sábado, 15 de novembro de 2014

O FAZEDOR DE AMANHECER QUE APANHAVA DESPERDÍCIOS: uma homenagem ao poeta Manoel de Barros (1916-2014)

 
Manoel de Barros nasceu no dia 19 de dezembro de 1916 em Cuiabá, no Estado do Mato Grosso. Cresceu numa propriedade rural, em meio a animais e a típica cultura interiorana. Isso explica a profunda ligação de sua poesia à terra e às coisas do campo. Formou-se em Direito, é verdade. Mas a única profissão que verdadeiramente abraçou na vida foi a do artesão dos versos. Manoel de Barros nasceu poeta: tinha uma raríssima sensibilidade para transcrever em palavras as pequenezas da vida.

A estreita ligação de Manoel de Barros à vida camponesa encontra-se ilustrada na entrevista que deu ao documentarista Pedro Cézar, que dirigiu o longa “Só dez por cento é mentira”, de 2008. “Meu pai me sustentou muito tempo. Também me dava tudo errado. Arranjei vários empregos. Trabalhava um pouco, achava chato, desistia. Passei dez anos no Pantanal com a minha mulher. Depois de dez anos eu consegui que a minha fazenda desse renda pra eu ficar à toa. Significa o seguinte: ficar à toa era eu ficar à disposição da poesia. Então eu comprei o ócio. Aí que eu pude ser o vagabundo profissional como eu sou agora”, declarou o poeta.

Mas a declaração de Manoel de Barros revela também uma compreensão profunda do fazer poético – e uma concepção peculiar de arte. Como que a retomar o aforismo prefaciado por Oscar Wilde em “O Retrato de Dorian Gray”, no qual o dramaturgo irlandês sentenciou que “Toda arte é absolutamente inútil”, Manoel de Barros admite a inutilidade do seu ofício do ponto de vista pragmático. Dando de ombros às ambições materiais do mundo, recolhe-se à paisagem que se torna assim a moldura da sua vida. Eis o quadro que ele se põe a pintar em versos delicados, que vão compondo neologismos com os quais subverte convenções da gramática normativa culta à medida que revela ao mundo sentidos prenhes de uma especial sensibilidade campônia. Na grandeza da sua simplicidade, Manoel de Barros precisou reinventar a própria língua e fazê--la menos complicada, torna-la menos "prestável", menos "útil".

Nesse sentido, Manoel de Barros foi um poeta revolucionário na Literatura brasileira. Fez da linguagem o campo minado de sua recusa à mesquinheza do mundo urbano cúpido. Anunciando a si próprio como um vagabundo, um não-trabalhador, o poeta se punha, humílimo, ao serviço de sua arte, agora também sua profissão inútil. Insciente de sua relevância artística, ou propriamente não se importando com vãos vaidosismos, fazia apenas o que gostava. E como todo grande homem das letras gostava de escrever. Então escrevia sobre o mundo em que vivia, sobre a natureza do Pantanal junto ao qual crescera e que amava. Escrevia e cuidava de cinzelar a linguagem. Seu propósito era um só e muito simples: apanhar os desperdícios deixados por uma existência humana depauperada de sensibilidade, de beleza, de felicidade. A felicidade que o poeta não encontrava no agito da vida citadina, com suas disputas intermináveis por status egóicos, contracheques pragmáticos, maquinarias úteis. O poeta banhava-se na placidez desimportante da chuva, ouvia música na sinfonia magnânima do coaxar dos sapos num regato. Manoel não precisava frequentar aeroportos para voar em aviões; ele tinha seus insetos. Nunca se apressava como o homem que corre para bater o ponto na repartição. Manoel andava lento como as tartarugas e falava o sotaque impronunciável das águas.

Foi esse o poeta que quis renovar o homem usando borboletas, admitiu ouvir o tamanho oblíquo de uma folha; ousou amar os restos como as moscas, a celebrar a riqueza da própria incompletude. Foi esse o poeta que na sua obra confessou ter desapetite para inventar coisas prestáveis, ter sido aparelhado para gostar de passarinhos, a regozijar-se com o que aprendera di-menor com a natureza. E, reconhecendo que seu quintal é maior que o mundo, para usamento de todos os poetas, versificou com a simplicidade sentimental que sempre foi peculiar à poesia de um fazedor de amanhecer: tenho abundância de ser feliz.

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