quinta-feira, 19 de junho de 2014

"TRIAL OF THE CENTURY": vinte anos depois, o julgamento de O. J. Simpson continua a influenciar o jornalismo no mundo


Em 1992, Orenthal James Simpson divorciou-se de sua esposa, Nicole Brown Simpson. Ela o acusou de violência doméstica. Ele, sem contestar a acusação, concordou com o fim de um casamento conturbado, passando a pagar a pensão alimentícia devida aos dois filhos gerados pela união – Sidney Brooke Simpson e Ryan Simpson.

À época, Orenthal James, mais conhecido como O. J. Simpson, era uma das figuras mais populares dos Estados Unidos. Ídolo do futebol americano, ele inscrevera seu nome na história do esporte ao bater vários recordes na National Foootball League (NFL). Em 1985, foi um dos treze jogadores eleitos para o Pro Football Hall of Fame – o hall da fama do futebol americano profissional.  

O jovem O. J. Simpson: um dos maiores jogadores da história do futebol americano.
 
Aposentado como atleta, passou a trabalhar como comentarista na TV. Investiu também na carreira de ator. Fez pontas em seriados e participou de filmes. Seu trabalho mais conhecido no Brasil deu-se na trilogia de comédia policial “Corra que a Polícia Vem Aí” (The Naked Gun Series), dirigida por David Zucker e Peter Segal. Nos três filmes estrelados por Leslie Nielsen, O. J. Simpson atuou no papel do detetive Nordberg.     

Mas a carreira cheia de glórias no esporte, e a aparente ascensão no cinema, não escondiam o comportamento violento do desportista. Comumente apontado como agressor pelas suas ex-namoradas e ex-esposas, em 1994, viu sua reputação de ídolo do futebol ser totalmente destruída ante uma acusação de assassinato.  
 
People vs. Simpson: entendendo o caso O. J. Simpson
 
 
No dia 12 de junho daquele ano, Nicole Brown Simpson, ex-mulher do jogador, e Ronald Goldman, um amigo que trabalhava como garçom num restaurante que ela frequentava, foram encontrados mortos em Los Angeles. Eles haviam sido brutalmente esfaqueados na entrada da casa de Nicole. A polícia então indiciou O. J. Simpson pelo duplo homicídio.

A partir daí o que se viu foi um tipo de cobertura que viria a se tornar rotina nas agências de notícias mundiais: a veiculação de todos os detalhes do caso amplamente na imprensa. As emissoras de TV estadunidense (ABC, Fox, CBS, NBC, CNN etc.) cobriam cada nova informação sobre a investigação do assassinato de Nicole Brown e Ronald Goldman. Pouco importava sua relevância, seu caráter comprovado ou meramente especulativo. No circo interativo estabelecido em torno do jogador de futebol sentado no banco dos réus, tudo passou a ser notícia.

O. J. Simpson com a mulher, Nicole Brown, e os dois filhos do casal, Sidney e Ryan:
por trás da imagem de ídolo do esporte escondia-se um homem violento,
frequentemente acusado de violência doméstica.
 
Muito dessa azáfama midiática em torno do processo de O. J. Simpson devia-se à disputa pela audiência. As emissoras perceberam que a sociedade dos Estados Unidos estava chocada com o fato de que um ídolo do esporte, admirado nacionalmente, pudesse ter-se convertido repentinamente num assassino brutal. Contudo, essa ojeriza pela virtual conduta do atleta só aguçava a curiosidade do público, que assim se entretinha com as reviravoltas e manchetes do crime. Numa palavra, com a cobertura do processo People of the State of California vs. Orenthal James Simpson, a audiência estava garantida. Por isso a imprensa estadunidense apelidou o caso de “Trial Of The Century” (o "Julgamento do Século").       

Em 24 de janeiro de 1995, iniciou-se o julgamento O. J. Simpson. O veredito seria pronunciado em 3 de outubro do mesmo ano. Seu resultado não poderia ser mais controvertido. Simpson acabou absolvido da acusação de duplo assassinato pelo júri. Nos Estados Unidos, dada a popularidade do caso, ainda hoje há quem questione a inocência do ex-jogador. Livros são lançados, a narrar detalhes reveladores que, supostamente desconsiderados, teriam influenciado a conclusão equivocada favorável à absolvição. Familiares das vítimas dão entrevistas, inconformados com a circunstância de que a decisão do júri deixou os assassinatos de Nicole Brown e Ronald Goldman impunes. Não raro pessoas próximas a O. J. Simpson ganham voz na mídia; polêmicas, elas afirmam que ele confessou privadamente ser o assassino.


Capa das revistas "Newsweek" e "TIME": em 1995 nenhum outro caso recebeu tanta atenção da mídia
quanto o julgamento de O. J. Simpson - o "julgamento do século".
 
Em 1997, numa reviravolta estranhíssima, posto que absolvido na esfera criminal, Simpson foi considerado culpado pelas mortes de Nicole e Ronald em um júri civil (no Brasil, isso não seria possível, haja vista a comunicabilidade prevalente da instância criminal sobre a cível nos crimes dolosos contra a vida). Sua pena foi pecuniária: indenizar a família das vítimas. Cadeia mesmo Simpson só veio a conhecer em 10 de outubro de 2008, mas por fato diverso. Nesse ano o ex-atleta foi condenado a 33 anos de prisão pelo roubo a mão armada do hotel-cassino “Palace Station” na cidade de Las Vegas. Atualmente Simpson cumpre pena no Lovelock Correctional Center em Lovelock, Estado de Nevada.  
 
As consequências do "Julgamento do Século": O. J. Simpson e o reality show da notícia

Vinte anos se passaram desde o encerramento do processo People vs. Simpson. Apesar disso, suas consequências se fazem presentes até hoje no jornalismo. Com uma audiência impressionante, o duplo homicídio de Nicole Brown  e Ronald Goldman criou aquilo que se convencionou chamar nos Estados Unidos de “O. J. TV”: dentro de uma sala de tribunal, dezenas de câmeras acompanhavam avidamente cada detalhe suscitado no embate entre acusação e defesa. As pessoas envolvidas no julgamento do crime tornaram-se personagens de um grande programa de televisão involuntário. O juiz Lance Ito e sua polêmica decisão de permitir que o júri fosse televisionado para todo o País (muitos analistas acusam-no de ter arruinado o processo); o advogado Robert Kardashian (pai da subcelebridade Kim Kardashian), que hospedou O. J. em sua casa nos dias seguintes ao fatídico 12 de junho de 1994 e que supostamente teria ajudado o homicida a desfazer-se das roupas sujas de sangue e da arma do crime; o hóspede da casa de O. J. e testemunha, Kato Kaelin, com seus cabelos loiros compridos, no melhor estilo “Kurt Cobain”; além do próprio O. J. Simpson, amado como desportista, repugnado como um assassino cruel, de face sombria e cenho impassível.
 
Juiz Lance Ito, que presidiu o júri do "julgamento do século:
criticado por permitir que o julgamento de O. J. Simpson fosse televisionado para todo o País.

Todas essas personagens só aumentavam a avidez do público pelo “julgamento do século”. Além do natural interesse em saber quem seria o responsável pelo duplo assassinato de Nicole e Ronald, havia também a curiosidade que acomete a todos diante de um ídolo em ruínas. E era exatamente isso o que a “O. J. TV” oferecia naquele ano de 1995: um gênio do esporte via-se desmascarado nacionalmente, exposto como um homem frio, violento, do tipo que tinha por hábito espancar mulheres no ambiente doméstico. Para piorar, o “circo da notícia” que se formou derredor do caso não hesitou em explorar a “questão racial” envolvida no caso: O. J. Simpson, o virtual assassino, era negro, ao passo que as vítimas eram brancas (todas as ex-esposas de O. J. haviam sido brancas). Não foram poucos os que passaram a condenar casamentos inter-raciais como estopim da crueldade.

Somados todos esses elementos da trama policial, aliando-os ao glamour do réu famoso, milhões de dólares esbanjados, sexo (O. J. fazia o gênero do atleta "predador sexual") e violência doméstica, explica-se o porquê de o processo de O. J. Simpson ter conseguido simultaneamente mobilizar todos os veículos da notícia (programas de rádio e televisão, capas de revistas, debates em talk shows, etc.) e cativar uma audiência gigantesca por quase dezesseis meses. Na época não se tinha a consciência, só adquirida posteriormente, de que, a partir do “julgamento do século”, a cobertura jornalística entrava numa transformação irreversível: a dos reality shows, da sofreguidão pelos detalhes mais sórdidos da vida das celebridades, das notícias relevantes e irrelevantes que a todo momento prendem a atenção do público consumidor de informação. Se hoje muitos associam credibilidade de um veículo jornalístico à sua capacidade de noticiar os fatos 24 horas, tal se deve ao caso de O. J. Simpson.

Em uma pequena loja na Flórida, pessoas param para assistir à transmissão do "julgamento do século".
Essa foi uma cena comum nos Estados Unidos durante os quase dezesseis meses
que envolveram a data do crime até o veredito definitivo pelo tribunal do júri.
 
É evidente que, após a popularização dessa nova forma de vender e consumir notícias, na qual se destaca a intenção manifesta de informar pormenores ininterruptamente, a fim de sustentar o interesse da audiência, a memória do processo People vs. Simpson já não gera estranhamento. É lógico supor que, em tempos de velocidade acelerada da notícia com a internet, as redes sociais tenham ocupado o papel desempenhado anteriormente pela televisão. Por isso crimes recentes similares, como o assassinato da modelo Reeva Steenkamp pelo seu namorado, o corredor sul-africano Oscar Pistorius, ou, no Brasil, o assassinato da atriz pornô Eliza Samudio pelo goleiro Bruno do Flamengo, não causam nem de longe o mesmo impacto proporcionado pelo fenômeno “O. J. TV”. Atualmente, pode-se dizer que o público dos noticiários está familiarizado com a cobertura incessante, com a exploração detalhada da vida das personagens, com a perquirição pormenorizada do passado dos acusados. Mas se hoje essa tendência se estabeleceu em nível mundial, é forçoso reconhecer que tudo começou naquele dia 12 de junho de 1994, quando Nicole Brown Simpson e Ronald Goldman foram brutalmente esfaqueados em Los Angeles, dando início assim ao “julgamento do século”.

E, afinal, O. J. Simpson cometeu os assassinatos? Hoje, vinte anos após o crime, continuamos sem saber. Provavelmente nunca saberemos com certeza.  

segunda-feira, 16 de junho de 2014

SABRINA (1954): Billy Wilder prova que é possível filmar comédias românticas inteligentes

 
Há algum tempo, em conversa com algumas amigas no trabalho, fui questionado se assistia a comédias românticas. Disse-lhes que sim. Minhas interlocutoras, então, visivelmente surpresas, afirmaram que minha imagem social de crítico rigoroso impunha-lhes o sobressalto, já que “comédias românticas” são filmes “água com açúcar”. Segundo elas, eu não me encaixo no perfil de um espectador desse tipo de longas.     

De fato, elas têm razão. Não sou do tipo que assiste a muitas comédias românticas. Prefiro muito mais um bom faroeste. Mas preferências pessoais não devem tolher os olhos do crítico. Quem se deixa engessar pelo gosto, corre o risco de nunca experimentar o fascínio da descoberta duma grande obra cinematográfica. De outra banda, há o aspecto pessoal. Tive uma namorada que adorava comédias românticas – e fazia questão que eu a acompanhasse ao cinema para assistir a esse gênero de filmes. É aquela velha história: um namoro, para dar certo, implica concessões de lado a lado. Eu a convidava para assistir à minha coleção de DVDs da Deutsche Grammophon com as gravações das sinfonias de Beethoven, sob a regência do magnífico Herbert von Karajan, e ela me levava ao cinema para assistir às comédias românticas. Parecia-me justo.    

Humphrey Bogart, Audrey Hepburn e William Holden formam o triângulo amoroso
que conduz a trama de "Sabrina", de Billy Wilder.
 
No entanto, a audiência desses filmes "água com açúcar" nunca me impediu de deitar-lhes um olhar crítico rigoroso. Submetidos a esse juízo, admito: era difícil aturar a sua maioria. Quase sempre eram histórias românticas, a envolver um casal apaixonado em busca do amor imorredouro. No meio de um enredo insípido, que o mais das vezes calcava-se na exploração da beleza dos seus protagonistas e numa trilha sonora composta propositalmente em tom meloso, surgiam algumas piadas, como que a justificar a ideia de uma “comédia” suavizada pela linha do romance. Em alguns filmes, os gracejos até funcionavam e faziam-me rir; noutros nem isso. No final, minha satisfação principal era ver minha ex-namorada feliz. E só.  

É evidente que o fato de os estúdios de Hollywood atualmente produzirem comédias românticas em escala industrial, a maioria delas muito ruins, não arrefeceu a minha verve de pesquisador da arte.  Movido pela curiosidade, passei a procurar comédias românticas que eu pudesse considerar exemplos genuínos de cinema de qualidade dentro dum gênero tão maltratado. Foi assim que descobri Sabrina, de Billy Wilder.

Sabrina (Audrey Hepburn) e Linus (Humphrey Bogart) dançam
em cena de "Sabrina", de Billy Wilder.
 
Sabrina é um filme de 1954. Apesar de dirigido por Billy Wilder, um dos grandes diretores da “Era de Ouro” de Hollywood, costuma ser lembrado pela sua protagonista: a atriz belga Audrey Hepburn, que se tornou internacionalmente um ícone de beleza e estilo. Com efeito, não foram poucas as vezes que ouvi alguém dizer que "Sabrina é o filme da Audrey".     

A história de Sabrina não é nem um pouco original. Hepburn interpreta Sabrina Fairchild, a moça pobre, filha do chofer da rica e tradicional família de industriais Larrabee. Ela mora, juntamente com seu pai, na luxuosa propriedade onde dois irmãos bem diferentes convivem. De um lado, David Larrabee (William Holden) encarna o típico playboy; ele ama carros velozes e seu esporte favorito é conquistar (belas) mulheres. Em sentido diametralmente oposto, apresenta-se Linus Larrabee (Humphrey Bogart), o primogênito responsável e workaholic, um homem brilhante nos negócios e frio como um cubo de gelo. Sabrina é apaixonada por David desde a infância. Mas o mulherengo bonitão despreza-a. Na cena inicial do filme, ele chega a ser cruel ao insinuar que ela não era “ninguém”. 

Sabrina (Audrey Hepburn) encontra David (William Holden), seu grande amor de infância.
 
Qual a típica heroína romântica, Sabrina sofre pelo seu amado. Sofre tanto e tão intensamente, que tenta suicidar-se aspirando o gás que sai do escapamento dos carros da garagem sobre a qual dorme seu pai. Mas sua tentativa fracassa, interrompida pelo sisudo Linus, que assim a impede de morrer como uma doudivana apaixonada.

No dia seguinte, estimulada por seu pai, Sabrina parte para Paris, onde participará dum curso de culinária francesa. Na capital francesa, sua vida muda quando conhece o barão St. Fontanel (Marcel Dalio), um homem rico e distinto, que a ajuda a transformar-se numa autêntica dama parisiense. 

É essa Sabrina transformada pelos ares de Paris - educada, refinada e cheia de estilo - que retornará à mansão dos Larrabee em Long Island dois anos depois. Imediatamente ela desperta a paixão de David, o homem que secretamente sempre amou. O problema é que o playboy está de casamento marcado com Elizabeth Tyson (Martha Hyer), um matrimônio que é bom para os negócios da família. O fleumático Linus, então, intervém para impedir que o romance de David e Sabrina estrague seus planos de expansão industrial. Arquitetando um plano para afastar o casal, Linus passa a conviver diretamente com Sabrina. Sem perceber, ele próprio vai se apaixonando pela filha do chofer. 

A química do casal interpretado por Bogart e Hepburn é um dos aspectos mais cativantes
do amor romântico em "Sabrina", de Billy Wilder.
 
Como se vê, nesse enredo simples, temos o arquétipo da "Cinderela moderna". Não há nada de novo no roteiro baseado na peça de Samuel A. Taylor. E a história, se conduzida por mãos inábeis, fatalmente estaria condenada ao esquecimento como tantas outras baseadas no mesmo mote. Todavia, o filme é dirigido por Billy Wilder, o diretor que marcou época na “Era de Ouro” com “Crepúsculo dos Deuses” (Sunset Boulevard, 1950), onde já demonstrara sua capacidade para a condução de dramas. Talentoso, Wilder consegue entreter de maneira inteligente a partir do roteiro previsível dum conto de fadas. O resultado é um filme delicioso, que concilia romance e comédia de forma mui competente.  

Grande parte do sucesso da proposta do diretor reside no triângulo amoroso formado pelos protagonistas. Hepburn, apesar de muito jovem, brilha no papel de Sabrina com seus olhos grandes, expressivos, e seu rosto angelical. Ela encarna com mestria a moça doce e sensível, romântica ao extremo (não nos esqueçamos de que ela tentou até o suicídio!), que, apesar do “banho de loja” que tomou em Paris, continua a exibir a mesma fragilidade diante do amor. Para usar uma expressão popular, Sabrina Fairchild é aquilo que se poderia chamar de “manteiga derretida”, o que fica bem evidente no diálogo travado com seu pai, Thomas Fairchild (John Williams), logo após seu retorno de Paris:

Thomas Fairchild: He's still David Larrabee, and you're still the chauffeur's daughter, and you're still reaching for the moon.

Sabrina Fairchild: No, father. The moon's reaching for me. [1]

Ao lado da protagonista, Holden empresta seu carisma ao playboy que interpreta, tornando-o divertido sem ser canastrão. E, claro, desnecessário dizer que a atuação sempre sólida de Humphrey Bogart constitui o contraponto necessário ao romantismo inconteste de Sabrina: ele não é apenas o industrial frio e magoado com o amor; ele representa o coração de pedra que a doçura de Sabrina há de amolecer.

Sabrina Fairchild: Maybe you should go to Paris, Linus.

Linus Larrabee: To Paris?

Sabrina Fairchild: It helped me a lot. Have you ever been there?

Linus Larrabee: [thinks] Oh, yes. Yes. Once. I was there for thirty-five minutes.

Sabrina Fairchild: Thirty-five minutes?

Linus Larrabee: Changing planes. I was on my way to Iraq on an oil deal.

Sabrina Fairchild: Oh, but Paris isn't for changing planes, it's... it's for changing your outlook, for... for throwing open the windows and letting in... letting in la vie en rose.

Linus Larrabee: [sadly] Paris is for lovers. Maybe that's why I stayed only thirty-five minutes. [2]

Mas Sabrina é uma comédia romântica que, não obstante sua sutileza, desafia temas de forte conteúdo moral. É o que se percebe no temor que sente Linus em deixar-se enamorar por uma moça como Sabrina Fairchild. Avaliando a relação de modo racional, ter-se-ia de enfrentar um fato duplamente escandaloso: o do homem rico, filho de uma das mais tradicionais famílias de Nova York, envolvido com a empregada; mas também o do homem mais velho que se interessa por uma mulher bem mais nova. Convenhamos que, para um filme de 1954, esses temas eram tabus dignos duma sociedade conservadora. Nesse sentido, a afirmação de Thomas Fairchild é sutil, porém duma perspicacidade ímpar:

Thomas Fairchild: Democracy can be a wickedly unfair thing, Sabrina. Nobody poor was ever called democratic for marrying somebody rich.[3]  

Todos esses elementos, somados, convergem para que Sabrina deixe de ser apenas mais uma “história da Cinderela moderna” como tantas outras a que já nos habituamos a ver. O filme dirigido por Billy Wilder tem o mérito de divertir de maneira inteligente, com personagens bem construídos, diálogos inspirados (a justificativa que Linus usa para dar um beijo em Sabrina, a afirmar que “está tudo em família”, é impagável), uma protagonista carismática (Audrey Hepburn empresta a Sabrina um jeitinho meigo que é encantador, diria até irresistível). Acima de tudo, o filme acerta na trilha sonora, que se encaixa com perfeição à trama da moça pobre e romântica que tem sua vida mudada para sempre em Paris (“La Vie En Rose”, de Edith Piaf e Louis Gugliemi, e “Isn’t It Romantic?”, de Richard Rogers com letra de Lorenz Hart, compõem o material sonoro que embala delicadamente o desenvolvimento do triângulo amoroso).    

Portanto, para todos aqueles que procuram uma comédia romântica inteligente, Sabrina, de Billy Wilder, é um filme mais do que recomendado. É o tipo de divertimento que vale a pena compartilhar com a namorada, especialmente se ambos os espectadores estiverem dispostos a abrir a "janela dos seus corações", mudar suas perspectivas e deixar-se enxergar "a vida cor de rosa", tal como propõe a doce e adorável Sabrina.

Notas:

[1] Tradução minha:

Thomas Fairchild: Ele ainda é David Larrabee, e você ainda é a filha do chofer, e você ainda está tentando alcançar à lua.

Sabrina Fairchild: Não, pai. A lua é que está tentando me alcançar.

[2] Tradução minha:

Sabrina Fairchild: Talvez você devesse ir a Paris, Linus.

Linus Larrabee: A Paris?

Sabrina Fairchild: Isso me ajudou muito. Você já esteve lá?

Linus Larrabee: Ah, sim. Sim. Uma vez. Fiquei por trinta e cinco minutos..

Sabrina Fairchild: Trinta e cinco minutos?

Linus Larrabee: Fazendo escala. Eu estava a caminho de um negócio de petróleo no Iraque.

Sabrina Fairchild: Oh, mas Paris não é para fazer escala. É para mudar suas perspectivas, para abrir as janelas e poder ver… ver a vida “cor de rosa”.

Linus Larrabee: Paris é para os apaixonados. Vai ver foi por isso que fiquei apenas trinta e cinco minutos.

[3] Tradução minha:

Thomas Fairchild: A democracia pode ser uma coisa perversamente injusta, Sabrina. Ninguém que seja pobre foi chamado de “democrático” por se casar com alguém rico.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

"The Opposite of Loneliness: Essays and Stories" é legado imaturo de escritora talentosa


Em 2012, dias antes de sua formatura, a estudante estadunidense Marina Keegan publicou um ensaio no jornal Yale Daily News chamado “O oposto da solidão” (The Opposite of Loneliness). O texto havia sido escrito qual uma espécie de despedida da graduanda da Universidade de Yale (EUA). Por isso seu traço distintivo é a nostalgia típica de quem, ao completar sua formação universitária, também encerra um ciclo de vida.

Keegan inicia sua exposição de ideias com uma provocação instigante:

Nós não temos uma palavra para o oposto da solidão, mas, se tivéssemos, eu diria que é aquilo que eu quero na vida. É o que sou grata e agradecida por ter encontrado em Yale, e o que eu tenho medo de perder quando acordar amanhã e deixar este lugar. [1]

A seguir, ficamos sabendo que a convivência universitária no campus com os outros estudantes é aquilo que a autora considera “o oposto da solidão”:

Não é exatamente amor e nem comunidade; é apenas esta sensação de que há pessoas, um monte delas, que estão juntas nessa. Que estão no seu time. Quando a conta é paga e você fica na mesa. Quando são quatro da manhã e ninguém vai para a cama. Aquela noite com o violão. Aquela vez em que fizemos, fomos, vimos, rimos, sentimos. Os chapéus.

(...) Isso me assusta. Mais do que encontrar o emprego certo ou a cidade ou um marido – tenho medo de perder esta rede em que estamos. Este elusivo, indefinível, oposto da solidão. Esta sentimento que sinto agora. [2]

O ensaio de Marina Keegan fez muito sucesso nas redes sociais à época de sua publicação. Este ano, compilado pelos editores da Simon & Schuster juntamente com outros textos da autora, foi convertido em livro (The Opposite of Loneliness: Essays and Stories, 2014, sem tradução para o português), que rapidamente passou a figurar nas listas de best-sellers dos Estados Unidos.     

Muito desse sucesso deve-se menos à qualidade dos textos em si que ao marketing involuntário proporcionado pela tragédia que acometeu sua autora: Marina Keegan morreu poucos dias após sua formatura em Yale num acidente de carro numa estrada em Dennis, Massachusetts (seu namorado, Michael Gocksch, conduzia o veículo e aparentemente dormira ao volante). É natural, portanto, que, sob a comoção da morte, o juízo crítico se apiede. Só assim se pode explicar os elogios rasgados que o crítico Harold Bloom, que foi seu professor em Yale, fez ao livro.

Marina Keegan com seus pais em sua formatura na Universidade de Yale (EUA) em maio de 2012.
Dias depois Marina morreria num trágico acidente de carro em Massachusetts.
 
De fato, observando-se a prosa de Marina Keegan, nota-se de imediato que seu texto carece de maturidade. Algumas de suas observações são até perspicazes, como em “Even Artichokes Have Doubts”, reportagem que ela escreveu a respeito de como os graduandos em Yale ingressam na rotina do mercado financeiro. Mas muitas das suas reflexões sobre a vida e as pessoas soam pueris (ao menos para mim). Ela própria assina um texto chamado “The Ingenue”.

Assim, o grande problema de um livro como The Opposite of Loneliness: Essays and Stories não é a falta de talento da autora, mas sim a falta de tempo. Marina Keegan, que tinha indiscutível habilidade literária, ainda tinha muito que evoluir – e seria formidável assistir a essa evolução. Infelizmente, sua morte precoce aos 22 anos de idade impediu em definitivo seu amadurecimento como escritora.    
A jovem escritora Marina Keegan (1990-2012).
Dessa maneira, parece-me ainda valiosa a observação do editor Jack Hitt que, em artigo intitulado “Remembering Marina Keegan”, publicado na revista The New Yorker poucas semanas depois do acidente que ceifou a vida da jovem estudante, sentenciou: “Para sua família e amigos, a dor é íntima e pessoal. Mas para alguns em nosso campo – produtores e editores, jornalistas e escritores, a perda de Marina é um tipo diferente de tragédia. Perdemos um talento antes de chegarmos a conhecê-lo.”

Marina Keegan era exatamente isto: uma estudante talentosa que, após concluída sua graduação, tinha um futuro intelectualmente promissor pela frente. Tinha. Pois a morte trágica impediu-a de lapidar seu talento. Uma pena, porque The Opposite of Loneliness: Essays and Stories é ainda um legado muito pequeno para uma mente literária pujante pelas ideias, mas claudicante pelo estilo imaturo.        

Notas:
 
[1] Tradução minha.

[2] Tradução minha.

[3] Abaixo o leitor confere a versão original, em inglês, do ensaio “O Oposto da Solidão”, publicado no Yale Daily News em maio de 2012.

“We don’t have a word for the opposite of loneliness, but if we did, I could say that’s what I want in life. What I’m grateful and thankful to have found at Yale, and what I’m scared of losing when we wake up tomorrow and leave this place.

It’s not quite love and it’s not quite community; it’s just this feeling that there are people, an abundance of people, who are in this together. Who are on your team. When the check is paid and you stay at the table. When it’s four a.m. and no one goes to bed. That night with the guitar. That night we can’t remember. That time we did, we went, we saw, we laughed, we felt. The hats.

Yale is full of tiny circles we pull around ourselves. A cappella groups, sports teams, houses, societies, clubs. These tiny groups that make us feel loved and safe and part of something even on our loneliest nights when we stumble home to our computers — partner-less, tired, awake. We won’t have those next year. We won’t live on the same block as all our friends. We won’t have a bunch of group-texts.

This scares me. More than finding the right job or city or spouse – I’m scared of losing this web we’re in. This elusive, indefinable, opposite of loneliness. This feeling I feel right now.

But let us get one thing straight: the best years of our lives are not behind us. They’re part of us and they are set for repetition as we grow up and move to New York and away from New York and wish we did or didn’t live in New York. I plan on having parties when I’m 30. I plan on having fun when I’m old. Any notion of THE BEST years comes from clichéd “should haves…” “if I’d…” “wish I’d…”

Of course, there are things we wished we did: our readings, that boy across the hall. We’re our own hardest critics and it’s easy to let ourselves down. Sleeping too late. Procrastinating. Cutting corners. More than once I’ve looked back on my High School self and thought: how did I do that? How did I work so hard? Our private insecurities follow us and will always follow us.

But the thing is, we’re all like that. Nobody wakes up when they want to. Nobody did all of their reading (except maybe the crazy people who win the prizes…) We have these impossibly high standards and we’ll probably never live up to our perfect fantasies of our future selves. But I feel like that’s okay.

We’re so young. We’re so young. We’re twenty-two years old. We have so much time. There’s this sentiment I sometimes sense, creeping in our collective conscious as we lay alone after a party, or pack up our books when we give in and go out – that it is somehow too late. That others are somehow ahead. More accomplished, more specialized. More on the path to somehow saving the world, somehow creating or inventing or improving. That it’s too late now to BEGIN a beginning and we must settle for continuance, for commencement.

When we came to Yale, there was this sense of possibility. This immense and indefinable potential energy – and it’s easy to feel like that’s slipped away. We never had to choose and suddenly we’ve had to. Some of us have focused ourselves. Some of us know exactly what we want and are on the path to get it; already going to med school, working at the perfect NGO, doing research. To you I say both congratulations and you suck.

For most of us, however, we’re somewhat lost in this sea of liberal arts. Not quite sure what road we’re on and whether we should have taken it. If only I had majored in biology…if only I’d gotten involved in journalism as a freshman…if only I’d thought to apply for this or for that…

What we have to remember is that we can still do anything. We can change our minds. We can start over. Get a post-bac or try writing for the first time. The notion that it’s too late to do anything is comical. It’s hilarious. We’re graduating college. We’re so young. We can’t, we MUST not lose this sense of possibility because in the end, it’s all we have.

In the heart of a winter Friday night my freshman year, I was dazed and confused when I got a call from my friends to meet them at EST EST EST. Dazedly and confusedly, I began trudging to SSS, probably the point on campus farthest away. Remarkably, it wasn’t until I arrived at the door that I questioned how and why exactly my friends were partying in Yale’s administrative building. Of course, they weren’t. But it was cold and my ID somehow worked so I went inside SSS to pull out my phone. It was quiet, the old wood creaking and the snow barely visible outside the stained glass. And I sat down. And I looked up. At this giant room I was in. At this place where thousands of people had sat before me. And alone, at night, in the middle of a New Haven storm, I felt so remarkably, unbelievably safe.

We don’t have a word for the opposite of loneliness, but if we did, I’d say that’s how I feel at Yale. How I feel right now. Here. With all of you. In love, impressed, humbled, scared. And we don’t have to lose that.

We’re in this together, 2012. Let’s make something happen to this world.”