sábado, 14 de janeiro de 2012

Minha Metamorfose do Mal

          Ao leitor que acompanha este blog na sua primeira postagem, o título "Metamorfose do Mal" pode ter soado tonítruo em seu coração. Se assim sucedeu, suscitando, ainda que por um milésimo inconsciente de segundo, sentimentos aterradores na leitura duma simples palavra, então meu desejo de iniciar publicações num "diário virtual" como este terá cumprido o primeiro de seus objetivos. Pois tonitruância é palavra-chave a definir a prosa poética do poeta austríaco Georg Trakl - a quem rendo minha homenagem com este blog. 
          Conheci Trakl ainda na adolescência, influenciado pelo meu então professor de Literatura no Ensino Médio, Rômulo S'antanna, que era germanista. O Prof. Rômulo, que adiante tornar-se-ia integrante do meu restritíssimo acervo de amigo pessoais (até sua morte prematura, vítima de cancro, em 2004), abriu-me as portas da poesia expressionista em língua alemã ao emprestar-me Menschheitsdämmerung: Ein Dokument des Expressionismus (1920), celebérrima antologia organizada pelo escritor Kurt Pinthus com alguns dos poetas mais representativos do movimento expressionista alemão. E, de todos os poetas antologiados por Pinthus, Trakl foi, de longe, o que mais me impressionou.
          Se é certo dizer que não constitui tarefa das mais difíceis impressionar um adolescente de 16 anos em tenra formação cultural de leitor (como eu era quando li pela primeira vez Trakl), de outro ponto de vista haveria de reconhecer, anos depois, que a obra do poeta austríaco não foi apenas um arroubo intelectual ingênuo da adolescência, mas sim um "divisor de águas" na minha vida como um todo, guiando-me pelo mundo da poesia de maneira inarredável, tornando-a um combustível de minha alma que, uma vez esgotado, esgotará também minha existência.
          Georg Trakl tem sido desde então qual uma sombra a perseguir-me, a toldar-me a visão onírica; sob o manto da qual vez ou outra me escondo, para logo depois descobrir meus sentimentos enredados nos seus versos pungentes como uma lança traspassando todo o meu coração. É, como toda a gente já o notou, meu poeta favorito. E, por influência dele, tornei-me admirador de outros gênios da prosa poética, como os franceses Baudelaire e Rimbaud.
          Trakl é, todavia, desconhecido do grande público brasileiro - incluindo o dos leitores mais cultos. Tal não é culpa da parca obra poética que produziu até suicidar-se, atormentado por demônios interiores, em 1914, contando apenas 27 anos de idade, senão que muito pouco dele se traduziu ao português, obrigando o leitor a lê-lo diretamente em alemão. É o que faço, sentindo-me um privilegiado em ler seus versos sem a intermediação dum tradutor, mas cumpre não ignorar o peso da injustiça que condena um artista de sua envergadura ao olvido de todos os leitores de nosso País que não leem com fluência em alemão. Por isso este blog se chama "Metamorfose do Mal", reportando seu título a um dos mais lindos exercícios poemáticos em prosa que o gênio humano já foi capaz de conceber na história da literatura mundial. Trata-se de Verwandlung des Bösen, expressão no original em alemão para o título deste blog e que nomeia meu poema favorito de Trakl. Reproduzo-o abaixo (em alemão, no que me desculpo junto aos que não dominam o idioma tudesco, pois a versão vertida lindamente ao português por Modesto Carone ainda necessita ser achada nalgum lugar do meu escritório) qual um "presente" de boas-vindas ao leitor que decida acompanhar os meus escritos neste espaço virtual.
          Antes, faço apenas uma ressalva metodológica no que toca a este blog: não tenho pretensões de tornar-me blogueiro conhecido. Nem creio mesmo que alguém com as ideias, sensibilidade e gostos que possuo possa vir a ser alguém "popular", pois não desejo fraudar minha personalidade no seu grau mais sincero para agradar quem quer que seja, transigindo com a mediocridade imperante no corpo social ou emulando uma tentativa canhestra de popularidade pela condescendência em relação a tudo que de ruim ora se tem apresentado ao leitor como "arte". Quando muito, terei um microuniverso de leitores (se o tiver!). Nada disso importa, entretanto. Porque, no fundo, estou a escrever para mim, isto é, para falar comigo mesmo, dada a dificuldade de encontrar, fora dos livros que leio, interlocutores dotados de uma sensibilidade humana superior (é o "vazio" da humanidade que tanto me incomoda...).
          De qualquer forma, sentir-me-ei feliz se puder ajudar alguém, em algum lugar do mundo, a descobrir a si próprio hipnotizado pela imagética expressionista dos poemas traklianos. A tornar-se alguém mais sensível, mais humano. E é nessa toada que o leitor perceberá, ensimesmado, petrificado pela força de versos de dores lancinantes, o sentido visceral do poema de Trakl. É quando o ato de olhar-se no espelho deixa de ser a contagem prosaica duma piscadela e passa a ser a simbiose de sua "metamorfose do mal".
           Vivi minha própria "metamorfose do mal" ainda cedo, como expus acima, na adolescência como leitor. E, desde aquele dia, não quis separar-me dela nunca mais.
          Fiquem com Georg Trakl, então:
Verwandlung des Bösen
Herbst: schwarzes Schreiten am Waldsaum; Minute stummer Zerstörung; auflauscht die Stirne des Aussätzigen unter dem kahlen Baum. Langvergangener Abend, der nun über die Stufen von Moos sinkt; November. Eine Glocke läutet und der Hirt führt eine Herde von schwarzen und roten Pferden ins Dorf. Unter dem Haselgebüsch weidet der grüne Jäger ein Wild aus. Seine Hände rauchen von Blut und der Schatten des Tiers seufzt im Laub über den Augen des Mannes, braun und schweigsam; der Wald. Krähen, die sich zerstreuen; drei. Ihr Flug gleicht einer Sonate, voll verblichener Akkorde und männlicher Schwermut; leise löst sich eine goldene Wolke auf. Bei der Mühle zünden Knaben ein Feuer an. Flamme ist des Bleichsten Bruder und jener lacht vergraben in sein purpurnes Haar; oder es ist ein Ort des Mordes, an dem ein steiniger Weg vorbeiführt. Die Berberitzen sind verschwunden, jahrlang träumt es in bleierner Luft unter den Föhren; Angst, grünes Dunkel, das Gurgeln eines Ertrinkenden: aus dem Sternenweiher zieht der Fischer einen großen, schwarzen Fisch, Antlitz voll Grausamkeit und Irrsinn. Die Stimmen des Rohrs, hadernder Männer im Rücken schaukelt jener auf rotem Kahn über frierende Herbstwasser, lebend in dunklen Sagen seines Geschlechts und die Augen steinern über Nächte und jungfräuliche Schrecken aufgetan. Böse.
Was zwingt dich still zu stehen auf der verfallenen Stiege, im Haus deiner Väter? Bleierne Schwärze. Was hebst du mit silberner Hand an die Augen; und die Lider sinken wie trunken von Mohn? Aber durch die Mauer von Stein siehst du den Sternenhimmel, die Milchstraße, den Saturn; rot. Rasend an die Mauer von Stein klopft der kahle Baum. Du auf verfallenen Stufen: Baum, Stern, Stein! Du, ein blaues Tier, das leise zittert; du, der bleiche Priester, der es hinschlachtet am schwarzen Altar. O dein Lächeln im Dunkel, traurig und böse, daß ein Kind im Schlaf erbleicht. Eine rote Flamme sprang aus deiner Hand und ein Nachfalter verbrannte daran. O die Flöte des Lichts; o die Flöte des Tods. Was zwang dich still zu stehen auf verfallener Stiege, im Haus deiner Väter? Drunten ans Tor klopft ein Engel mit kristallnem Finger.
O die Hölle des Schlafs; dunkle Gasse, braunes Gärtchen. Leise läutet im blauen Abend der Toten Gestalt. Grüne Blümchen umgaukeln sie und ihr Antlitz hat sie verlassen. Oder es neigt sich verblichen über die kalte Stirne des Mörders im Dunkel des Hausflurs; Anbetung, purpurne Flamme der Wollust; hinsterbend stürzte über schwarze Stufen der Schläfer ins Dunkel.
Jemand verließ dich am Kreuzweg und du schaust lange zurück. Silberner Schritt im Schatten verkrüppelter Apfelbäumchen. Purpurn leuchtet die Frucht im schwarzen Geist und im Gras häutet sich die Schlange. O! das Dunkel; der Schweiß, der auf die eisige Stirne tritt und die traurigen Träume im Wein, in der Dorfschenke unter schwarzverrauchtem Gebälk. Du, noch Wildnis, die rosige Inseln zaubert aus dem braunen Tabaksgewölk und aus dem Innern den wilden Schrei eines Greifen holt, wenn er um schwarze Klippen jagt in Meer, Sturm und Eis. Du, ein grünes Metall und innen ein feuriges Gesicht, das hingehen will und singen vom Beinerhügel finstere Zeiten und den flammenden Sturz des Engels. O! Verzweiflung, die mit stummem Schrei ins Knie bricht.
Ein Toter besucht dich. Aus dem Herzen rinnt das selbstvergossene Blut und in schwarzer Braue nistet unsäglicher Augenblick; dunkle Begegnung. Du - ein purpurner Mond, da jener im grünen Schatten des Ölbaums erscheint. Dem folgt unvergängliche Nacht.