitas vezes em que o programa escandalizou a sociedade com a confessada prática de masturbação dos seus participantes). Surgem, nessa mesma toada, os “namoros na Casa” – quando se torna ainda mais perceptível a pornografia soft dos “filhos” da classe média brasileira. E eis o zoológico humano! 
Nenhum desses comportamentos é estranho ao telespectador. Seria hipocrisia acreditar que as condutas ali reproduzidas não encontram respaldo na sociedade. A diferença, repito, é de plano: o que é admissível na esfera privada, quando transita para a esfera pública, toma a forma de “circo da mediocridade humana”, incrementando o lixo televisivo cuja audiência cresce proporcionalmente ao assassínio de leitores de bons livros.
A mediocridade humana como terapia
A razão de ser deste artigo não é criticar o BBB. Tal já se afigura, após tantos escândalos protagonizados pelas personagens do programa, um lugar-comum da intelectualidade nacional, de tal modo que há razões mais do que suficientes, já exaustivamente explicitadas, para que o telespectador com um mínimo de inteligência deixe de assistir ao programa.
Meu objetivo é diverso, mas não menos audacioso: extrair elementos edificantes do trash televisivo. Em outras palavras: é possível haver alimento saudável no lixo? Pode haver água potável no esgoto? O BBB pode cumprir uma função filosófica existencialista?
Consoante minhas observações, sim. Há uma função filosófica que escapa aos olhos dos críticos do reality show, mas cujo reconhecimento se impõe como medida de justeza. Refiro-me ao experimento psicológico proporcionado pelo programa no sentido de uma autêntica terapia contra a depressão intelectual.
De fato, aos que dedicam suas vidas aos mais distintos campos do conhecimento humano, da filosofia ao direito, da literatura à matemática, da astronomia à música, é inevitável em algum momento o sentimento de inferioridade do seu intelecto. O filósofo, o cientista, o literato, o artista, todos, em algum momento de suas vidas, com maior ou menor intensidade, haverão de encontrar a si próprios - ensimesmadamente - presos aos grilhões da depressão. É o temor da incapacidade de se igualar aos seus mestres, de gerar grandes feitos. É um temor que assoma súbito e inexcedível, qual uma muralha inquebrantável das narrativas fantásticas de Tolkien, e que leva mesmo o mais animado dos espíritos a declinar de sua autoconfiança, do seu poder-ser próprio. 
Essa sensação a que me reporto agudiza-se de maneira especialmente pungente pela leitura de biografias. Como ignorar que Karl Marx escreveu boa parte de sua obra filosófica revolucionária submetido à extrema pobreza? Que dizer então de Machado de Assis? Quem poderia prever que o filho de uma imigrante açoriana, que fazia rendados e bordados, e de um pintor de paredes e móveis, haveria de se tornar o maior dos escritores brasileiros? Como ignorar que o compositor alemão Ludwig van Beethoven, mesmo sofrendo de surdez progressiva, foi capaz de escrever sinfonias? E Stephen Hawking, físico inglês, o gênio da “fórmula da entropia”, que foi capaz de manter sua atividade científica, não obstante a paralisia imposta pela esclerose que o acometeu? Ou que Jorge Luis Borges, após ficar cego, “escrevia” com a voz?
Esses são apenas alguns dentre tantos exemplos de feitos extraordinários de seres humanos com os quais a comparação redunda, inevitavelmente, na depressão intelectual. Quantos de nós, computadores em mão e sentados sobre cadeiras confortáveis, seriam capazes de escrever “O Capital”? Quantos de nós, tivéssemos nascido em famílias pauperizadas, não nos deixaríamos subjugar pelo destino, sepultando eventual pendor literário que possuíssemos? Quantos, incapacitados pela perda dos movimentos do corpo, seriam suficientemente inteligentes para contribuir com cálculos de termodinâmica de buracos negros? E qual de nós, na plenitude da visão aquilina, seria capaz de produzir textos literários tão bonitos quanto aqueles do fecundo escritor argentino?           
Tomados esses exemplos, a vida intelectual, com todos os desafios proporcionados aos que se dedicam a construir conhecimento, torna-se fonte da mais intensa depressão. É como um soco violento desferido por um adversário invisível e que, por isso mesmo, não podemos enfrentar. No fundo, desde um prisma heideggeriano, a depressão intelectual, sentida sob a forma de uma angusta angústia no coração, traduz-se como um conflito da presença (o ente que eu mesmo sempre sou) “imbricada tanto com o seu ser para o mundo da ocupação quanto com o ser para consigo mesmo”. (HEIDEGGER, 2005, p. 174). O “medo” de fracassar, a sensação de impotência diante do curso causal da vida, a anonimidade da existência, a não contribuição com gestos de relevo para o gênero humano, o transcurso do tempo na pequenez estéril da cotidianidade são, dessa feita, alguns sintomas dessa angústia. 
Em contrapartida, acaso esses sintomas tenham outro significado, seriam manifestações espontâneas de que o ser começa a (re)conhecer sua co-presença no mundo, encontrando-se com outros? Estar-se-ia a iniciar aí, ainda que sub-repticiamente, a ruptura com a mundanidade – tomada como totalidade referencial da significância?
O mundo libera não apenas o manual enquanto ente que vem ao encontro do mundo, mas também pre-sença, os outros em sua co-presença. Esse ente liberado no mundo circundante, no entanto, de acordo com seu sentido mais próprio de ser, é um ser-em um mesmo mundo, em que é co-presente, encontrando-se com outros. A mundanidade foi interpretada (§ 18) como totalidade referencial da significância. Na familiaridade com ela, dotada de compreensão prévia, a pre-sença deixa e faz vir ao encontro o manual enquanto algo que se descobre em sua conjuntura. O contexto referencial da significância se ancora no ser da pre-sença para o seu ser mais próprio, a ponto de, essencialmente, não poder ter nenhuma conjuntura, sendo o ser em função do qual a própria pre-sença é como é. (HEIDEGGER, 2005, p. 175).  
Faz sentido, assim, a afirmação do filósofo alemão Martin Heidegger de que a angústia é a sensação do nada – e, portanto, a abertura privilegiada da presença.
A angústia – segundo Heidegger – é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana. A angústia faria o homem levantar-se da traição cometida contra si mesmo, quando se deixa dominar pelas mesquinharias do dia-a-dia, até o autoconhecimento em sua dimensão mais profunda. (CHAUÍ, 2005, p. 8).  
Talvez assista ainda razão à Arthur Kaufmann (1994), quando, refletindo sobre a filosofia da existência (Die Existenzphilosophie), pondera que
Das Bewuβtwerden dieser Grenzsituationen, das Gewahrewerden der eigenen Schwäche und Ohnmacht, drängt, wie Epiktet schon sagte, zur Stellungnahme, zur Frage nach dem Sinn des menschlichen Daseins. Alles kommt darauf an, wie sich der Mensch zu diesen Grenzsituationen stellt. Er kann die Augen davor verschlieβen, so tun, als wären sie nicht, und sich dann eines Tages faktisch von ihnen überwältigen lassen. (KAUFMANN, 1994).   
Eis que surge, então, o filósofo Mário Sérgio Cortella (2007) e nos pergunta em tom desafiador: qual é a tua obra?
Para esses momentos de depressão intelectual - angústia, para falar com Heidegger - há um remédio infalível: o BBB. Assistindo ao programa, mesmo o mais deprimido intelectual, filósofo, artista, escritor, poeta, político, cientista ou qualquer outra função que o valha pode curar seu sentimento de inferioridade, sua crise existencial, seu medo ante a pequeneza da falibilidade humana. Basta observar que naquele programa estão pessoas, na maioria das vezes, oriunda de lares aquinhoados, cujo suporte econômico familiar lhes permitiu usufruir os bens de consumo da sociedade capitalista e... só. Os participantes do programa consubstanciam o que há de pior na classe média/média alta brasileira: a junção do corpo sarado com a cabeça vazia, reproduzindo comportamentos patéticos. É quando a oportunidade do estudo e da cultura (do ser-em-si, do Dasein) toma a forma falaciosa da existência medíocre, do ridículo, do acéfalo. É quando o nível de respeito próprio desce de tal maneira que a intimidade constitucionalmente protegida torna-se comercializável e a existência humana resume-se a isto: 15 minutos de fama. É o que chamo de “venalidade da dignidade”.   
O leitor há de objetar, por certo, que há (ou houve, não sei) participantes de indiscutível nível intelectual. A isso respondo com uma obviedade: se existiram tais participantes (confesso que, nas vezes em que, deprimido, compus a audiência do programa, não os percebi), decerto foram convidados porque a fauna do zoológico humano necessita de diversidade para aumentar a diversão. É dessa discrepância de formações que surge o entretenimento contemplativo. O telespectador é levado a crer que todos, independentemente da formação cultural ou do nível de estudo, são vendáveis; passíveis de expor sua intimidade em graus elevadíssimos de excitação, enaltecendo valores típicos da sociedade hedonista em que vivemos: sexo a qualquer custo, dinheiro a qualquer preço, glamour minuto a minuto.
O que chamo de “terapia dos corpos sarados, comportamentos patéticos e cabeças vazias” é justamente isto: o vazio atroz dos seres humanos, condenados à insignificância existencial, com um Dasein imerso na impessoalidade voluptuária do cotidiano, incapazes de compreender suas possibilidades próprias e compensar minimamente o dano ambiental que suas existências produzem com algo útil para seus concidadãos. É a ética da efemeridade, no que tudo se torna passageiro, tudo é frívolo, tudo é vão. Só interessa o momento, o prêmio, a fama. Não há sentido numa existência anônima, porquanto é preferível ser lembrado como “ex-bbb” a não ser lembrado. Neste mundo em que vivemos, não há longo prazo. Não há confiança, não há lealdade. Há, isto sim, o culto à beleza inculta e à extroversão fabricada. São os heróis da mediocridade humana.
Submetido o reality show a esse raciocínio filosófico, posso até considerar o BBB socialmente útil: qualquer pessoa que intuicione, com Heidegger, a existência de uma dimensão fundamental e fundante de nós mesmos e da realidade de nosso ser-no-mundo, e venha a perguntar-se “qual é minha obra?”, em se sentindo deprimido diante da resposta (ou da falta dela ou, ainda, do temor de nunca a alcançar!), encontrará no reality show um bálsamo: “Sim, existem pessoas mais medíocres do que eu!” E mesmo a angústia heideggeriana do “nada” pode ser positiva, pois “Quando se pode sentir o ‘nada’, todas as opções se apresentam e todos os horizontes são possíveis.” (CORTELLA, 2007, p. 14).
No fundo, a terapia dos corpos sarados, comportamentos patéticos e das cabeças vazias que proponho, à luz do exemplo crítico trazido pelo BBB, funciona como um escudo protetor da angústia heideggeriana. É o tratamento que resgata a autoestima de todo aquele que se sente angustiado a dar um sentido duradouro à sua vida, atravessando os umbrais da convivência cotidiana irrefletida, que obstaculizam o seu poder-ser-próprio, o desvelar das possibilidades multifárias do seu Dasein. Mesmo que esse desejo de ser-em-si vá de encontro ao capitalismo em rede, à organização flexível do tempo de trabalho, à ética da efemeridade, enfim, a tudo aquilo que conspira para que o mundo onde não haja longos prazos seja também um mundo onde não valha a pena viver, é preciso transcender a existência inautêntica, agarrando, com temeridade, o desafio de ser-senhor-de-si, e não apenas ser-no-mundo. O poder de ser-o-que-se-é.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Washington. Cabeças vazias, corpos sarados e comportamentos patéticos. Observatório da Imprensa. São Paulo, 18 jan. 2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/cabecas_vazias_corpos_sarados_e_comportamentos_pateticos. Acesso em: 08 abr. 2012. 
AZEREDO, Márcio de. O BBB e os tribunais da ética. Observatório da Imprensa. São Paulo, 17 jan. 2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed677_o_bbb_e_os_tribunais_da_etica em_2011. Acesso em: 08 abr. 2012.   
CHAUÍ, Marilena de Souza. Martin Heidegger - Vida e Obra. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Trad. e notas: Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005, prefácio. (Coleção Os Pensadores).  
CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é tua obra?: inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. 6º ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: Parte I. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
KAUFFMANN, Arthur. Rechtsphilosophie, Rechtstheorie, Rechtsdogmatik. In: KAUFFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (Hrsg.). Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart. Heidelberg: C. F. Müller Juristischer Verlag, 1994, p. 16. Traduzo: "Ao tomar consciência dessas situações-limite, ao perceber sua fraqueza e impotência, como já dizia Epiteto, o homem é impelido a assumir uma posição, a perguntar sobre o sentido da existência humana. Tudo depende de como o homem lida com essas situações-limite. Ele pode fechar os olhos, fingir que não existem e, então, num dia qualquer, deixar-se efetivamente dominar por elas."  
SENNETT, Richard. A Corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução de Marcos Santarrita. 14ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Regando o jardim das Papáverum Millôr: uma homenagem póstuma a Millôr Fernandes (1923-2012)


          Escrever à maneira de homenagem póstuma está a se tornar uma constante neste blogue. Talvez até mais do que eu desejaria. Fi-lo, aqui mesmo neste espaço, ao lembrar do jornalista Daniel Piza (“Contemporâneo de Mim”, postagem publicada em 22 de janeiro do ano corrente e que o leitor pode acessar no sistema de pesquisa da página), cujo falecimento precoce me contristou. Outros nomes de ilustres falecidos este ano poderiam ser recordados. O geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-2012) com a mais absoluta certeza seria um deles, dada a missão destemida que é dedicar toda uma vida à produção científica sem se afastar do contato com os movimentos sociais (“Nunca um País necessitou tanto da ciência quanto o Brasil”, afirmava o pesquisador em tom crítico ao amadorismo das conveniências políticas com que, de praxe, os governos cuidam da questão ambiental brasileira).      
          Com a morte de Millôr Fernandes, no último dia 27 de março deste ano, o “mundo das letras” sofreu impacto semelhante ao experimentado pelo “mundo da ciência” com a morte de Ab’Saber. Millôr foi um dos expoentes do (bom) jornalismo brasileiro. Homem de letras multitalentoso, o escritor fluminense ia bem das charges à dramaturgia, sempre permeadas pelo humor inteligente que o notabilizou.
          Lembro de Millôr ainda na infância, quando lia livros de Língua Portuguesa na escola e sempre encontrava suas ilustrações - em geral, usadas para entreter crianças no difícil aprendizado da gramática normativa culta. Quem sabe, então, ele não tenha sido um dos responsáveis por me fazer amar tanto e tão intensamente a língua portuguesa - de todos os idiomas que domino, o português não só é a minha língua pátria, mas é também o meu idioma favorito, pois sou assumidamente uma vítima da lusofilia.
          Pouca gente sabe, mas Millôr também se aventurou pelo campo da poesia. Eu mesmo só fiquei sabendo disso ao ler estes textos póstumos comumente publicados sob o influxo do saudosismo que acomete todo leitor ao saber que não lerá textos inéditos do escritor que admira. Por isso, redigi essa introdução: quero partilhar um poema do poeta Millôr Fernandes com os espectadores invisíveis deste blogue (aparentemente, a contar pelo número de visualizações da página, eles existem – salvo, é claro, se a hipótese aventada pelo meu irmão, Renato Teodoro, no seu conhecido tom pilhérico, estiver correta: dedicar-me-ia, na soturnez das madrugadas do meu escritório, a apertar incessantemente a tecla F5 do teclado, buscando autoaprovação a textos que ninguém lê).    
          No entanto, prefiro acreditar, com Dostoievski, que “a beleza salvará o mundo” e há gente do outro lado que, como eu, ama a poesia. Abaixo vai o poema “Última Vontade” do Millôr, originalmente publicado no livro Papáverum Millôr (1967). Apenas advirto antes o leitor quanto a uma curiosidade. Esses versos, escritos à maneira dum testamento bem-humorado, não foram respeitados. O corpo do escritor foi cremado no Rio de Janeiro. Mas, como revela a leitura do poema, ele queria mesmo era ser enterrado na mata. Cumpre a nós, seus leitores, portanto, satisfazer seu desejo final e regar permanentemente a terra onde foi lançada a semente da flor Papáverum, da espécie dos Millôr. Só assim não permitiremos que o jardim de cultura literária donde brota esse tipo raro de flor feneça, esquecido, em seu canteiro final.      
     
Última Vontade
Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos (como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr
***