domingo, 17 de novembro de 2013

SUICÍDIO COMPARTILHADO: ultrapassando o recôndito da privacidade da morte nas redes sociais

Gabriela Hernández Guerra, estudante mexicana de 22 anos, anuncia no Facebook seu suicídio.
 
A morte é tradicionalmente um momento de suprema privacidade. De fato, não conheço ninguém que deseje morrer aos olhos do público, assassinado em frente a um hotel, atropelado durante uma maratona. Mesmo a morte de causas naturais não costuma ser registrada como lembrança. Não tomo partido em nossa sociedade de quem cultive o hábito de fotografar o momento, como se dá com frequência em relação a festas de aniversário ou viagens. E, submetendo-se o fim da existência aos rigores da historiografia, os ritos sociais derredor do ato de morrer serão o mais das vezes de zelo e contristação, pena e recôndito.

Apesar disso, não ignoro que a morte também pode servir de matéria-prima para a exposição. As artes são preponderantes nesse contexto. Não raro, poetas dedicam obras inteiras ao assunto, tomando-a como força motriz criativa. Toda a obra de Augusto dos Anjos vai nessa toada, e o primoroso Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto trilha idêntico caminho, posto que com propósito literário diferente. O cancioneiro mundial apresenta canções inspiradas pela morte desde os séculos mais distantes. Da prisca Renascença vem, por exemplo, a clássica Tarleton's Ressurection, peça do repertório para alaúde, composta por John Dowland em homenagem ao falecimento de Richard Tarleton, o mais famoso palhaço da Inglaterra no século XVI.  

À sua maneira, Joan Didion também se debruçou sobre a morte. No seu livro O ano do pensamento mágico, a escritora estadunidense narra a experiência dolorosa de quem perdeu, de forma súbita, o marido e a filha:         

Quem sofre a perda recente fica com um certo olhar que talvez seja somente reconhecível pelos que já viram aquele mesmo olhar no próprio rosto. Notei isso no meu rosto e agora percebo nos outros. Esse olhar reflete uma enorme vulnerabilidade, é como estar nu e desarmado. É o olhar de quem sai do consultório do oftalmologista com as pupilas dilatadas e encara a luz do dia, ou o olhar de quem usa óculos e tem subitamente que tirá-los. As pessoas que perderam alguém parecem nuas porque se acreditam invisíveis.

Por se julgar invisível em sua dor, Didion vale-se de sua habilidade literária, para expor, em tom confessional, o desespero de assistir à ruína dos alicerces familiares de sua vida. É uma esposa premida pela solidão vidual; é uma mãe dilacerada com saudades da filha.  

Talvez essa pretensa invisibilidade da perda explique a atitude de Gabriela Hernández Guerra, que anunciou numa rede social a própria morte. Inconformada com o término do namoro que mantinha pela internet com o equatoriano Julio, a estudante mexicana de 22 anos suicidou-se. Mas antes fez questão de documentar em foto o ato derradeiro e desesperado, compartilhando-o no Facebook.     

A estudante Júlia Rebeca, de 17 anos, que anunciou no Twitter seu suicídio após ser exposta em vídeo íntimo.

No Brasil, caso semelhante aconteceu com Júlia Rebeca, de 17 anos, que anunciou no Twitter o dia da própria morte. A decisão fatídica teria sido motivada pelo vazamento no WhatsApp de um vídeo onde aparecia, juntamente com um rapaz e outra adolescente, em momentos íntimos. Incapaz de suportar a humilhação, a estudante enforcou-se.    

São dois casos emblemáticos dos nossos tempos de redes sociais. Não pelo suicídio, que é fato social conhecido e longamente estudado. O que os torna peculiares é a apresentação pública do passamento. Duas jovens, motivadas por razões diversas, convergem para as redes sociais, a anunciar a própria morte, retirando-a do seu recôndito. Diferentemente de Didion, que narrou a dor que se segue à perda de entes queridos, Júlia e Gabriela expuseram com antecedência a própria morte - a perda da própria vida.

O que me interessa nesses casos é notar a consequência da era de superexposição em que vivemos. Mais do que nunca, não basta ter, é preciso exibir. De que adianta ter um carro de luxo se ninguém o souber? De que adianta fazer a viagem sonhada se não se puder noticiar aos seus pares? O desejo de compartilhar não é novo. Sociável, o ser humano quer dialogar. A novidade fica por conta do canal apropriado para o compartilhamento: as redes sociais. Não mais as cartas do passado, tampouco telefonemas, o veículo é público e instantâneo. Público, porque as redes sociais têm o poder de dar a notícia do fato a todos que estejam conectados à internet. Instantâneo, porque ao alcance de um clique no mouse do computador. 

E qual o sentido de anunciar no Twitter a data da própria morte ou, pior, compartilhar no Facebook as fotos do próprio suicídio? Para além do sofrimento implícito na mensagem, nota-se o anseio de aplacar o vazio de uma existência ignorada, o desejo mórbido e desesperado de destacar-se, de tornar-se visível. Como num show funesto e sensacionalista, vai-se ao cúmulo de anunciar a própria morte. Só assim não se morre em vão.  

Nos tempos líquidos das redes sociais, morrer em vão confunde-se com o anonimato. Nas fotos do casamento não compartilhadas, tanto quanto na morbidez da despedida de um suicida, o temor é o mesmo: ser ignorado, deixado para trás, não despertar reação. A intimidade da morte cede ante o espetáculo da existência, que deve a todo o momento dar publicidade ao existir. Não se trata do co-existir, do existir com o outro. O que se expõe diante do espaço público é o existir individualmente considerado - ainda que em vias de passamento.    

Para as gerações que crescem inspiradas pelas redes sociais, não há pena mais grave que a anonimidade. Porque a privacidade perde sua supremacia, a morte sai do seu recôndito social costumeiro. Transformado em espetáculo, o suicídio toma a forma de derradeiro "show" da existência. É preciso compartilhá-lo, é preciso anunciá-lo. Morrer não significa nada sem que os outros saibam.   

REFERÊNCIAS
DIDION, Joan. O ano do pensamento mágico. Tradução Paulo Andrade Lemos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 220 p.