segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

MÚSICA DE VELHO, COISA CHATA: o clichê antimúsica erudita em "Intocáveis" de Olivier Nakache e Eric Toledano

 

A música não é uma linguagem
que se pode atravessar sem se deter
e cuja significação, transcendente ao signo,
pode ser conservada depois de este ter sido esquecido:
sua eventual "significação"
não tem referência com a realidade exterior,
qualquer que seja o nível em que nos coloquemos.
Roland de Candé in: "História Universal da Música, volume 1".
 
 
O aristocrata parisiense e seu cuidador suburbano
Faz pouco tempo, assisti ao filme "Intocáveis" (Intouchables, França, 2011). Fi-lo motivado pelos muitos comentários elogiosos que ouvi a seu respeito, mesmo que boa parte deles tenha vindo de pessoas que eu não poderia considerar "grandes especialistas" em cinema (vivemos num tempo em que há quem se julgue um "grande conhecedor" da sétima arte pelo simples hábito de ver filmes com a namorada no final de semana, mesmo que não saiba diferençar a importância histórica de O Nascimento de uma Nação, de D. W. Griffith, para o spaghetti western de Sergio Leone da década de 1960). Como, no entanto, creio que a formação de uma ideia depende do conhecimento da obra, deixei-me assistir ao filme, procurando não me guiar pela opinião alheia.

O filme é uma produção francesa e foi dirigido por uma dupla de diretores (Olivier Nakache e Eric Toledano), a mesma que assina o roteiro inspirado em uma "história real". Conta o drama de Philippe (Francois Cluzet), um homem de meia-idade riquíssimo, apreciador das formas mais refinadas de arte, que precisa contratar um cuidador que o auxilie em sua rotina de pessoa com deficiência (ele é tetraplégico). Na seleção que organiza, Philippe contrata Driss (Omar Sy), um sujeito desajustado, que vive no subúrbio pobre de Paris com uma família extensa e já teve até mesmo problemas com a polícia.   

Então, a trama desenvolve-se de maneira a focar a relação de contrastes extremos que pode haver entre duas personagens distantes social e culturalmente uma da outra: um branco, aristocrático e rico, tetraplégico e solitário; o outro, negro e pobre, ex-presidiário e desempregado, sem muitas perspectivas de crescimento profissional dado o seu reduzido grau de qualificação. Nesse contexto, seria possível a um desajustado como Driss cuidar de uma pessoa cheia de limitações como Philippe? E, mesmo em face de mundos tão separados, seria possível nascer daí uma amizade?

O filme de Nakache e Toledano busca responder a esses questionamentos. Mostra, assim, como Phillippe vai aos poucos adquirindo confiança em Driss, o qual, justamente por pertencer a um mundo nem um pouco elitizado, torna-se um cuidador diferente, que não se importa em tratar Philippe como uma "pessoa normal", seja para lhe oferecer um cigarro, dirigir um carro esportivo em alta velocidade ou contratar "belas massagistas que desenvolvem suas atividades em domicílio".  Essa condição tosca de Driss, que aparentemente poderia constituir um problema para alguém de gosto tão refinado como Philippe, acaba por constituir o elo amistoso paradoxal que há de permear todo o enredo, a atenuar, com bom humor, a difícil rotina de uma pessoa com deficiência - mesmo em se tratando de um tetraplégico milionário.

Trilha sonora de velório


Apesar da história de inegável potencialidade dramática, os diretores optaram por tratar a relação de ambos desde o viés da comédia. Omar Sy sustenta, com sua interpretação, um Driss atrevido e engraçado, cujos ditos chistosos divertem o espectador, levando-o a esquecer as muitas limitações e dificuldades que advém da tetraplegia de Philippe. E é aí que reside o grande problema da película. Os diretores, para tornar divertida a trama, recorrem a toda sorte de clichês já vistos milhões de vezes no cinema: a filha adolescente que tem o hábito de tratar mal os empregados e que necessita de uma autoridade que Driss há de reivindicar; a mesma adolescente que fica deprimida ante o rompimento com o namorado e pede a Driss que a ajude; o "choque" cultural entre o milionário colecionador de arte moderna e o cuidador ignorante, incapaz de ver qualquer beleza estética em um "punhado de rabiscos"; o temor dos amigos de Philippe ante a ficha criminal de Driss; a maneira com que Driss encoraja Philippe a aproximar-se da mulher com quem mantém um relacionamento amoroso epistolar; o parente de Driss que começa a envolver-se com traficantes do subúrbio parisiense onde mora. São clichês problemáticos nem tanto pelo fato de serem repetidos, mas, sobretudo, porque mal conduzidos pelos diretores: eles inauguram subtramas resolvidas sempre de maneira insatisfatória (como no caso dos traficantes de drogas no subúrbio e do relacionamento problemático de Driss com a mãe), quando não totalmente previsíveis (como no caso do namorado da filha adolescente de Philippe). Dessas subtramas, talvez a única que traga alguma surpresa no desfecho seja a que decorre do assédio lúbrico que Driss impõe à assistente de Philippe, a bela Magalie (Audrey Fleurot). De resto, nada do enredo difere de outras tantas comédias dramáticas convencionais.  

Particularmente, dentre os clichês a que recorrem os diretores para exemplificar o abismo cultural entre Philippe, o aristocrata parisiense, e Driss, o imigrante negro, pobre e suburbano, chamou-me a atenção a cena do aniversário. Nela, vemos uma festa organizada pelos amigos e parentes do milionário francês, descrita pelo próprio com fastio, já que lhe parece antes uma demonstração comiserativa forçada a uma legítima e espontânea celebração. Pois é justamente nesta cena que reside um dos clichês cinematográficos mais irritantes. Eu o chamo de "clichê antimúsica erudita". 

A cena do aniversário é retratada como uma comemoração solene, com pessoas vestidas em trajes a rigor. Apresenta-se uma espécie de conjunto de cordas, a executar peças de música erudita ao gosto do aniversariante Philippe, um cultor das artes mais refinadas que o gênio humano já foi capaz de produzir. Os presentes, todos senhores e senhoras mui respeitáveis, estão sentados, tomados por um ar grave, quase como se o clima fosse de um velório, onde a música erudita representa a trilha sonora que, ao mesmo tempo, distingue o sofisticado e elegante do grosseiro e feliz. É justamente aí que entra Driss, a quem Philippe tenta, em vão, ensinar o significado daquela maneira peculiar de fazer música (peculiar, visto que toda música instrumental tornou-se denotativa de peculiaridade no mundo "pop"). Driss, desinteressado, prefere ensinar Philippe a conhecer a "alegria da vida" à sua maneira, apresentando-lhe, ao final da festa, sua própria música, o R & B dos Estados Unidos. Para isso, no dispositivo sonoro portátil, coloca para tocar "Boogie Wonderland" do grupo Earth, Wind & Fire. Logo, a festa, que até então transcorrera monótona como o enterro de um defunto ao som da música erudita, torna-se finalmente um momento de sincera alegria, onde os mesmos respeitáveis convidados, dantes contidos e solenes, põe-se a dançar alegremente, como se tivessem descoberto no "pop" a saída álacre para a prisão desditosa do erudito.

Música erudita, chatice e infelicidade: a reprodução de um clichê na cultura "pop" 
 


Infelizmente, tratar a música erudita como algo "chato" já se tornou um clichê comum na cultura "pop" em geral. No cinema não é diferente: o lugar-comum é retratá-la como uma forma de arte anacrônica, deslocada no tempo, que só sobrevive graças ao apelo à tradição, o que fica manifestamente representado no seu público formado por idosos, seres mumificados, todos a esperar a hora da morte. A música erudita é também arte da elite econômica, como se pode ver, por exemplo, em Titanic (1997), de James Cameron, onde o convés do navio separa as classes abastadas - apreciadoras de música erudita em ambientes distintos e elegantes, porém frios e infelizes -, da ralé dos andares de baixo, suja e maltrapilha, mas indiscutivelmente mais feliz dançando ao som de animadas composições populares. Para o clichê antimúsica erudita que se difundiu na cultura "pop", é impossível ouvir compositores como Bach, Brahms, Beethoven, Mozart, Mussorgsky, Tchaikovsky, Barber, Elgar, Chopin, Wagner, Brouwer, Villa-Lobos et coetera e sentir algum prazer. Afinal, música erudita é "música de velho", é "coisa chata".  

Esse pensamento, que se difunde à medida que aumenta a quantidade de vezes que o clichê é reproduzido, é pernicioso por aprofundar o distanciamento que existe entre as novas gerações de ouvintes e a música erudita, que, mesmo sendo "clássica", não tem merecido o apreço senão de um nicho cada vez mais reduzido de musicólogos e estudantes de  música. O clichê antimúsica erudita é ainda mais grave se tomarmos em consideração a realidade do sistema educacional brasileiro, o qual é deficiente  em muitos aspectos, incluindo o artístico. Dessa maneira, excetuados aqueles poucos que conseguiram estudar em conservatórios, ou mesmo custearam do próprio bolso aulas particulares de música, a maioria do povo brasileiro é composta por analfabetos musicais, o que, se não impede, dificulta a assimilação auditiva de melodias, harmonias, ritmos, timbres, formas e texturas que fujam ao padrão introdução-refrão-solo-refrão do "pop". E "analfabeto musical" não é somente alguém que "não toca um instrumento" ou não teve "instrução formal" na música (eu já conheci vários instrumentistas completamente analfabetos), mas é sobretudo alguém que carece de "cultura musical", alguém de audição limitada e grosseira, que se nega a ouvir qualquer coisa que não tenha uma letra a ser cantada ou uma padronagem enquadrável no seu estilo favorito, isto é, àquele ao qual sua audição pauperizada habituou-se. Um analfabeto musical é um ser dotado de um cabedal cultural pobríssimo e por princípio intolerante, inapto, portanto, a compreender com profundidade a arte qual uma manifestação da beleza humana.      

Logicamente, o filme "Intocáveis" apenas se valeu de um clichê correntio. Nada inovou. Foi convencional. E neste reside o seu grande ponto fraco: trata-se de mais uma comédia dramática previsível como qualquer outra das que já foram milhares de vezes filmadas em Holywood (apesar de que, por se tratar de um filme francês, a sobriedade dos europeus pesou, o que me parece ter evitado que a obra caísse num dramalhão modorrento e forçado, como o que os estadunidenses adoram produzir diante de um roteiro que envolva personagens vitimadas por acidentes trágicos).

O sucesso de bilheteria estrondoso que a película dos diretores Nakache e Toledano alcançou em todo o mundo só reforça que foram competentes em situar na França os clichês a que o grande público do cinema acostumou-se a ver ambientados nos Estados Unidos da América. "Intocáveis" é um bom blockbuster, sem dúvida, e vai com certeza emocionar a namorada. Enquanto arte cinematográfica, todavia, não vai muito além disso.

sábado, 12 de janeiro de 2013

LITERATURA ROCK N' ROLL: balançando personagens na narrativa polifônica de "A Visita Cruel do Tempo" de Jennifer Egan


I let my skin get too thin
I'd like to pause,
No matter what I pretend
Like some pilgrim
Who learns to transcend
Learns to live
As if each step was the end.
Rush, "Time Stand Still" (1987).
O balanço do rock na literatura

O rock n' roll é um ritmo musical surgido no final da década de 1940 nos Estados Unidos. Abeberando-se no blues, a principal característica do estilo foi o que lhe deu um nome: o balanço. O "balanço do rock", dessa forma, é uma expressão redundante do ponto de vista da língua inglesa, mas que, no bom português, cuida de demonstrar que aquele ritmo musical - uma das mais significativas manifestações da cultura estadunidense - estava escorado no desejo da juventude de se movimentar, de dançar de uma maneira mais livre, mais solta, quiçá mais rebelde, ou menos conservadora. Por isso, no contexto do rock n' roll, "balançar-se" é também um ato de liberdade. 

Agora, seria possível que um estilo musical viesse a influenciar também a literatura? Se admitirmos que a resposta a esse questionamento é positiva, seria possível então pensarmos em uma "literatura rock n' roll"?       


A resposta a essa última pergunta me parece afirmativa. Não como um gênero próprio, é claro, que viesse a disputar espaço com romances policiais ou de aventura. A classificação de uma "literatura rock n' roll" seria apenas um exercício de ludismo no campo literário, uma licença-poética da crítica para qualificar o emprego de muitos recurso de técnica narrativa, alternando constantemente os modos de narração (em primeira, em segunda, em terceira pessoa), cortados por diferentes momentos no tempo (passado, 
presente, futuro). Tantas alternâncias, tantas variações, com múltiplos personagens a todo momento se cruzando, podem bem autorizar a que se afirme a existência, num determinado texto, de uma mixórdia literária que flerta habilmente com a sonoridade de uma banda de rock - onde guitarras cheias de distorção se juntam ao peso do contrabaixo, guiados pelo bumbo agressivo e veloz de uma bateria que marca o grave dos sons qual o metrônomo do ritmo. Assim, se pudéssemos, neste jogo conceitual que proponho, designar algo de "literatura rock n' roll", a polifonia das vozes da narrativa equivaleria a uma espécie de "balanço". O balanço do rock

Obviamente, uma obra que se propusesse a isso - variar vozes, perspectivas, espaços de um tempo descontínuo em diferentes cenários - exigiria, da parte do autor, um acurado rigor técnico. Logo, diversamente do que ocorre na música, em que basta ligar o aparelho de som e começar a se "balançar", na literatura, o "balanço" de personagens necessariamente pressupõe um domínio cirúrgico das técnicas narrativas.   


Balançando personagens ao som de punk rock

Capa da edição estadunidense de "A Visit from the Goon Squad " (2010).
A guitarra com as cordas arrebentadas dá uma dimensão precisa
de como os sonhos embalados pela música são destruídos pela ação cruelíssima do tempo. 

Parece ser esse, enfim, o grande mérito do livro A Visita Cruel do Tempo (A Visit from the Goon Squad, 2010) da escritora estadunidense Jennifer Egan. Trata-se de um romance complexo, não pela profundidade filosófica dos temas que aborda, mas pela maneira polifônica com que a autora constrói a narrativa, "balançando" a todo momento seus personagens como se estivessem num excitante show de rock n' roll. E o que é mais impressionante: sem deixar a história (ou as histórias) enfarada ou desconexa. 

No enredo, por sinal, a escritora apresenta múltiplos personagens, dando-lhes destaque a cada capítulo, como se fosse um livro de contos. De fato, se o leitor viesse a ler aleatoriamente um capítulo do romance, seria capaz de compreendê-lo de maneira isolada, embora viesse, por suposto, a perder a apreensão do todo. Pois o que liga as personagens de A Visita Cruel do Tempo não é um enredo linear e progressivo, mas sim isto: o tempo. Ou melhor, a passagem do tempo. Uma passagem que há de ser necessariamente cruel.     


Assim é que Egan, no capítulo 1 ("Achados e perdidos"), destaca a história de Sasha, uma mulher que sofre do mal da cleptomania. A cidade é Nova York, onde quase toda a trama desenvolver-se-á (outros lugares utilizados serão as cidades de São Francisco, nos Estados Unidos, e Nápoles, na Itália, além de uma viagem familiar a um safári na África). Sasha encontra-se no banheiro de um hotel, a refletir sobre o furto que acabara de cometer. Pesa sobre sua consciência a terapia a que se vinha submetendo para tratar sua compulsão. Teria falhado o tratamento? Enquanto hesita, descobrimos que Sasha havia saído naquela noite para um encontro com Alex, um forasteiro, recém-chegado a Nova York, e com sérios problemas para se adaptar ao costumbrismo nova-iorquino. Sasha é descrita como ex-empregada de Bennie Salazar, um conhecido produtor musical, famoso por ter criado o selo fonográfico Sow's Ear Records. Sasha está com 35 anos de idade e trabalhara durante 12 anos com Bennie. Sua relação com o ex-patrão fê-la conhecer Lizzie, cuja lembrança é evocada no momento em que Sasha aspira o aroma vaporoso de plantas próximo à banheira na cozinha do seu apartamento em Lower East Side, para onde fora com Alex, a fim de fazer sexo sem compromisso naquela noite.    


Apenas nessa breve síntese do primeiro capítulo encontramos referências que hão de desembocar em muitas outras narrativas ao longo do romance. Já no segundo capítulo ("Ouro que cura"), a autora focaliza a narração em Bennie. Este ainda é patrão de Sasha, o que significa dizer que a trama voltou ao passado na passagem de um capítulo para outro. Bennie é agora um pai de família que vai buscar seus filhos ao som dos Sleepers e dos Dead Kennedys, duas bandas de punk rock que o fazem recordar da sua adolescência, quando tentou (sem sucesso) a vida de roqueiro em São Francisco. É nesse momento que Egan introduz a figura do produtor musical Lou Kline, que foi mentor de Bennie, ora lembrado como alguém saudoso, porquanto já falecido.


Bennie ficou aliviado por ela não ter entendido o que ele dissera. Lembrou-se de seu mentor, Lou Kline, dizendo-lhe nos anos 1990 que o auge do rock and roll tinha sido o festival Monterey Pop. Os dois estavam na casa de Lou, em Los Angeles, cheia de cascatas e das garotas bonitas que Lou sempre tinha por perto, com sua coleção de carros em frente à casa, e Bennie tinha olhado para o rosto famoso de seu ídolo e pensado: Você acabou. A nostalgia era o fim da linha - todo mundo sabia disso. Lou tinha morrido três meses antes, depois de ficar paralisado devido a um derrame. (EGAN, 2011, p. 41). 

No capítulo três ("Não estou nem aí"), a autora muda o modo da narração. Agora ela é feita em primeira pessoa pela sardenta Rhea, que é apaixonada por Bennie, mas que a ignora. Rhea descreve os bastidores da formação, em São Francisco, da banda de punk rock Flaming Dildos, que ensaia na garagem da casa de Scotty, o guitarrista, tendo Bennie Salazar no baixo. Também participam do ensaio Jocelyn e Alice. Jocelyn está a namorar em segredo com Lou, produtor musical de rock, um charmoso quarentão, viciado em cocaína e pai de seis filhos, que mora em Los Angeles, mas que procura Jocelyn (para transar) sempre que vai a São Francisco. Alice é a garota rica da turma, por quem Bennie é apaixonado, mas que, no final, prefere namorar Scotty.    

Pois é Scotty quem vai protagonizar a narrativa em primeira pessoa do capítulo 6 ("Xis-Zero"), contando como tentou reaproximar-se do seu amigo e ex-companheiro de banda Bennie Salazar, agora um bem sucedido produtor de discos que tinha ficado famoso por causa de uma banda chamada The Conduits. Scotty, que fora o bonitão da escola, popular e disputado pelas garotas, agora é um homem divorciado (de Alice), que trabalha como zelador em uma escola de ensino fundamental e, no verão, cata lixo no parque às margens do East River de Nova York. Scotty vai até o prédio da gravadora Sow's Ear Records, onde Bennie trabalha, ocasião em que encontra, na recepção, Sasha, a assistente cleptomaníaca de Bennie. E assim Egan põe-se a costurar o enredo, entrelaçando a vida de muitas personagens, num "balanço" contínuo de presente, passado e futuro, onde o som do rock n' roll funciona como uma perene "cola" na memória, a relembrar sonhos perdidos e desejos irrealizados, dada as muitas vezes que a autora invoca o nome de bandas, especialmente da cena punk dos Estados Unidos, ainda que o grunge (do Nirvana e do Pearl Jam), e mesmo o hard rock do AC/DC na estampa de uma camisa, sejam igualmente referenciados.       


Tempo: o visitante cruel


Outra edição de "A Visit from a Goon Squad" ressalta  na capa um homem com uma guitarra,
invocando conhecida imagem-símbolo do rock n' roll,
tema que vai atravessar a vida de todas as personagens do livro. 

Mas, ao contrário do que pode parecer, A Visita Cruel do Tempo não é um livro sobre música. Na verdade, o punk rock não é o elemento principal da trama. No livro, a música funciona como a trilha sonora que embala a decrepitude desesperançada dos sonhos da juventude. Por trás do riff repetitivo de uma melodia punk, o romance a todo momento questiona o que o tempo faz com a vida das pessoas, como o tempo visita-as, em geral, de maneira cruel. Isso fica muito evidente no diálogo entre Bennie e Scotty, no contexto do sucesso do primeiro (produtor musical do The Conduits) e do fracasso do segundo (catador de lixo). 
- Vamos lá, Scotty - disse ele. - Você me escreve do nada, e agora aparece no meu escritório... Imagino que não tenha vindo até aqui só para me dar um peixe.
- Não, o peixe era um presente - falei. - Eu vim aqui pelo seguinte: quero saber o que aconteceu entre A e B.
Bennie pareceu estar esperando mais.
- A era quando a gente tocava na mesma banda e corria atrás da mesma garota. B é agora. (EGAN, 2011, p. 41). 

A pergunta que questiona o que aconteceu de A (o passado) a B (o presente) é, na verdade, o anelo reprimido de alguém que busca, em vão, uma explicação para a crueldade do tempo, este ser impiedoso que sempre transforma as pessoas. Como pôde o sonho de se tornar um rockstar no passado, que engendrou uma amizade tão forte quanto a de Bennie e Scotty, ter redundado em um distanciamento tão grande no presente? 
Ele estava encostado na frente do losango preto, com as pernas cruzadas na altura dos tornozelos - uma daquelas poses que parecem muito relaxadas, mas na verdade são muito tensas. Ao erguer os olhos para ele, entendi várias coisas, todas em uma espécie de efeito cascata: (1) Bennie e eu não éramos mais amigos, nem jamais seríamos; (2) Ele estava querendo se livrar de mim o mais rápido possível com o mínimo de aporrinhação possível; (3) Eu já sabia que isso iria acontecer. Sabia antes de chegar ali; (4) Era esse o motivo que me fizera ir visitá-lo. (EGAN, 2011, p. 101). 

Desse modo, percebe-se que o romance de Egan costura as suas muitas subtramas (ou os seus muitos "contos") de uma maneira não linear no tempo, tampouco no modo da narração (a pessoa do narrador, como vimos, é submetida a variações ao longo do livro). Mas as alternâncias empreendidas nunca deixam de resvalar no prospecto temporâneo, no sentido filosófico de que os anos são também uma agressão, seja ao viço da juventude (o ataque ao belo da aparência física), seja aos sonhos daqueles que principiam a descobrir as (im)possibilidades da vida - o mais das vezes indo, velozmente, de encontro a um muro quase sempre intransponível.  

Bosco: um roqueiro gordo e decadente 

O roqueiro Axl Rose, em show no Canadá em 2010, gordo e decadente: seria o alter ego de Bosco?
Crédito: Boris Menkevich.

É nesse sentido (pessimista) que se deve compreender, já na parte IV do capítulo VII, a interessante passagem que retrata a crise na carreira artística do músico Bosco (quase um alter ego de Axl Rose, hoje o exemplo maior de um rockstar decadente). Bosco é ex-guitarrista do The Conduits, banda com a qual tivera muito sucesso no passado. Hodiernamente, todavia, encontra-se deprimido e sem a energia que, no passado, sua figura macérrima exibia no palco, máxime desfigurado pelos muitos quilos a mais que o tempo (ou seria o sorvete?) cruelmente lhe trouxe:

Naquele Bosco não havia nada que lembrasse o esquelético praticante de um som do final dos anos 1980 situado em algum lugar entre o punk e o ska, uma pilha de energia ruiva de calça justa que fazia Iggy Pop parecer tranquilo no palco. Aconteceu mais de uma vez de os donos das casas de shows ligarem para a emergência durante apresentações do Conduits, convencidos de que Bosco estava tendo uma convulsão.
Ele agora estava muito gordo - supostamente por causa dos remédios, tanto aqueles usados no tratamento pós-câncer quanto os anti-depressivos -, mas uma olhada em sua lata de lixo quase sempre revelava um pote de quatro litros vazio de sorvete Rocky Road Dreyer's. (EGAN, 2011, p. 124-125). 
 
Na trama, Bosco encontra-se com Stephanie, sua assessora de imprensa e agente de shows. Stephanie mora em Crandale, região nobre de Nova York, e é casada com Bennie Salazar, com quem teve um filho (Chris) de 7 anos de idade. Ela desconfia do comportamento adulterino do marido e, contrariada, vai ao encontro de Bosco acompanhada de seu irmão Jules Jones, que planeja cobrir a última turnê do guitarrista (curiosamente, a turnê de promoção do disco De A a B). Jules quer retomar sua carreira de jornalista, interrompida pelo período que passou preso após uma tentativa de estupro da atriz Kitty Jackson, uma celebridade que ele se propusera a entrevistar. No livro, alguns dos momentos mais violentamente dramáticos saem das reflexões desbocadas e desesperadas de Bosco (sem dúvida, filosoficamente, a personagem mais interessante do romance), que encarna toda a dor que o tempo pode impor a quem experimentou o sucesso no passado, mas sem conseguir dar continuidade ao mesmo no presente:

- O álbum se chama De A a B, certo? - disse Bosco. E é essa a primeira questão que eu quero abordar: como foi que eu passei de astro do rock a um gordo de merda para quem todo mundo está cagando? Não vamos fingir que isso não aconteceu. 

(....)

- Eu quero entrevistas, matérias, o que for - continuou Bosco. - Pode encher minha vida com essas merdas. Vamos documentar cada porra de humilhação. É essa a realidade, não é? Vinte anos depois, a sua beleza já foi para o lixo, especialmente quando arrancaram fora metade das suas entranhas. O tempo é cruel, não é? Não é assim que se diz? (EGAN, 2011, p. 126).
 
 
Bosco surpreende e acaba por se tornar uma personagem que catalisa, de maneira bem direta, a densidade filosófica que as sucessivas histórias do romance cuidam de estimular sub-repticiamente a cada capítulo. Exemplar é a sua reflexão sobre o suicídio como uma forma de "arte":  

- Eu estou acabado - disse ele. - Estou velho, estou triste... e isso em um dia bom. Eu quero sair fora disso tudo. Mas não quero me encolher em um canto, quero ir embora em grande estilo: eu quero que a minha morte seja uma atração, um espetáculo, um mistério. Uma obra de arte. Agora, minha cara senhora RP... - disse ele, reunindo suas carnes flácidas para se inclinar em direção a ela, com os olhos cintilando no crânio inchado. - Não venha me dizer que ninguém vai se interessar por isso. Se o negócio é reality na TV, porra... mais real, impossível. O suicídio é uma arma; isso todo mundo sabe. Mas e se for também uma arte? (EGAN, 2011, p. 128-129).
 
Vê-se, portanto, que as histórias do romance estão presas no tempo pela desesperança, pelo infortúnio que acomete as vidas das personagens submetidas à ação cruel do tempo.  
 
As feridas que o passado esconde 

Mas feridas que o tempo produz não estão restritas ao presente com os olhos abertos para o que se espera (de pior) do futuro. É o que Egan ilustra no capítulo 11 ("Adeus, meu amor"), que narra a busca de Ted Hollander pelos becos da cidade de Nápoles, onde quer encontrar sua sobrinha Sasha. Aos 17 anos de idade, Sasha fugira de casa como que para fugir de uma adolescência problemática, a envolver uso de drogas e inúmeras prisões por roubo em lojas. Então, quando Ted encontra a sobrinha num prostíbulo, tem a exata dimensão do que é estar só no mundo.

Sasha sentou-se na cama e ficou vendo Ted abarcar com os olhos os seus parcos pertences. Ele entendeu, com uma clareza implacável, o que de alguma forma não havia conseguido perceber na véspera: como a sobrinha estava só naquela terra estrangeira. Como não tinha nada. 
Como se houvesse sentido a direção tomada pelos pensamentos do tio, Sasha disse:
- Eu conheço muita gente. Mas a amizade nunca dura. (EGAN, 2011, 226).

Por isso, há que se reconhecer também que o tempo (passado) esconde suas próprias cicatrizes, muitas das quais deixam marcas indeléveis na vida das pessoas. São marcas de um passado que ninguém pode apagar, mesmo que, paradoxalmente, nada dure, nem mesmo a amizade.


Estupor da música, crudelíssimo tempo

A escritora estadunidense Jennifer Egan,
vencedora do prêmio Pulitzer de Ficção de 2011 com o livro "A Visita Cruel do Tempo".

Variando tempos e focos narrativos, num ciclo polifônico de personagens que "balançam" a vida uns dos outros, explorando tendências da literatura pós-moderna, como o uso de notas de rodapé, além de inovar com um capítulo inteiramente construído com slides de Power Point, a estadunidense Jennifer Egan acabou por criar um romance extraordinário, onde o elo das muitas histórias que se entrecruzam a cada capítulo não é somente a música, que estimula e excita o frescor dos sonhos de juventude, mas o tempo, que visita, qual um hóspede indesejado, as pessoas, agredindo-as como um capanga intimorato, de cenho eternamente franzido e intimidante (por isso o título original, em inglês, reporta-se à metáfora da visita de um goon squad). 


Em A Visita Cruel do Tempo, como num show de rock, o tempo passa rápido, porque o prazer de ouvir a música emociona e entorpece. Mas, tão logo o estupor cessa, torna a realidade, que bate forte e dolorosa como um soco no estômago, e cobra o preço da velhice, da falta de esperança, da crueldade que é ver os sonhos da juventude esvaírem-se numa ruína pungente de rugas e obesidade, consumidos pela rotina de pessoas que não esperam senão lutar pela própria sobrevivência, sem cor e sem brilho, sem música, sem a liberdade que sempre buscaram no balanço do rock n' roll.         
REFERÊNCIAS
EGAN, Jennifer. A Visita Cruel do Tempo. Tradução de Fernanda Abreu. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011. 336 p.