segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DE QUE VALE A LEI?: a paternidade (ir)responsável e a crítica ao machismo da lei a partir do pensamento de Machado de Assis e Lima Barreto

                 
                       
Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que,
para proteger uma vida provável, sacrifica duas?
De que vale a lei?
Lima Barreto, "A Lei" (1915).
 
Numa passagem curiosa do seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis se debruça sobre o problema da paternidade/maternidade irresponsável. Trata-se do Capítulo LXXV, intitulado "Comigo", no qual o escritor narra as origens de D. Plácida - a mulher responsável por zelar pela casa onde os amantes Brás Cubas e Virgília mantinham suas relações adulterinas.  
Nesse capítulo, ficamos a saber que D. Plácida é fruto de um relacionamento nada ortodoxo entre um sacristão da Sé e uma dama que circulava por aquelas bandas.   

— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. (ASSIS, 2004, p. 176).

Já nesse trecho se nota o sarcasmo do autor, que se refere à dama que deu à luz D. Plácida como "colaboradora" do sacristão. A aproximação oportunizou uma "conjunção de luxúrias vadias". A consequência foi a geração de uma vida (uma criança, D. Plácida) não planejada e, portanto, não querida.  

Machado de Assis completa:

É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. (ASSIS, 2004, p. 176).

O escritor é veemente no seu relato. A sacristania não se prestou à arrumação da missa ou à guarda dos paramentos do culto. Prestou-se à luxúria, ao sexo casual. Mas o tom de Machado não é o de um moralista religioso. Sua intenção não é condenar a concupiscência de per si, mas sim evidenciar como a tentação da carne, figurada no encontro sexual, conduz à maternidade/paternidade irresponsável. Nem o sacristão nem a sacristã, nos seus momentos de prazer, no seu mais íntimo "momento de simpatia", tiveram prudência. Não pensaram que da "conjunção de luxúrias vadias" nascia a colaboração necessária para o nascimento de  uma criança. No caso, fala-se da vida de D. Plácida, a quem só restou o peso doloroso da pobreza ("comer mal, ou não comer"), da infância perdida pelo trabalho precoce ("queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura"), de uma existência condenada ao sofrimento e ao desespero ("adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura"). Como consequência de um amor cretino, Brás Cubas vaticina o pior: a pessoa ou acaba na lama ou no hospital. Na lama, porque ali é a sarjeta (a miséria absoluta). No hospital, porque aí se há de padecer até a morte.

O olhar crítico machadiano sobre a irresponsabilidade do poder familiar, de certa maneira, vai ao encontro do que Lima Barreto busca expor na sua crônica "A lei". Nesse texto, o cronista narra o "caso da parteira", sobre o qual se propõe a interrogar acerca da serventia da legislação:

Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer. 

Inicialmente, percebe-se o elo do romance com a crônica: uma relação amorosa fora dos padrões tradicionais. Em ambos, a procriação deu-se fora do casamento. Mas há uma diferença: se no texto machadiano o que se busca é evidenciar a cretinice de quem pratica o sexo sem dosar suas consequências - notadamente a pobreza - na vida de uma criança, na crônica de Lima Barreto está-se a revelar o quão grande é a hipocrisia de uma moral ultrapassada, que visa a separar uma filha de sua mãe por força de uma gravidez fora do casamento. Neste último caso, os burocratas do Estado intervêm, para qualificar regras morais envelhecidas como regras legais. Dá-se, assim, força normativa ao arcaísmo social, devedor de uma concepção patriarcal e machista de sociedade, insensível às necessidades da mulher e ao amor de mãe, partidário de uma justiça sexista e excludente.   

Presente essas circunstâncias, Lima Barreto comove-se com a situação da mãe que busca o auxílio da parteira. E conclui em fiança à conduta das duas:

Vê-se bem que na intromissão da “curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

A reflexão proposta por Lima Barreto é importante. Qual subalternidade haveria no sentimento amistoso, decerto sincero, que leva alguém a auxiliar outrem em situação difícil? E se acrescentarmos que essa situação é extrema, que coloca em risco a liberdade de quem ajuda? Não se poderia escusar a responsável?

Logicamente, o debate é mais profundo. Atinge o motivo da ajuda: a parteira auxilia o abortamento do feto. Mas quem haveria de negar que a sociedade colocou a mãe em desespero, ao vedar-lhe o acesso à maternidade por haver engravidado fora do casamento, ainda que separada do marido? Que sociedade é esta que priva a mulher da convivência amorosa, da possibilidade de encontrar um novo cônjuge? Que sociedade é esta que, para preservar a perenidade do laço nupcial, condena a mulher à solidão eterna? Será que é justo punir a mãe que não quer viver sozinha? Será que é justo suprimir sua convivência com a filha? 

No entanto, o império frio dos códigos legais despreza esses questionamentos de ordem humanitária. A lei surge como baluarte da moral envelhecida (tornada uma moral legalizada). Seu fim é penalizar a mãe infratora. A ela se reservam tão somente as duras penas da legislação criminal.

Lima Barreto prossegue:

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

A expressão "aborrecer-se com a vida" denota outro ponto de encontro entre o pensamento de Machado de Assis e Lima Barreto. Para ambos, a vida está longe de ser uma maravilha. Pode, sim, apresentar-se como estágio prolongado de sofrimento. E questionam: qual o sentido desse tipo de maternidade/paternidade? Qual o sentido de se colocar um filho no mundo para sofrer? 

Mas o Estado, guiado por um código criminal machista, ignora o apelo. Insensível à condição da mulher, a quem trata como ser incapaz, age com eficiência ao punir a mãe e a parteira. As consequências são as mais drásticas:

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

Todos esses questionamentos estão enraizados na crônica "A lei". Diferentemente de Machado, que em Memórias Póstumas de Brás Cubas deitou seu olhar crítico sobre a irresponsabilidade de quem procria sem se preocupar se o filho ficará ao abrigo da mendicidade, da miséria, da pobreza, Lima Barreto parte também dum encontro carnal, do qual há de resultar a prenhez, mas direciona sua crítica à moral machista e anacrônica que orienta a sociedade brasileira. Na ação estatal, sob o império da lei, a frieza comanda. Não há (bom) senso de justiça. Ignora-se a mulher enquanto ser humano, dotado de vontade. Ela não se pode relacionar com outro homem, mesmo separada do antigo marido. À mulher reserva-se a solidão como fardo moral pelo simples fato de ser mulher. O desrespeito a essa regra há de acarretar-se a privação da convivência com a filha. Sacrifica-se o direito da mãe à maternidade. Proíbe-se o aborto, a pretexto de salvar a vida provável do feto. Mas com isso se condena à morte outras duas vidas - tudo com base na lei. 

Então, De que vale a lei?, interroga-se Lima Barreto. A lei vale realmente o suplício de uma mãe afastada de sua filha? A lei vale o sentimento amistoso e sincero da parteira, que quis ajudar a amiga a fugir às consequências criminais de uma legislação machista? Por que a lei não pensa na mulher? Ou melhor, por que a lei não trata a mulher como um ser humano? De que vale a lei? Ainda hoje, a lei vale o sacrifício dessas vidas?      

REFERÊNCIAS


ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Apresentação e notas Antônio Medina Rodrigues; ilustrações Dirceu Marins. 4º ed. São Paulo: Ateliê, 2004. 305 p.(Coleção Clássicos Ateliê).

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. A lei. Disponível em: www.biblio.com.br. Acesso em: 29 de dez. 2013. 

sábado, 28 de dezembro de 2013

O gosto amargo do veneno digital


 
Este caso do filósofo Paulo, que supostamente incitou o estupro de uma noticiarista, está a merecer reflexão sobre o gosto do "veneno digital".

Segundo me consta, a valer-se de sua conta em redes sociais, Paulo teria desejado, qual voto de ano novo, que Raquel fosse estuprada. "Meus votos para 2014: que a Rachel Sherazedo seja estuprada". A afirmação tornou-se objeto de acirrada polêmica. Com razão, pois não há trivialidade em instigar a violação sexual de outrem.

Quase todos que opinaram sobre a polêmica viram-na como um ato machista. O ofensor, diante da vítima (uma mulher), deseja-lhe não um soco, ou um pontapé, ou que vá para o quinto dos infernos; deseja-lhe mal maior - o estupro. É ato de violência, que subjuga o corpo feminino ante a força bruta do homem. Crudelíssimo, deixa marca indelével: a lembrança. Haverá na memória, permanentemente, a recordação terrível de alguém que a violou contra a sua vontade. O estupro reaproxima o homem da animália. Não há razão, porquanto não há vontade. Tudo que há é instinto, apetite sexual. O meio para satisfazê-lo é a força. A civilização morreu.       

 
Mas não é a perspectiva do machismo das declarações do filósofo que me leva a escrever. Embora essa discussão seja válida no contexto, quero olhar o caso doutra vista. Penso que ele representa mais um exemplo da embriaguez causada pelo "veneno digital".
O veneno digital é substância, mas não do tipo química. Diferentemente das poções tradicionais, que visam a matar o paciente duma vez, o veneno digital é ministrado aos bocados. Sua finalidade é ir minando a reputação de alguém, especialmente quando o atingido é aquele de cujas opiniões alguém se põe a discordar. Em geral, o sujeito acovardado age a destilar o poderoso malefício. Na internet, encontra um meio formidável para divulgar seu ódio, seus insultos gratuitos. Ele não teme repreensão, pois dificilmente mostra a face. Esconde-se em perfis falsos em redes sociais. Ataca, xinga, vilipendia. Tudo sob a proteção de pseudônimos. Usa expressões das quais jamais se valeria na vida pessoal, olho no olho. Seguro da sua anonimidade, o ofensor navega nos mares cibernéticos embriagado pelo veneno digital. Toma taças e taças de achincalhe, de palavrões, de expressões grosseiras. Seu alvo é claro: a opinião divergente. Mas seu raciocínio é turvo: ele não vê senão a própria boca, pronta para malferir, para maldizer; não quer (ou simplesmente não consegue) argumentar. Sem fundamentos, parte para a agressão. Cria apelidos desdenhosos, quase sempre apela para aspectos irrelevantes da vida pessoal. Ou então passa à medida extrema de incitar o crime, como aparentemente fez o filósofo, a destruir sua reputação acadêmica numa atitude ab-rupta e infeliz.     

O que diferencia o caso das ofensas do filósofo Paulo não é seu conteúdo, portanto. A baixeza do ataque já mostra o quilate do contendor. A peculiaridade é que desta vez não houve o sigilo da fonte. Fez-se tudo a descoberto. Desta vez, não há palavra protegida pela anonímia. O autor está nu diante de todos.

A noticiarista Raquel por certo não partilha da visão de mundo do filósofo Paulo. Isso então a torna passível de estupro? Não, é lógico. Mas para ser lógico é preciso ser racional. E um bêbado não é racional. Ainda mais quando sua embriaguez decorre do vinho adocicante do insulto - este repugnante veneno digital. 

Paulo, ao que parece, bebeu do vinho em demasia. Tomou fôlego extra, ficou corajoso. Sem esconder seu nome ou rosto, pôs-se a insultar, a ofender, a humilhar. Escreveu em linguagem vulgar, claramente abusiva. Pior: agiu de maneira gratuita, sem sequer ser provocado pela ofendida. Como um bêbado, deixou de ser filósofo ao exceder os limites da razão. Agora lhe resta a ressaca do dia seguinte. O gosto amargo do próprio veneno (digital).

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

CANÇÕES PARA O NATAL IV: Orquestra de Câmara Capella Istropolitana toca "Concerto para Natal" (Concerto Grosso Fatto Per La Notte Di Natale, Op. 3, No. 12) de Francesco Onofrio Manfredini (1684-1762)


 
Este texto é dedicado à violinista Raquel,
por ter sido a pessoa que me convidou para ir ao teatro,
no Natal de 2003,
quando ouvi pela primeira vez o concerto de Manfredini.
Sinto tua falta, Raquel.

Sempre que se pensa na música barroca, o nome do alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) surge incontornavelmente. Outra figura referencial do período é a do italiano Antônio Lucio Vivaldi (1678-1741), muito lembrado pela sua obra monumental: "As Quatro Estações" (Le Quattro Stagioni). Ambos são gigantes da música erudita. E as obras que deixaram como testemunho de seu portentoso talento para a composição encontram-se entre o que de mais refinado o gênio humano foi capaz de produzir no mundo das artes.         

Apesar disso, o barroco não se resume aos nomes de Bach e Vivaldi. Pelo contrário. Do ponto de vista histórico, a era barroca representou um período extremamente prolífero. Na música, em particular, o barroco assinalou o apogeu da música instrumental, a libertar-se definitivamente do protagonismo dos cantores, consectário de um movimento emancipatório que se iniciara nos idos do século XV.    

Assim, os músicos barrocos tiveram a sensibilidade para perceber, de um lado, que os instrumentos poderiam concertar (reconhecimento da individualidade tímbrica) e, de outro, que poderiam agrupar-se em famílias. Daí começam a surgir as primeiras orquestras nas quais há predominância dos instrumentos de arco. O violino ganha destaque. Antes considerado instrumento marginal, sai das tabernas onde estava confinado desde o século XVI, sobretudo beneficiado pelo aprimoramento das escolas de luteria italianas. É nesse período, por exemplo, que o luthier Antonio Stradivari (1644-1737) passa a construir seus célebres violinos Stradivarius - hoje objeto de cobiça pelos maiores violinistas do mundo. Também por essa época compositores respeitáveis, como Giovanni Legrenzi (1626-1690) e Arcangelo Corelli (1653-1713), passam a dedicar suas obras ao violino. De certa maneira, davam continuidade a um movimento composicional iniciado incipientemente por Claudio Monteverdi (1567-1643).  

O compositor italiano Francesco Onofrio Manfredini (1684-1762)
 
Além disso, as formas instrumentais clássicas consolidam-se na era barroca. Fugas, suítes, sonatas, concertos, variações, sinfonias. Cada uma dessas formas adquire as características que as tornariam, dentro da teoria musical, distinguíveis. Supera-se, consequentemente, a confusão dos períodos anteriores, quando a atribuição do nome às peças era feita de maneira confusa, produto de uma terminologia imprecisa, muita vez ao talante do compositor.

Essas observações históricas estão a demonstrar a riqueza da era barroca para o desenvolvimento da música erudita. É claramente um equívoco reduzi-la à obra de Bach e Vivaldi. Não obstante a genialidade desses compositores, outros músicos do período têm mérito artístico. Exemplarmente, na Alemanha, temos Sylvius Leopold Weiss (1687-1750), Georg Friedrich Handel (1685-1759), Georg Phillipp Telemann (1681-1767), Johann Adolph Hasse (1699-1783), Johann Christoph Pachelbel (1653-1706), Dietrich Buxtehude (1637-1707); na Itália, Alessandro Scarlatti (1660-1725), Arcangelo Corelli (1653-1713), Antonio Caldara (1670-1736), Giacomo Carissimi (1605-1674); na França, Joseph Bodin de Boismortier (1689-1755), Jean-Phillippe Rameau (1682-1764), Marc-Antoine Charpentier (1643-1704), François Couperin (1668-1733); na Grã-Bretanha, Henry Purcell (1659-1695).  


Igreja do Espírito Santo (Chiesa di Santo Spirito) em Ferrara,
onde Manfredini serviu como violinista por volta de 1700.
 
Pois bem. Entre os compositores barrocos que tiveram o brilho de seu talento ofuscado pela genialidade de seus contemporâneos Bach e Vivaldi, encontra-se também Francesco Onofrio Manfredini (1684-1762). Musicista talentoso, o italiano dedicou-se intensamente à música sacra, primeiro como violinista da orquestra da Igreja do Espírito Santo de Ferrara (Chiesa di Santo Spirito), depois  como compositor. Escreveu oratórios e sinfonias, mas se notabilizou mesmo pela sua contribuição à música de câmara e, em particular, ao concerto grosso, modelo composicional muito prestigiado na era barroca, em face do contraste sonoro que proporcionava entre dois grupos instrumentais - um menor, formado por um pequeno grupo de solistas (concertino), com outro maior (o ripieno ou concerto grosso).

A obra mais famosa de Francesco Manfredini é o seu "Concerto para Natal" (Concerto Grosso Fatto Per La Notte Di Natale, Op. 3, No. 12). Composto em Dó maior, ainda hoje é um dos concerti grossi mais famosos, principalmente pela temática natalina que o inspira, tornando-o uma das mais belas peças do repertório erudito para o Natal.    
É precisamente o "Concerto para Natal" de Manfredini que quero indicar ao leitor. Tecnicamente, o concerto grosso está dividido em três andamentos: Pastorale (Largo), Largo e Allegro. Na gravação abaixo, datada de 1991, a Orquestra de Câmara Capella Istropolitana da Eslováquia, sob a regência do maestro Jaroslav Kreek, executa integralmente o "Concerto para Natal" de Francesco Manfredini.    

Quem ouvir o concerto, notará com facilidade a beleza da melodia. Apesar disso, a obra de Manfredini não tem a popularidade que merece junto ao grande público. Por isso, reputo sua audição imprescindível. Definitivamente, esta é uma obra que não pode cair no esquecimento de quem ama a arte e o Natal.  

CANÇÕES PARA O NATAL III: Alexis Weissenberg toca "Jesus, Alegria dos Homens" (BWV 147) de Johann Sebastian Bach



  
Que Bach seja o maior dos compositores eruditos, o "oceano" apontado por Beethoven, parece indiscutível. Sua importância na música vai da teoria musical (com a criação, por exemplo, das escalas bachianas) à extensão de sua obra - prolífica e absurdamente genial. Outro aspecto que chama a atenção no compositor alemão é sua popularidade. De fato, as composições barrocas soam "fáceis" aos ouvidos humanos quando a partitura é assinada por Bach. Numa palavra: é fácil gostar da sua música.

Talvez isso explique a posição de destaque que "Jesus, Alegria dos Homens" ocupa num repertório tipicamente natalino. Tem-se uma melodia de fácil assimilação pelo ouvinte - até pela sua beleza iniludível. Mesmo não tendo sido originalmente composta para a celebração do Natal, é comum ouvi-la no período que antecede o dia 25 de dezembro.   

De início, cabe esclarecer que a melodia que se ouve em "Jesus, Alegria dos Homens" corresponde, na verdade, aos movimentos nº 6 e nº 10 da cantata Herz und Mund und Tat und Leben (BWV 147). Os musicólogos apontam que a composição iniciou-se em 1716, mas foi posteriormente expandida em 1723, data coincidente com sua primeira apresentação na Fest Mariä Heimsuchung em Leipzig.   

Posto que a melodia seja a mesma, os movimentos da cantata, nos quais "Jesus, Alegria dos Homens" assoma, diferenciam-se pela letra. Assim, no movimento nº 6 (Wohl mir, daß ich Jesum habe), o coral põe-se a cantar os versos seguintes:

Wohl mir, daß ich Jesum habe,

o wie feste halt' ich ihn,

daß er mir mein Herze labe,

wenn ich krank und traurig bin.

Jesum hab' ich, der mich liebet

und sich mir zu eigen giebet,

ach drum laß' ich Jesum nicht,

wenn mir gleich mein Herze bricht.

Já no movimento nº 10 (Jesus, bleibt meine Freunde) o coral canta outros versos. Ei-los:

Jesus bleibet meine Freude,

meines Herzens Trost und Saft,

Jesus wehret allem Leide,

er ist meines Lebens Kraft,

meiner Augen Lust und Sonne,

meiner Seele Schatz und Wonne;

darum laß' ich Jesum nicht

aus dem Herzen und Gesicht.

Em ambas as estrofes, contudo, destaca-se o tom laudatório do eu lírico, o qual externa a alegria do devoto em sua relação com Jesus - o filho de Deus.

Curiosamente, o título em português ("Jesus, Alegria dos Homens") aparenta ser tradução originada da versão em inglês ("Jesu, Joy of Man's Desiring"), já que o título original corresponderia a algo como "Jesus continua sendo minha alegria" (em alemão: "Jesus bleibt meine Freude").    

Ostentando a qualidade de uma das mais famosas melodias de Bach, é natural que "Jesus, Alegria dos Homens" exista sob os mais variados arranjos, tocados nos mais variegados instrumentos. Entretanto, penso que o leitor que ambiciona ter uma compreensão aprofundada da obra bachiana deve dedicar-se, ao menos inicialmente, à audição integral da cantata  Herz und Mund und Tat und Leben. Assim, ter-se-á uma visão de conjunto da melodia (como ela se insere na harmonia barroca, p. ex.), a demarcar bem o papel do coral.

Nesse sentido, entre as versões integrais da cantata disponíveis no sítio do Youtube, a que mais gosto é a da Orquestra Barroca de Amsterdã, sob a regência do maestro holandês Ton Koopman.


Para quem quer ouvir uma versão orquestrada da melodia, sem a participação do coral, temos a execução da Orquestra Filarmônica Real Britânica, sob a regência do maestro inglês Nicholas Cleobury, com destaque para a participação de Julian Lloyd Webber, um dos grandes violoncelistas em atividade no mundo.  


No campo do violão erudito, a buscar uma interpretação satisfatória de "Jesus, Alegria dos Homens", eu certamente destacaria a transcrição feita pelo escocês David Russell - um dos maiores virtuoses do violão mundial.  


Também gosto da interpretação do violonista alemão Horst Klee.


No entanto, na seara do violão erudito, penso que a interpretação definitiva de "Jesus, Alegria dos Homens" coube ao violonista estadunidense Christopher Parkening. Que perfeição técnica!


Por outro lado, em se tratando de duo violonístico, gosto muito do arranjo feito pelo violonista alemão Thomas Königs. No vídeo abaixo, Kathrin Meyer e Hanna Lamprecht, alunas de Königs na classe de violão erudito da Escola de Música de Nuremberg (Alemanha), tocam a peça.


Dado o seu caráter extremamente popular, "Jesus, Alegria dos Homens" é uma "canção" que já foi objeto de incontáveis versões fora do rígido mundo da música erudita. Uma das mais inusuais é a da cantora norueguesa Sissel Kyrkjebo, que interpreta a melodia quase como se buscasse solfejá-la paralelamente ao som dos instrumentos de cordas.


Fora do violão erudito, mas ainda dentro do campo violonístico, eu destacaria o lindo arranjo, com alguns improvisos sobre a melodia, feito pelo violonista estadunidense David Qualey. 


Outro belo arranjo é o do violonista inglês Laurence Juber.


No violão de 12 cordas, a versão de Leo Kottke é notável. 


Para quem busca uma versão com mais suingue no ritmo do violão, a abeberar-se mesmo nas raízes flamencas, temos esta curiosa versão do violonista estadunidense Esteban, que toca acompanhado da violinista Teresa Joy.


O guitarrista Steve Morse, famoso por seu trabalho no rock progressivo em bandas como Dixie Dregs, Deep Purple e Flying Colors, também já apresentou sua própria versão de "Jesus, Alegria dos Homens".    


Entre os brasileiros, impossível não citar o grande Baden Powell, um dos maiores músicos que a MPB conheceu no século XX. Mesmo não sendo um violonista erudito, na acepção tradicional da expressão, a técnica que emprega na sua interpretação de "Jesus, Alegria dos Homens" é impecável. 


A lista está longa, é verdade. Mas isso se deve, caro leitor, ao fato de que "Jesus, Alegria dos Homens" é uma das minhas composições favoritas. Sendo assim, encerrarei esta série de versões novamente no mundo da música erudita.

Nesse ponto, hei de destacar especificamente o quão bela se torna "Jesus, Alegria dos Homens" em arranjo para o piano. Entre as transcrições disponíveis, a mais famosa pertence à pianista britânica Myra Hess, que é exatamente a que Alexis Weissenberg, o carismático pianista búlgaro, está a executar no vídeo abaixo. Repare o leitor na característica que celebrizou Weissenberg: a agressividade trovejante no baixo, opção do músico para notabilizar a emoção. E que emoção ele arranca de "Jesus, Alegria dos Homens"!     

CANÇÕES PARA O NATAL II: Matthew McAllister toca "Noite Feliz" (Stille Nacht) de Franz Xaver Gruber


  
Num repertório genuinamente natalino é impossível não citar "Noite Feliz". Trata-se de uma das mais conhecidas - senão a mais conhecida - canções de Natal. Por isso, nos dias que antecedem o 25 de dezembro, não surpreende ouvi-la em todos os lugares.  

Poucos, no entanto, sabem que a melodia de "Noite Feliz" foi composta originalmente para o violão. Isto mesmo: para o violão.

A história se passa na Áustria do século XIX.

Em 1818, na véspera do Natal, o padre Joseph Mohr, pároco de Oberndorf (sita no atual Estado de Salzburg), pediu a Franz Xaver Gruber, organista do povoado vizinho de Ansdorf (situado no atual município de Lamprechtshausen), que musicasse um texto. O tal texto havia sido escrito dois anos antes, em forma de poesia, quando Mohr estava na cidade de Mariapfarr na região de Lungau. Seu título: "Stille Nacht!". Na poesia, destaca-se o nascimento do menino Jesus, que vem ao mundo em uma "noite silenciosa, noite sagrada".


Foto da antiga igreja de São Nicolau, em Oberndorf, Áustria,
local da primeira apresentação de "Noite Feliz" em 1818.
 
Quando atendeu ao pedido do padre Mohr, Gruber fê-lo motivado pelo desejo de ajudar o cura, que temia pela frustração generalizada dos devotos de sua paróquia na véspera do Natal. A razão é que o órgão da igreja de São Nicolau (St. Nikolaus Kirche), onde Mohr desempenhava suas atribuições eclesiásticas, havia quebrado. Logo, a fim de evitar uma celebração sem música (sem graça, portanto), pediu ajuda ao organista de Ansdorf. Naturalmente, ele não poderia compor para o grande instrumento de sopro avariado. Descartado o órgão, a saída foi escrever a melodia para o violão.

E foi assim que, na missa do dia 24 de dezembro de 1818, a pequena paróquia da Igreja de São Nicolau presenciou a primeira apresentação pública de "Noite Feliz". Na dupla formada às pressas, coube ao padre Joseph Mohr cantar e tocar o violão, ao passo que Gruber apenas cantou. O primeiro fez a voz no naipe de tenor; o segundo, no de baixo. Nascia "Noite Feliz".     

Foto atual da capela em Oberndorf, onde "Noite Feliz"
foi apresentada pela primeira vez em 1818 (Stille Nacht Kapelle, Österreich)   

É evidente que existem muitas outras especulações e lendas quanto ao surgimento de "Noite Feliz". A que narrei acima é apenas uma delas (a mais conhecida e aceita na Áustria, decerto, segundo apurei por meio da leitura dos arquivos da Stille Nacht Gesellschaft). O importante é perceber isto: a melodia de "Noite Feliz" foi composta para o violão.        

Justamente por isso escolhi, a título de ilustração da famosa canção natalina, uma versão para o violão erudito. Quem a executa é o violonista escocês Matthew McAllister, um músico talentosíssimo, cujo trabalho de concertista na Europa me ponho a admirar.

Note o leitor que a simplicidade da melodia (com o baixo bem marcado no violão) vai ao encontro da história narrada anteriormente (a de uma música feita de afogadilho). Quero crer, desse modo, que a "Noite Feliz" de Franz Gruber está a provar que a beleza artística muita vez se acha na mais pura singeleza.