segunda-feira, 27 de maio de 2013

O VIOLÃO E AS MULHERES


10. Estime seu violão como se ele fosse a mulher amada.
Trate-o com carinho, conserve-o sempre afinado
e troque as cordas de vez em quando.
E se um dia o amor terminar, não o troque por uma sofisticada guitarra elétrica.
Lembre-se do que ele representou para você.
Paulinho Nogueira, "Décimo Mandamento", in: "Os dez mandamentos do violonista".
  
Há algumas semanas, li duas reportagens que me chamaram a atenção. Havia em ambas uma mesma premissa: músicos fazem sucesso com as mulheres. Até aí nenhuma novidade, afinal, já faz parte do anedotário masculino tipicamente machista cousas nesse sentido. O que despertou meu interesse foi um pequeno detalhe: segundo os pesquisadores constataram, o galanteador sequer precisa saber tocar o instrumento. Basta a "imagem" para causar uma impressão diferenciada e conseguir mais facilmente o telefone de uma garota.

Esse é o tipo de pesquisa "científica" que precisa ser ponderada. Reflito: será que a ideia de um músico fazer sucesso com as mulheres é mesmo uma verdade universal? Ou será que há nuanças que não podem ser desconsideradas? Será que todo e qualquer instrumento é capaz de elevar as chances de sucesso no jogo da conquista?

Faço essas perguntas ridículas ao leitor. E, ridiculamente, chego a uma conclusão frustrante: não, nem todo músico faz sucesso com as mulheres. É muito fácil achar que todo músico é "pegador" quando pensamos em instrumentos populares, como o violão, ou requintados símbolos de status social, como o piano. Mas a coisa muda completamente de figura quando nos damos conta de que há um sujeito, neste momento, em algum conservatório do mundo, a estudar instrumentos tão insólitos quanto, por exemplo, o oboé ou a tuba. Alguém aí nessa pesquisa pensou em como há de se sentir um oboísta ao paquerar uma garota? 

"Oi. Tudo bem".

"Tudo bem."

"Eu te achei linda, sabias?"

"Ah! Obrigada", diz ela lisonjeada. E notando que o pretendente portava um instrumento de sopro, pergunta: "Que é isso na sua mão? Uma flauta gigante?"

"Ah, não, não. É um oboé."

"Obo... obo o quê?"

"Oboé. Eu toco oboé. Sou oboísta!" 

Só de pensar que existe alguém no mundo que saiba dizer que "quem toca oboé é oboísta" já me leva a crer que há algo de errado com essas pesquisas.

Imaginemos, então, o seguinte estereótipo (advirto que qualquer semelhança com a realidade não será mera coincidência): uma bela garota, dessas que cresceram a tomar whey protein na academia, praticando musculação, esculpindo o próprio corpo como o de uma musa grega calipígia, um mulherão daqueles que quando passa é de parar o trânsito. Imaginemos ainda que essa mesma garota, ao longo de sua vida, tenha, digamos assim, cultivado pouco as virtudes do espírito. Não é uma pessoa completamente inculta. Frequentou o colégio, onde ficou sabendo que existe um escritor brasileiro chamado Machado de Assis, mas cuja obra só conhece pelo resumo que leu para passar no vestibular. Faz "facul", passou até em Direito, que é "curso de elite" e "dá dinheiro". Nunca leu Walt Whitman ou Samuel Taylor Coleridge, mas é fluente em inglês, pois fez intercâmbio nos Estados Unidos e adora fazer compras em Miami. Ela veste roupas de grifes estrangeiras, de estilistas famosos, de gente chique das fashion week. Nas horas vagas, que não são poucas, além da malhação, como quase toda garota, gosta de dançar. Vai com as amigas a boates (entra de graça, pois a mulher, quando é muito gata, tem sempre entrada VIP na porta), já foi até a uma rave. Mas gosta mesmo é de um pagodinho, de um sertanejo universitário; gosta também daqueles congressos em cidades praianas, do tipo "micareta estudantil", em que não se aprende nada, mas tem muita "pegação", onde "a curtição vai rolar". Nunca entrou nula sala de concerto, nunca viu a apresentação de uma orquestra. Tudo o que conhece de música erudita veio da infância, quando ouvia (sem perceber) composições clássicas durante os episódios do Tom E Jerry. Agora me digam: como uma mulher assim vai se apaixonar por alguém que toca oboé - um instrumento tipicamente orquestral?       

Definitivamente, o estereótipo do "músico sedutor" não é uma verdade universal. Ele precisa ser interpretado com cuidado. Para usar uma expressão horrivelmente jurídica, é preciso analisar o caso concreto cum grano salis

Mas eu não serei injusto com os pesquisadores europeus das universidades não sei lá das quantas. A amostragem em que se basearam nunca foi tão ampla. Eles nunca tiveram a pretensão de afirmar que todo e qualquer músico levará vantagem com as mulheres. E é aí que entra o nosso querido e surrado amigo - o violão. Segundo essas doutas pesquisas, segurar um violão aumenta as chances de conseguir um encontro. Tem até percentual: 30% a mais de chances. É a matemática da paquera! E detalhe: nem é preciso saber tocar o instrumento. Só de carregar o violão o sujeito já parte na frente da concorrência ao abordar a moça.   

Essa última hipótese - digo, do paquerador que usa o violão para conquistar mulheres - é curiosa. Leva-me a recordar a minha trajetória enquanto estudante de música. Lembro-me de que, nos idos do conservatório, era comum ouvirmos falar que "músicos se dão bem com as mulheres". Mas esse sucesso mítico-anedótico dificilmente se aplicaria a mim e aos meus condiscípulos. Explico. Após ser aprovado no "teste de musicalização" do conservatório, eu tinha duas opções: estudar violão "clássico" ou violão popular. Optei pelo primeiro. Com isso, caí no limbo em que cai todo estudante de música erudita numa sociedade em que a quase totalidade das pessoas não ouve música erudita, isto é, a incompreensão. Não foram poucas as vezes em que me pediram para "tocar alguma coisa". E lá eu ia a executar peças de Carcassi, Sor, Giuliani. Depois, já avançado nos meus estudos musicais, incluí no meu repertório algumas sonatas e suítes. Para piorar, a minha maior paixão sempre foi a música erudita antiga. Assim, quase todo o meu repertório era composto de peças oriundas dos períodos barroco e renascentista, fortemente inspirado por Julian Bream, um violonista e alaudista especializado em... música antiga! Com o tempo, tive de me acostumar à decepção das pessoas ao me verem tocar o violão: 

"Ah, legal isso aí. Mas toca alguma coisa conhecida."

"Como assim 'conhecida'?", replicava. "Isto aqui é conhecido, pelo menos de quem gosta de música clássica."

"Sim, eu sei", respondia o interlocutor, fingindo conhecer música clássica para não parecer ignorante. "Eu sei que essa música é conhecida. Mas toca algo mais conhecido." 

E esse mesmo raciocínio aplicava-se às garotas da escola. Afinal, se já não é fácil encontrar hoje em dia um adulto ouvinte de música clássica, imagina então uma adolescente, no ano 2000, que admirasse um jovem estudante cultor de música erudita antiga.  

"Olá."

"Oi".

"Eu te achei muito linda, sabias? Que tal se me desses teu telefone? Aí eu te ligo e a gente pode sair qualquer dia desses. Que achas?"

"Espera, tu tocas violão?", diz a beldade, os olhos a brilhar entusiasmadamente.  

"Sim, toco."

"Toca pra mim!"

Então, depois da execução da Bourrée de J. S. Bach:

"E aí, gostaste?"

"Sim. Achei legal isso aí. Mas toca alguma coisa mais conhecida."

Esses exemplos servem para ilustrar outro equívoco dessas pesquisas. Elas não discriminam se o violonista é erudito ou popular. Porque se há um violonista a fazer sucesso com as mulheres, acreditem, ele com certeza toca música popular. Se bem que - e aqui eu retomo o aspecto inusitado da conclusão a que chegaram os pesquisadores que mencionei no início - nem é preciso saber tocar o instrumento para aumentar suas chances na paquera. Basta carregar o violão. E carregando o violão, popular ou erudito, todo violonista é igual.  

E foi desse jeito que eu logo percebi, ainda na minha tenra adolescência, que só o violão não bastaria para me ajudar a conquistar uma garota, que eu precisaria desenvolver outras habilidades úteis ao jogo no qual se busca encantar o coração de uma dama.

Porque me mantive fiel ao violão erudito, talvez tenha perdido os meus 30% de chances a mais de conquistar a garota mais bonita do colégio, a vênus calipígia que tem o poder de parar o quarteirão. Mas depois, com o tempo, mais amadurecido, percebi que o prejuízo nem foi tão grande assim; que há mulheres que gostam do sujeito que toca violão popular, como há mulheres que admiram quem toca violão erudito - ainda que estas últimas existam em número infinitamente menor.

E se o leitor me perguntasse se a minha fidelidade ao violão erudito foi opcional, eu responderia sem vacilar: "Não". Eu não optei em manter-me fiel à música erudita. Opção pressupõe possibilidade de escolha, pressupõe que haja alternativas. E alternativas eu nunca tive à minha disposição. Eu jamais poderia deixar aquela forma de arte. Se o fizesse, estaria a fraudar minha própria existência, a malferir meus sentimentos mais íntimos. E não há fardo mais triste na vida de um homem que o de amar uma mulher com o coração insincero, fingindo ser o que não é.    

terça-feira, 14 de maio de 2013

PRAÇA NOTURNA SOLITÁRIA



 
E naquele dia ele simplesmente parou. Largou seu caça-níquel, o marcador de texto, lápis e papel. Estava cansado. Seus olhos comidos pelo sono inconcluso da noite anterior. Noite de terror, noite de insônia. Levantou-se e deu a partida. Girou a chave no gancho do automóvel. Saiu. Roda pela pista, lê os letreiros pela madrugada. Vê falência em cada outdoor. Ignora seu caminho. Nem o paradeiro decidido recorda mais. Apenas segue. Precisa seguir. Continuar.

Pensa nos indícios de uma vida desperdiçada, em sonhos corroídos, lembranças vagas. Pensa e repensa. Já está a matutar quando percebe o horário num relógio digital da praça noturna solitária. É tarde, talvez tarde demais até para viver. Ali próximo estaciona seu carro. Há urgência naquela vinda. Há premência naquela chegada. Subitamente sente seu peito esmagar. Um colapso, um desatino! O equívoco dantesco de um louco, solitário, tartamudeando insistentemente o recobro de um preço que ele não sabe mais se está disposto a pagar. Infelicidade.  

Caminha pelo passeio. Ignora o que faz ali, simplesmente está. Diante de seus olhos surgem foliões mascarados. Eles brincam e dançam ridiculamente, assinalam palavras sem sentido, preenchem bolinhas com tinta preta num papel timbrado, competem entre si pelo veneno de um escorpião. Ele suspeita que desse ganha-pão cada qual quer um pedaço - daquele estado, daquele estádio, daquele status. São egos sedentes que recalcitram em subir por elevadores descoordenados, que vão dar nas colunas dos jornais de domingo, logo pela manhã, quando uma criança chora de fome mas ninguém ouve os seus berros.

Agora estão todos assombreados. Protegidos numa toga descosida, têm a alta dignidade de bufarinheiros. Ele olha os foliões em redor daquela praça, seus paletós bem alinhados, o cenho franzido. Olha e ouve um telefone tocar. A voz que atende anuncia: "Estás sozinho. No meio desse carnaval não tens máscara." Segue a caminhar.

Vai pelo meio daqueles foliões ridículos a abrir uma estrada. Vai sozinho, como sempre esteve, aliás. Seu percurso é como o de um salteador a camuflar seus passos por uma trilha invisível. Nos corredores daquele calabouço, vê o criminoso passar algemado, subjugado pelos braços fortes de um policial obtuso, um agente da lei criada por uma bolsa de valores corrupta. Ele observa aquele teatro de togas e fardas, de algemas e martelos, de carimbos e pastas. Julga-o patético como o andamento inacabado de uma sinfonia de novelas, que se sucedem no tempo, que se repetem, que iludem e irritam pelo seu tom melodramático. Naquele calabouço não há salvação.       

De volta ao seu quarto, retoma seu caça-níquel. Conta quantos X acertou. Mais um fiasco. Tem dúvidas se quer vestir aquela máscara, se quer tomar em mãos aquele martelo mágico dos foliões mascarados que se regozijam ao brincar de jogos de poder: prender e soltar. É verdade que essas dúvidas não são novas. Há tempos ele vem perdendo prazer nesse jogo; sente saudade do seu violão. Mas ele já notou que a hesitação vem do cansaço que às vezes sente - um cansaço tão forte que o faz pensar em desistir, que o leva a sentir-se frágil ao ponto de ser incapaz de esmagar com o peso do seu punho um mosquito noturno.

É nesses dias de cansaço que ele mais sente falta dela. Sente vontade até de escrever uma missiva métrica de tão pueril que fica, de gravar-lhe o nome no pentagrama de uma partitura. Ele a procura como o usuário de um serviço de investigação inútil, vacila, mas sabe que a vai achar. Ou melhor: reencontrar. Por isso, nesses dias de cansaço, nessas noites de terror e de insônia, ele clama pelo nome dela como o arqueólogo que escarafuncha os escombros das peças de um museu grego cômico-trágico soterrado. Então ela está perto dele, a alumiar o seu quarto de dormir com seus olhos tristes e cálidos. É quando ele vê a luz se esvair naquela praça noturna solitária. Em sombras, em sonhos, em nada.        

segunda-feira, 6 de maio de 2013

DANÇARINAS DAS SOMBRAS



Triste mesmo é noite de domingo. O anteâmbulo exato da segunda. O prenúncio da rotina do dia seguinte.

Triste não é recomeçar. Porque recomeçar é renascer. E a semana que renasce tem vida. A tristeza está no suplício de saber que um período termina no grito mudo noturno da voz que não se ouve, da pessoa amada que não se encontra, do desejo que se tem e não se realiza. Eis o tiro no escuro, as balas que ricocheteiam, os alvos que nunca são atingidos.  

Segunda tem o trabalho, a maldita da rotina. Sem graça, sem cor, pálida existência de um moribundo. Ergo-me e me arrasto. Sou alguém que suplica: "O acorde de um violão, uma xícara de café, algo que faça cessar este enfado!" Mas tudo o que recebo em troca é salário, cobrança, monotonia.

Eu me enterneço diante das fantasmagorias que dançam ao som da sinfonia da chuva que bate na janela do meu quarto. Ouço e nego a mim mesmo a audição desta música. Mas ela me conforta; traz a placidez de que necessito. O sossego que me acalma. A ilusão que me multiplica.

Pela janela do meu quarto descem essas gotas de chuva, numa espiral movediça, como dançarinas das sombras. E vão quebrando o silêncio, vão fartas, vão furtivas.

Em vão tentei acompanhar essa dança. Dancei nos pátios dos colégios, nas filas dos bancos, no patíbulo dos tribunais. Dancei sozinho.

Dancei até quando não pude mais dançar. Dancei até desistir. Preferi simplesmente fechar os olhos, sem explicações, sem motivos, sem justificativas. Apenas fechei os olhos e cri que ouvia a música derredor da qual circulavam aquelas pequeninas, dançarinas, bailarinas. Indo contra o vidro da janela, inundando o mundo num segundo secreto, no espasmo de um som molhado, gelado e surdo, tonitruante. Fechei os olhos e me concentrei naquela música, naquela doce sinfonia das gotas de chuva.

Contra a rotina, contra a segunda, contra toda a tristeza de uma noite de domingo.   

quarta-feira, 1 de maio de 2013

SOLIDÃO AQUÁTICA E SENSIBILIDADE DOS CORPOS: um mergulho em si mesmo em "O Gosto do Cloro" de Bastien Vivés



- Você já se perguntou por quais coisas morreria
e quais nunca abandonaria? Diz pra mim...
- Estou pensando.
- Então?
- Acho que há coisas que eu não abandonaria,
mas não sei se morreria por elas.
- Como o quê?
- Ainda não sei. 
Bastien Vivès, "O Gosto do Cloro" (2008).
 

PREFAÇÃO

A resenha abaixo foi publicada, originalmente, em versão ligeiramente adaptada, no dia 26/04/2013 na seção de Livros do blog Amálgama - atualidade & cultura, do qual sou colaborador. Quem quiser ler a versão publicada no Amálgama, basta acessar o link seguinte:   
http://www.amalgama.blog.br/04/2013/o-gosto-do-cloro-bastien-vives/

Quadrinhos e literatura

História em quadrinhos não é literatura. Eis uma afirmação crível, ainda hoje, para um bom número de leitores. Muitos rejeitam a ideia de atribuir a esse peculiar modo de expressão artística uma conotação verdadeiramente literária. Há mesmo quem argumente que quadrinhos são coisas infantis, faltando-lhes o glamour das grandes obras.  

Esse tipo de pensamento é, claramente, funcionário do atraso. Conservador, ignora os méritos dos quadrinhistas, os quais escolheram fundir a arte da narrativa com o emprego de imagens, o que resulta num produto único e especial, indiscutivelmente merecedor da atenção do leitor.   

Talvez por conta desse preconceito tolo contra os quadrinhos, ao qual me oponho, tenha-se criado até um nome chique, em língua estrangeira, para discriminar os chamados "quadrinhos adultos": graphic novel. Assim, quem lê um "romance gráfico" pode aliviar o sentimento de "culpa" que acomete o leitor conservador. Mas mais culpa deveria sentir quem, vitimado pelo preconceito, deixa de conhecer o que de melhor se produz atualmente nesse ramo. Há simplesmente obras geniais!  

De modo a comprovar o que estou a afirmar acima, decidi escrever sobre O Gosto do Cloro (Le Goût du chlore, 2008), uma das melhores histórias em quadrinhos que já li na vida. O trabalho é de autoria do quadrinhista francês Bastien Vivès, que o escreveu quando contava tão somente 24 anos de idade. De fato, é de per si notável que alguém tão jovem tenha sido capaz de produzir uma obra digna de uma sensibilidade rara, o que revela uma maturidade precoce bastante incomum na literatura.      

A natação como tratamento


Em O Gosto do Cloro, Bastien Vivès, que assina o roteiro e a arte, desenvolve a narrativa a partir de uma premissa relativamente simples: um jovem com problemas de escoliose é aconselhado pelo seu fisioterapeuta a nadar. O objetivo é progredir com o tratamento, de tal maneira que o esporte possa auxiliar a recuperação de sua coluna. Pressionado, o rapaz põe-se a praticar a natação, todas as quartas-feiras, em uma piscina púbica de Paris.     

É justamente na piscina que conhece uma garota, muito bonita, que desperta sua atenção. Ela, diferentemente do jovem, é uma nadadora experta, que conhece muito bem a técnica do esporte. Passa, assim, a ajudá-lo com as braçadas e pernadas. E, após algumas semanas de convivência, a prática do esporte, que para ele era inicialmente um fardo a evitar-se, torna-se um exercício hebdomadário cativante, sobretudo ante a espera da nadadora pela qual se enamorou.

O Gosto do Cloro é uma narrativa curta. Por isso, uma proposta de interpretação do enredo deve atentar para os detalhes aparentemente mais irrelevantes. No contexto da sua concisão, cada quadrinho adquire uma relevância especial para o desenvolvimento da história.

A piscina como limite de um novo mundo


Assim é que, já nas páginas iniciais da obra, ante a insistência do fisioterapeuta, pode-se perceber que o rapaz esquivava-se da recomendação favorável à prática do esporte. Não queria nadar. Contudo, pressionado pela potencial involução do seu tratamento fisioterápico, acaba por acatar a ideia. Nessa simples passagem, tem-se a construção de uma metáfora. O jovem que não quer nadar é o jovem que reluta em adentrar um mundo novo. Porque a natação é o pretexto para mergulhar-se em si mesmo, onde a piscina é o mundo que se está a descobrir. Em O Gosto do Cloro, ao contrário do que uma leitura apressada possa sugerir, a piscina é a personagem principal.    

O jovem que reluta em dedicar-se à natação aparece também nos quadrinhos iniciais, onde o vemos telefonar para vários amigos. Busca companhia para nadar, convite que é recusado por todos. Sem opção, vai nadar sozinho na piscina. Vai sozinho descobrir um mundo novo, então.

A ideia de uma piscina que funcione como limite de um "mundo novo" reporta-se à maneira com que Vivès desenha sua história. O esporte leva o jovem a um lugar que é "novo" não apenas quanto à sua presença; é novo também pelo ângulo de sua visão, pelo distanciamento das muitas pessoas que nadam na piscina pública, competindo braçada a braçada pelo espaço na água. O jovem é um nadador tímido e desajeitado. Não raro, esbarra em alguém. No fundo, está completamente sozinho. E por causa dessa solidão (aquática, eu diria) sua percepção das pessoas muda, agudizando os detalhes. Agora é possível observar coisas que dantes passavam despercebidas, como uma mulher obesa de maiô que assoa o seu nariz sentada junto à borda da piscina. Mesmo uma simples ducha converte-se em um importante momento de preparação para o nado. O cloro tem gosto.    

A imensidão solitária das águas da piscina 
 
Capa da edição original francesa.

Nesse ponto da história, Vivès já envolveu o leitor no cotidiano da piscina pública de Paris e das suas belíssimas imagens. De fato, impressiona a beleza dos desenhos, acentuando a plasticidade dos corpos quando em contato com a água. Cada braçada, cada movimento, nos traços do autor, ganha um deslumbramento especial. As pessoas parecem flutuar em um ambiente aquático prenhe de sensibilidade, cujos lindes estreitos são determinados pelas bordas da piscina.

Mas a genialidade de O Gosto do Cloro consiste em sustentar quase todo o roteiro na percepção dos movimentos da nadadura com o silêncio permeio. Quase não há balões de diálogo. Tudo o que se vê são imagens, a conduzir a imaginação do leitor pela placidez da água e o movimento plástico dos corpos. As conversas escasseiam; é desnecessário falar, visto que a proeminência pertence ao corpo do nadador, que o autor desenha muita vez desde um ângulo de visão restrito, propositalmente diminuto, a acentuar a imensidão solitária das águas da piscina. 

Nas ilustrações de O Gosto do Cloro, o silêncio prepondera, porque preponderante é a maneira com que se abre a novidade do mundo aquático: silencioso, solitário, para o qual importa mais a percepção morosa dos detalhes que a celeridade no cumprimento das tarefas (figurado no enfado de um tratamento de coluna). Isolado em seu nado, o jovem enxerga o mundo sob novos ângulos, ora amplos, ora reduzidos às mínimas nuanças, como a cor dos lábios impregnados de cloro de uma garota que fala delicada e apaixonantemente sobre como dobrar os braços dentro d'água. O tempo é de uma lentidão sem fim, angustiante. Nos limites das bordas da piscina, as pessoas deixam de ser invisíveis, e os corpos, semidesnudos em trajes de banho, ultrapassam a lascívia excitada por uma sensualidade vulgar. Em O Gosto do Cloro, a sensibilidade dos corpos humanos, nadando nas águas da piscina, é a própria linguagem com que se manifesta a arte que se quer expressar. É como afirma o escritor Paulo Scott na orelha do livro:

Sob a perspectiva da suspensão, da tensão a que se submetem os corpos (falando metaforicamente ou não), notável é a tradução do equilíbrio que só é possível na água: a flutuação, o espaço, a quebra da gravidade, a indução de lar, de aconchego, de retorno; todas essas condições fazem com que estar no ambiente aquático gere um contexto sensorial peculiar. Imergir, deslizar, isolando-se em estados de apneia, olhar.  

Note o leitor que, em nenhum momento, aludo ao nome das personagens. Há apenas o jovem, o rapaz, o amigo, a nadadora. Não há nomes, porque na piscina todos são anônimos. Prevalecem os gestos sobre as palavras. A piscina é um cenário gigantesco, onde o cloro tem o gosto azedo da anonimidade total.  

Mas o azedume do cloro, que irrita os olhos do nadador, é também o que o faz parar, olhar e perceber a garota que nada ao seu lado com movimentos de uma beleza plástica singular. É certo que a beleza da moça chama a atenção, mas a desenvoltura da nadadora é algo admirável. Em pouco tempo, a amizade entre o jovem e a garota desenvolve-se; agora ela o ensina as técnicas da natação. Ele deixa-se encantar, enamora-se. Quem sabe ela não esteja a sentir o mesmo sentimento? Mas tudo o que fazem é nadar, um ao lado do outro, deslizando lisamente nas águas da piscina. Na troca de olhares, nas brincadeiras com a água, há uma pureza cristalina na relação que se desenvolve entre ambos. O mundo todo para quando ele a encontra. O amargo gosto do cloro não parece tão amargo assim. O gosto do cloro agora é doce.        

Entre uma braçada e outra, eis a paixão. O rapaz sente-se cada vez mais envolvido por ela. Porém, não há certeza na reciprocidade do sentimento. A única certeza que o leitor tem é a angústia de um apaixonado diante da beldade que já não mais aparece todas as quartas-feiras para nadar. Sem ela, a piscina é um imenso vazio. O gosto do cloro volta a mudar. Mas agora não é azedo (o jovem que relutava em nadar), nem doce (a motivação de quem se apaixona e quer estar sempre próximo da pessoa amada). O cloro simplesmente não tem mais gosto. Na ausência dela, tudo é insípido, a água é incolor. O tempo é monótono, o esporte é enfadonho, não tem mais graça nadar.  

O francês Bastien Vivès em março de 2012.
Foto: D. Passamonik (L'Agence BD)

Ao projetar o enredo de sua obra, limitando-o às bordas da piscina, Bastian Vivès não apresenta uma simples história em quadrinhos. O Gosto do Cloro, pela originalidade do seu roteiro, e pela beleza dos seus desenhos, representa um dos mais criativos exercícios artísticos de sensibilidade humana. Considerado desde esse ponto de vista, é um trabalho exemplar, digno dos mais elevados elogios na arte narrativa ilustrada. Serve, dessa maneira, como uma excelente demonstração do potencial que o formato de graphic novel pode produzir, arrostando opiniões conservadores, que negam valor literário aos quadrinhos. Mas, ainda assim, penso que reduzir a obra a isso seria pouco. Na verdade, por todo o seu mérito artístico, Bastien Vivès pode orgulhar-se da sua produção. O Gosto do Cloro é uma obra-prima. 
REFERÊNCIAS

VIVÈS, Bastien. O Gosto do Cloro. Tradução de Maria Clara Carneiro. São Paulo: Barba Negra; São Paulo: Leya, 2012. 144 p.