sexta-feira, 12 de outubro de 2012

NEM SÓ DE BRINQUEDO É FEITO O SORRISO DE UMA CRIANÇA: manifesto em defesa do livro, da literatura infantil e dos presentes que valem para a vida toda no dia das crianças


A origem histórica do dia da criança no Brasil e a influência da indústria dos brinquedos

Brincar com crianças não é perder tempo, é ganhá-lo;
se é triste ver meninos sem escola, mais triste ainda é vê-los enfileirados
em salas sem ar,
com exercícios estéreis,
sem valor para a formação do homem.
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), poeta brasileiro.
 
Há várias datas comemorativas no Brasil. Algumas têm significado oriundo de uma tradição religiosa cristã (Páscoa, Natal, Semana Santa), outras são laicas na sua origem (ano novo, dia das mães, dia dos pais). Neste último grupo, encontra-se o dia da criança.   
Diversamente do que sucede com a festa natalina em dezembro, o dia da criança não possui uma data de comemoração uniformizada no ocidente. Ela é variável conforme se trate de um país ou outro. E varia também sua dimensão de importância junto ao folclore social comemorável. Nos Estados Unidos, por exemplo, a sociedade prestigia muito mais a festa do Halloween, ficando o dia das crianças com pouca ou nenhuma repercussão. No Brasil é diferente, pois a comemoração da data é fortemente estimulada pela mídia. O motivo é de uma obviedade flagrante: as crianças têm um potencial consumidor impressionante, máxime quando se trata de brinquedos.
Pois foi a indústria dos brinquedos que fez com que o dia da criança passasse a integrar o rol de datas comemorativas anualmente celebradas no Brasil. Na verdade, a homenagem já existia desde 1924, época em que o então presidente da República Arthur Bernardes baixou o decreto 4.867, para instituir oficialmente o dia 12 de outubro como o dia da “Festa da Criança” em todo o território brasileiro. Mas, como sói acontecer com determinações burocráticas sem respaldo social, a data só existia no papel. Ninguém a levava a sério. A situação mudou, contudo, na década de 1960, quando a indústria de brinquedos nacional investiu pesadamente em propaganda, incentivando a comemoração. O sucesso da campanha propagandística foi tão grande que chamou a atenção de toda a população para a data. E assim o dia 12 de outubro ingressou no imaginário social: sob a influência direta da indústria de brinquedos.
Uma proposta de comemoração do dia das crianças anti-indústria de brinquedos
 
A observação histórica acima é importante para revelar as consequências de a indústria ter sido a responsável por introduzir a celebração do dia da criança nas efemérides anuais do Brasil. A primeira consequência é a total falta de significado humano da data: ninguém pensa em celebrar o dia da criança como o dia de vindicar o respeito aos direitos dos infantes (alguém duvida que eles estejam a ser cotidianamente violados?). A segunda consequência é a de converter, como num passe de mágica, toda a comemoração em um anelo consumista: dia da criança só é dia da criança se tiver brinquedo. Não sem razão as propagandas veiculadas amplamente no período aludem à diversão e ao prazer infantis em ambientações onde aparecem pequenos seres felizes cercados de toda sorte de bugigangas. Naturalmente, o marketing visa a um duplo efeito: estimular desde a mais tenra idade o impulso consumista ao passo que reforça o ideário de uma sociedade de massas que associa, de maneira estúpida, paternidade/maternidade com consumo. Não há como fugir: se um genitor opta em não dar presente ao filho nessa data, a criança será de toda sorte achincalhada – muita vez na própria escola, onde desde cedo se aprende que “ter o brinquedo mais legal” implica ser um infante superior, visto que mais feliz. Além disso, os pais também sofrerão. Mui provavelmente serão acusados de avaros (“Ele não compra presente para o próprio filho!”), quando não de desalmados seres humanos sem coração (“Pai que não dá brinquedo pro filho não ama”). E aqui entra um conceito de amor altamente discutível: será que só é possível amar uma criança expressando o sentimento com bens materiais? Será que não pode haver amor por gestos ou palavras? Será que um abraço afetuoso e uma convivência amorosa não vale muito mais do que uma boneca comprada às pressas na liquidação do shopping? E aquelas pessoas que não podem comprar brinquedos? Como ficam? Acaso não amam seus filhos? Só há amor na riqueza? Ou, por outras palavras, não existe amor na pobreza?
Eu poderia prosseguir em reflexões dessa ordem ao infinito, agudizando o espírito crítico. Mas meu objetivo aqui é outro. Apontei um cenário. Estou convicto de que, pela intrepidez da minha pena, não hei de mudá-lo. Se me pus a expressar meu pensamento, defendendo que a paternidade/maternidade são conceitos distintos - bem distintos, por sinal – do consumo desbragado, tendendo muito mais para o afeto sincero, a prescindir de manifestações materiais para atingir sua completude, fi-lo por amor à nobre arte schopenhaueriana de argumentar. Não creio tenha forças para lutar, sozinho, contra toda a sociedade brasileira que, não bastasse acatar o engodo de uma comemoração forjada pela indústria, condena impiedosamente à execração social aquele que não compactua com o moto mercadológico segundo o qual “no dia das crianças, compre brinquedo”. E é por isso que evito expressar minhas ideias em sociedade. Prefiro fazê-lo por escrito. Tenho o afã de encontrar naquele que lê o que escrevo o interlocutor democrático, respeitador do debate civilizado de ideias, condição dificilmente encontrável nos debates orais travados entre os que andam a transitar pelas ruas, cada vez mais povoadas de almas penadas pela mais absoluta incapacidade de refletir sobre os seus próprios atos.
Assim, caro leitor, rendendo-me aos apelos consumistas que circundam o dia das crianças, quero propor algo diverso do que costumamos ouvir por aí. A proposta é a seguinte: se o dia das crianças pressupõe “ganhar presentes”, que tal se esse “presente” fosse algo útil para a vida toda? Refiro-me a um objeto material (no sentido de ser palpável), cujo entretenimento proporcionado não se cingiria apenas ao momento lúdico, mas permaneceria gravado na memória do infante por toda vida? Que presente, ao fim e ao cabo, seria esse?
 
Um presente para a vida toda: livros, literatura infantil e algumas sugestões literárias para crianças 
 
 
Diante dos questionamentos propostos, no sentido de saber qual presente corresponderia à expectação de um entretenimento infantil superior no dia das crianças, vejo-me conduzido, de maneira invencível, a uma única resposta: o livro. Livros são o melhor presente que alguém pode dar a outrem. E essa afirmação vale, evidentemente, para pais e filhos. Já que temos de aturar a imposição social de consumismo forçado no dia 12 de outubro, num movimento torpe que conjuga o verbo “amar” indissociavelmente ao de “presentear”, que tal se o presente a ser dado valesse para a vida toda? Um presente que proporcionasse muitas horas de diversão, que estimulasse a imaginação pelo exercício da leitura enquanto aperfeiçoa, paralelamente, o domínio da linguagem? Por todos esses atributos, creio que presentear as crianças com livros seja uma demonstração digna de afeto. Remete, pois, ao ato de amor de quem quer cuidar para a vida inteira – e não apenas o gesto frio e maquinal do automatismo familiar que cumpre uma convenção de efemérides ano após ano. Dar um livro de presente a uma criança significa dar a ela a sabedoria necessária para viver.
 
Logicamente, nem todo o livro há de servir qual presente para um infante. Houvesse recebido dos meus pais, ainda criança, um livro complexo como “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago, é provável que não tivesse entendido absolutamente nada (na realidade, o perigo seria entender a narrativa e crescer atormentado com a ameaça duma epidemia súbita de “cegueira branca”). Por isso, a literatura reserva um espaço carinhoso aos escritores que escrevem livros para jovens. Seja o público alvo infantil ou infantojuvenil, essas obras não podem ser desprezadas na construção de uma formação sólida no campo das humanidades. E tanto isso é verdade que até hoje me ponho a adquirir exemplares de clássicos da literatura infantil. Não me causa nenhum desconforto ser flagrado a ler, por exemplo, contos de fadas de Hans Christian Andersen ao lado da obra de Cees Nooteboom; ou deixar-me encantar pela doçura de Alice e seu país de maravilhas, concebido por Lewis Carrol, depois de deitar os olhos na moderna poética neogrega de Konstantinos Kaváfis. Para um amante incondicional da literatura como eu, toda história é sempre um barco a navegar pelas águas plácidas da felicidade, do mais genuíno e sincero prazer.   
 
Fundamentada minha proposta de presentear os filhos com livros no dia das crianças, devo advertir o leitor de que também não basta apenas a vontade de presentear. É preciso considerar a escolha, de maneira criteriosa, até para que o rebento não perca tempo de vida útil enquanto leitor. E acreditem: trata-se de um parâmetro importante se se considerar que a vida é curta – curta demais, eu diria – para dar conta da profusão de grandes obras à disposição dos que leem amiúde. Logo, não convém perder tempo com maus escritores (no fundo, maus leitores também). É preciso considerar a urgência da juventude em ter o seu “primeiro encontro” com os clássicos da literatura, como bem observou, aliás, Ítalo Calvino (2007, p. 9):
Comecemos com algumas propostas de definição.
1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve
dizer: "Estou relendo ... " e nunca "Estou lendo ... ".
Isso acontece pelo menos com aquelas pessoas que se consideram "grandes leitores"; não vale para a juventude, idade em que o encontro com o mundo e com os clássicos como parte do mundo vale exatamente enquanto primeiro encontro.  

Desse modo, embora eu não tenha filhos (já houve quem me acusasse de “playboy” da literatura por conta disso, mas ilidi as acusações do vulgacho ao recordar a paternidade afetuosa que dedico aos meus instrumentos musicais), dada a minha experiência de leitor com pouco mais de um quarto de século de vida, gostaria de recomendar aos pais alguns autores que, segundo entendo, são excelentes para estimular o gosto pela boa literatura e estão à disposição no mercado livreiro nacional. Ei-los:
1)   Monteiro Lobato: impossível iniciar uma lista de autores recomendáveis para crianças sem mencionar o nome do grande fabulista brasileiro. No início do século XX, a criatividade extraordinária de Lobato fê-lo criar o famoso “sítio do picapau amarelo” e suas inesquecíveis personagens:  EmíliaNarizinhoPedrinhoVisconde de SabugosaDona BentaTia NastáciaCucaSaci etc. No mercado brasileiro, a editora Globo relançou a obra infantil de Monteiro Lobato em lindas edições ricamente ilustradas por nomes como Paulo Borges, Camilo Riani, Luiz Maia, Elisabeth Teixeira etc. Se possível, recomendo adquirir as caixas “Monteiro Lobato Infantil”, “Monteiro Lobato Conta Outra Vez” e “Monteiro Lobato em Quadrinhos” – todas dignas de cuidadoso trabalho editorial.
2)   Ziraldo: eis um nome de um cartunista e chargista de grande importância no movimento de resistência à ditadura militar brasileira, especialmente pelo seu trabalho no periódico O Pasquim. Na década de 1980, Ziraldo lançou o seu maior sucesso editorial: O Menino Maluquinho. E esse foi um dos personagens que mais marcou minha infância, já que eu lia o gibi regularmente ao lado das histórias em quadrinhos do Homem-Aranha e dos dramas dos mutantes dos X-Men. Na infância, eu sempre me identifiquei com o arquétipo transgressor-contestador-iconoclasta do menino maluquinho e sua paixão pela espirituosa Julieta (descrita como uma menina bastante inteligente), muito mais do que com as histórias da Turma da Mônica de Maurício de Souza – outro grande quadrinhista infantil. Além disso, como eu passei quase toda a minha infância escrevendo e desenhando histórias em quadrinhos (foi na adolescência que eu passei a estudar música), o traço de Ziraldo influenciou-me muito, quase tanto quanto o do espanhol Sergio Aragonés, que é meu cartunista favorito.  Recomendo adquirir, obviamente, o livro O Menino Maluquinho e os demais livros da série, como A Panela do Menino Maluquinho, Uma Menina Chamada Julieta, além dos livros da coleção A Turma do Pererê. A propósito: numa parceria entre as editoras Saraiva e Melhoramentos, está à venda o “Kit Ziraldo”, em comemoração aos 80 anos do autor, contendo a 100ª edição de O Menino Maluquinho e o Almanaque Ziraldo. É simplesmente imperdível! Por óbvio, já encomendei o meu.
3)   Antoine de Saint-Exupéry: o francês era piloto. Não surpreende, portanto, que tenha criado uma das mais belas fábulas envolvendo o diálogo entre um aviador e um principezinho. O Pequeno Príncipe é o retrato infantil do dilema adulto de crescer insensivelmente, captado nas conhecidas palavras de Goethe: “O homem deseja tantas coisas e, no entanto, precisa de tão pouco”. Obra universal e obrigatória, O Pequeno Príncipe já se encontra em sua 48ª edição no Brasil e é publicado pela editora Agir.   
4)   James Matthew Barrie: ele foi o criador daquela história de quem todo mundo já ouviu falar, mas nunca ninguém leu o livro. Trata-se da história de Peter Pan, o menino que não queria crescer, e das demais personagens que o cercam: Wendy, Sininho, Capitão Gancho. Graças ao cinema (e à obsessão infantil de Michael Jackson com seu rancho Neverland), são figuras muito populares. Nada melhor, então, que ler a história de Peter e Wendy, o título do original escrito pelo escocês J. M. Barrie. Publicado em 1911, o livro de Barrie ganhou este ano duas excelentes edições no mercado brasileiro. A primeira (Peter Pan – edição definitiva, comentada e ilustrada, 2012) faz parte da (excelente!) coleção de clássicos comentados da editora Zahar, conta com tradução de Júlia Romeu, apresentação de Flávia Lins e Silva e notas de Thiago Lins. A segunda (Peter e Wendy, 2012) saiu recentemente pela Cosac Naify, editora que é sinônimo da mais alta qualidade editorial no Brasil. A versão da Cosac manteve o título original de Barrie, foi traduzida por Sérgio Flaksman, conta com posfácio do germanista estadunidense Jack Zipes, quarta capa assinada pela atriz Denise Fraga e é ilustrada lindamente por Guto Lacaz. É volume de luxo, é caro, mas custa muito menos do que um aparelho de celular smartphone ou uma boneca da Barbie que fala, canta e dança, em inglês e com legendas, tudo ao mesmo tempo.   
5)   Die Brüder Grimm: os irmãos Jacob Ludwig Carl Grimm e Wilhelm Carl Grimm, mais conhecidos como "Os irmãos Grimm", entraram para a história da literatura com seus dois volumes de contos. Mas “seus” é possessivo de força de expressão. Na verdade, a obra era a consequência de um trabalho portentoso de pesquisa que os irmãos levaram a efeito na Europa do século XIX, especialmente na cidade de Hanau, situada em Hessen, um dos dezesseis Länder da Alemanha. Coube aos irmãos Grimm compilar as histórias de “contos de fadas” que circulavam no plano da estrita oralidade, convertendo-as para o plano da linguagem escrita. O resultado veio com a publicação, respectivamente em 1812 e 1815, dos dois volumes de Kinder-und Hausmärchen (KHM oder Grimms Märchen), que a editora Cosac Naify coloca, no mês de outubro, à disposição dos leitores brasileiros com o título de Contos maravilhosos infantis e domésticos (2012). A qualidade da edição dispensa comentários: a tradução direta do alemão ficou com Christine Röhrig, a apresentação sob a responsabilidade do germanista e crítico literário Marcus Mazzari, além das ilustrações do gravurista pernambucano J. Borges. É obra indispensável na biblioteca de qualquer leitor, seja criança ou adulto. Basta recordar que histórias como a de “Bela Adormecida” (Dornröschen), "Chapeuzinho Vermelho" (Rotkäppchen), “João e Maria” (Hänsel und Gretel), “Rapunzel”, "Cinderela" (Aschenputtel) e “Branca de Neve” (Schneewittchen) saíram desses volumes de contos. Detalhe é que a Cosac Naify preparou duas versões do livro: uma dita “convencional”, em brochura, com luva de papel cartão e preço mais baixo (eu disse preço mais baixo, e não preço barato!), e outra dita “especial e limitada”, de luxo, com capa dura, revestida com tecido e luva em material transparente e impressão em serigrafia. Esta última terá tiragem de apenas 700 exemplares (e o dobro do preço da primeira, ou seja, caríssima!). Obviamente, como todo bom bibliofílico apaixonado por literatura alemã, já acionei alguns contatos e encomendei o meu junto à editora em São Paulo antes mesmo do lançamento oficial. Restam, portanto, apenas 699 exemplares.
6)  Henrique Pinto: foi o maior professor brasileiro de violão em todos os tempos (em minha opinião, sua pesquisa didática equivale em importância a de Frederick Noad na Europa). Graças aos livros do seu conhecido curso de "Iniciação ao Violão", milhares de estudantes, incluindo a mim, puderam iniciar-se nos estudos da técnica violonística erudita. Cito-o como uma sugestão peculiar aos pais cujos filhos estejam dispostos a estudar música e,  em particular, o violão erudito. Henrique Pinto escreveu um livro único, adotado em vários conservatórios da Europa, chamado de "Ciranda das 6 cordas: iniciação infantil ao violão", publicado pela editora Ricordi. Trata-se de um autêntico método de estudos violonísticos para crianças, muito útil para quem está a começar sua alfabetização musical na leitura das partituras e a desenvolver a coordenação motora necessária para a execução das peças no instrumento. Como Henrique Pinto faleceu em 2010, esta é também uma forma de homenagear o professor que tanta contribuição deu à educação musical no Brasil - incluindo a das crianças.   
Essas foram, assim, algumas obras que eu indico aos pais que desejem ver seus filhos iniciados na nobre arte literária. Alguém poderia objetar que sou mui jovem para arvorar-me em tutor de leituras de outrem; aos incrédulos responderia que tudo o que peço é um voto de confiança do leitor. Além disso, ainda que eu viesse a indicar outras centenas de obras que li e recomendo, tal seria demonstração desnecessária de pedantismo e fugiria ao propósito que me animou a escrever neste 12 de outubro. E qual foi mesmo esse propósito? Simples. Lembrar que, no dia das crianças, também é possível ser feliz com um tipo “especial” de brincadeira (a leitura) e seu respectivo brinquedo (o livro). Só que o livro não é um presente qualquer. A sabedoria que ele proporciona vale para a vida toda. Então, dê um livro ao seu filho! Garanto que ele será o melhor dos presentes que se pode dar a uma criança.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 279 p.







domingo, 7 de outubro de 2012

O INTELECTUAL DOS EXTREMOS: uma homenagem a Eric Hobsbawm (1917-2012)




O estudo da História na perspectiva crítica de Dray e Gadamer: contextualizando a historiografia de Hobsbawm
 
Vivi a maior parte do século XX,
devo acrescentar que não sofri provações pessoais.
Lembro-o apenas como o século mais terrível da história.
Isaiah Berlin (1909-1997), filósofo britânico.

Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo,
sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem.
Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio.
Eric Hobsbawm (1917-2012), historiador britânico.


A palavra “história” soa familiar a qualquer pessoa. Polissêmica, usamo-la, em regra, desde um vocabulário leigo – que remete ora à produção ficcional dos escritores (“escrever histórias”), ora às narrações orais que são transmitidas entre as gerações (“contar histórias”), ora às trivialidades do cotidiano, muita vez dotadas de caráter inverossímil (“deixa de história”). Quando, entretanto, alguém pretende usar o termo na sua acepção científica, a discussão deve necessariamente abandonar o campo da polissemia idiomática e avançar de conformidade com os rigores do método científico.
Ocorre que a conceituação da “História”, enquanto campo de pesquisa das ciências humanas, não pode ignorar o duplo sentido filosófico a ela subjacente: diz-se haver história tanto no curso causal dos fatos que se sucedem uns aos outros numa ordenada e linear relação espaço-tempo (cronológica) quanto na ação do pesquisador que dela se vale para definir o objeto de sua investigação científica. Historiadores, portanto, são cientistas que se apropriam dos fatos ocorridos no tempo, a fim de estudá-los, sistematizando-os, interpretando-os.
A definição do mister do historiador que propus acima não é de aceitação pacífica. Com efeito, é preciso considerar os teóricos que propugnam pelo “distanciamento científico”. Defendem tais autores que a História restringe-se a uma mera exposição de fatos passados. Sua missão é estipular a cadeia causal dos acontecimentos, registrando-os minudentemente. E só. Não competiria ao historiador, nessa ordem de pensamento, interpretar. A busca de explicações dar-se-ia noutros campos da ciências humanas – nunca no da História.  Por isso William Dray (1996, p. 14) afirmou que “Em verdade, os próprios historiadores preferem, por vezes, adotar essa linha a assumir responsabilidade pela maneira como apresentam explicações.”
A crítica de Dray é válida e aplica-se a um pensamento científico, hoje em declínio, que restringe estranhamente a missão do historiador a de mero subscritor do passado. Negando-lhe a ingerência reflexiva, está-se a estipular uma inaceitável limitação da atividade intelectual, além de ignorar o estado atual do pensamento epistemológico, a denotar a impossibilidade de que o historiador – como, de resto, qualquer cientista – possa vir a atingir uma objetividade absoluta na sua pesquisa. É impossivel a alheação completa do privilégio moderno da tomada de uma consciência histórica nas ciências humanas – isto é, a consciência de estar-se limitado inexoravelmente pela história. Como afirma Hans-Georg Gadamer (1999),
O aparecimento de uma tomada de consciência histórica constitui provavelmente a mais importante revolução pela qual passamos desde o início da época moderna. O seu alcance espiritual provavelmente ultrapassa aquele que reconhecemos nas aplicações das ciências das ciências da natureza, que tão visivelmente transformaram a face de nosso planeta. A consciência histórica que caracteriza o homem contemporâneo é um privilégio, talvez mesmo um fardo que jamais se impôs a nenhuma geração anterior.
Postas as palavras do filósofo alemão, parece-me crível considerar que, dentre os maiores intelectuais do século XX, ninguém carregou o fardo da tomada de consciência histórica tão corajosamente quanto o historiador britânico Eric Hobsbawm.

Historiando a própria história: o pensamento de Hobsbawm na era das eras e dos extremos

Filho de pai inglês e mãe austríaca, Hobsbawm nasceu em Alexandria, Egito, mas viveu quase toda sua vida na Europa do pré e do pós-Guerra. Viu de perto, em 1933, a ascensão de Adolf Hitler ao poder proporcionalmente ao ocaso da República de Weimar na Alemanha. Era filho de judeus, mas suas posições políticas eram mesmo de esquerda. Ainda cedo, aprofundou-se no estudo das obras do filósofo alemão Karl Marx. Em 1936, iniciou sua militância, filiando-se ao Partido Comunista inglês.  

Hobsbawm nunca escondeu a influência das suas convicções marxistas na composição de sua obra. Pois foi justamente esse desejo de estudar a história desde a perspectiva da classe trabalhadora que o impulsionou a escrever a sua conhecida trilogia sobre “o longo século XIX”: Era das Revoluções (1789-1848), Era do Capital (1848-1875) e Era dos Impérios (1875-1914), publicados, respectivamente, em 1962, 1975 e 1987. Nessas obras, já era possível notar a capacidade intelectual extraordinária que o tornaria insigne: clareza da escrita, aliada a uma profunda erudição, fizeram com que os “livros das eras” se tornassem referência obrigatória no estudo da História moderna.
Porém, foi com a publicação, em 1994, de “Era dos Extremos” que o historiador deixou o seleto circulo acadêmico, no qual já era respeitadíssimo, para tornar-se um escritor popular junto ao público leigo – algo raríssimo em se tratando de intelectuais.
Acredito que muito da popularidade experimentada por Hobsbawm deve-se não apenas à sua erudição enquanto pesquisador, mas também à franqueza dos propósitos que sempre animaram o historiador britânico. A esse respeito, já no prefácio de “A Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991” (1995, p. 7), escreveu:
Não é possível escrever a história do século XX como a de qualquer outra época, quando mais não fosse porque ninguém pode escrever sobre seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida apenas de fora, em segunda ou terceira mão, por intermédio de fontes da época ou obras de historiadores posteriores. Meu tempo de vida coincide com a maior parte da época de que trata este livro e durante a maior parte de meu tempo de vida – do início da adolescência até hoje – tenho tido consciência dos assuntos públicos, ou seja, acumulei opiniões e preconceitos sobre a época, mais como contemporâneo que como estudioso.

Vivendo intensamente a “era dos extremos”, tendo presenciado dois conflitos bélicos mundiais que arrasaram boa parte do continente europeu, Hobsbawm tinha um particular interesse em discutir a guerra. Mas não de qualquer maneira. Como historiador rigoroso que era, Hobsbawm propunha-se a questionar a natureza beligerante do século XX, como revelou em O novo século: entrevista a Antonio Polito (2009):
Considero mais relevante analisar a maneira pela qual a natureza geral da guerra e da paz mudou no final do século XX. A natureza geral da guerra é uma questão mais relevante do que suas razões específicas. (...) O que mais me interessa saber é: de que modo a guerra mudou? Tanto no sentido político como no tecnológico. Três questões me ocorrem, e tentarei responder a todas. Primeiro, ainda é possível haver uma guerra entre as grandes potências? A resposta é negativa, pelo menos enquanto os Estados unidos continuarem sendo a única superpotência.(...) Em segundo lugar, ainda é possível uma guerra nuclear? De um lado, a escassa probabilidade de uma guerra mundial torna também menos provável um conflito nuclear. No entanto, o emprego de armas nucleares em uma guerra é, na minha opinião, possível e nada improvável, pois a tecnologia vem ampliando sem cessar a disponibilidade dessas armas, permitindo que sejam produzidas e transportadas com mais facilidade. Portanto, a eliminação do risco de uma guerra mundial não exclui o risco de conflitos nos quais poderiam ser usadas armas nucleares. Terceiro, são ainda possíveis as guerras mais convencionais entre os Estados, tal como as que estamos acostumados? A resposta é que elas nunca cessaram, exceto naquelas áreas em que as duas grandes superpotências se defrontaram diretamente e, portanto, se empenharam ao máximo para evitar uma catástrofe nuclear. (...) Portanto, é grande a possibilidade de mais guerras.
Hobsbawm teve, ainda, o mérito de ser um pensador assumidamente marxista que, dada a qualidade de sua obra, conseguia ser lido para além dos preconceitos típicos das convicções mesquinhas – não raro utilizadas para desmerecer o pensamento de alguém menos por razões de crítica acadêmica que de picuinhas político-partidárias ou ranços ideológicos empedernecidos. Hobsbawm, assim, nunca abandonou o estudo do pensamento histórico-metodológico desenvolvido por Marx, mesmo após a derrocada do regime socialista soviético. Manteve-se fiel às suas convicções, sem negar, contudo, que também o pensamento marxista precisava submeter-se à crítica, até para proporcionar a atualização e a revalorização das ideias do filósofo alemão.  Isso fica claro em Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011 (2011):
Qual é a relevância de Marx no século XXI? O modelo de socialismo ao estilo soviético — até agora a única tentativa de construir uma economia socialista — não existe mais. Por outro lado, verificou-se um avanço imenso e acelerado da globalização e da pura e simples capacidade de geração de riqueza por parte dos seres humanos. Isso diminuiu o poder e o âmbito da ação econômica e social por parte dos Estados-nações e, portanto, das políticas clássicas dos movimentos social-democratas, que se baseavam primordialmente em pressionar os governos nacionais em favor de reformas. Em vista do predomínio do fundamentalismo de mercado, a combinação de globalização e riqueza gerou também uma extrema desigualdade econômica dentro dos países e entre regiões, e devolveu o elemento de catástrofe ao ritmo cíclico básico da economia capitalista, incluindo a desordem que se tornou a mais grave crise mundial desde a década de 1930.
(...)
Assim, como devemos ver Karl Marx hoje? Como um pensador para toda a humanidade e não somente para uma parte dela? Claro que sim. Como filósofo? Como analista econômico? Como um dos pais da moderna ciência social e guia para o entendimento da história humana? Sim, porém o ponto que Attali sublinhou corretamente é a abrangência universal de seu pensamento. Não se trata de um pensamento “interdisciplinar” no sentido convencional, mas integra todas as disciplinas. Como escreveu Attali, “antes dele, os filósofos consideraram o homem em sua totalidade, mas ele foi o primeiro a apreender o mundo como um todo que é, ao mesmo tempo, político, econômico, científico e filosófico".

O intelectual que levou a História ao extremo
 
A obra de Eric Hobsbawm não se resume apenas ao contributo significativo que seu brilhantismo acadêmico proporcionou ao estudo da História – especialmente dignificada com a sua quadrilogia das eras. O britânico era, acima e antes de tudo, um homem erudito. Suas preocupações, dessa forma, abrangiam um campo muito vasto de interesses, indo desde a música, com o seu História Social do Jazz (2011), onde abordou o significado histórico da arte musical enquanto movimento de resistência política, até preocupações de caráter filosófico-epistemológico, como nesta passagem em que reflete sobre o vezo da juventude em desprezar o passado e o papel do historiador diante disso: 
A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores. (HOBSBAWM, 1995, p. 13).
Eric Hobsbawm faleceu no dia 01 de outubro de 2012 aos 95 anos. Não resistiu a uma pneumonia. Mas a doença que o matou não apagará jamais a pujança de suas ideias. Tampouco se apagará a memória do intelectual engajado nas lutas do seu tempo, do historiador que, fundindo sua própria vida com a história que se propunha a narrar, especialmente na passagem do “longo século XIX” ao “breve século XX”, dava o testemunho inequívoco de que compreendia bem o significado filosófico, apontado por Hans-Georg Gadamer, da tomada de consciência histórica nas ciências humanas. Hobsbawm, ele próprio, foi como o século XX: intenso, combativo, prolífico. Descrevendo guerras, píncaros de conflitos e conceitos complexos da teoria marxista em uma linguagem acessível, Hobsbawm extremou a importância da História para a compreensão da trajetória humana, levando-a a todos os grupos de leitores. Não me parece exagerado, assim, chamá-lo de “o intelectual dos extremos”.
REFERÊNCIAS
DRAY, William H. Filosofia da História. Tradução de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. 159 p.
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon (Org.). Tradução Paulo César Duque Estrada. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. 71 p.
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. Tradução Donaldson M. Garschagen. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 424 p.
______. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 598 p.
______.O novo século: entrevista a Antonio Polito. Tradução Cláudio Marcondes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 176 p. (Companhia de Bolso).





 
 

terça-feira, 2 de outubro de 2012

DAR-SE POR MORTO, PARA NÃO MORRER: a condição humana desesperançada no limiar da morte em vida em "A Invenção de Morel" de Adolfo Bioy Casares


O romance de aventuras na literatura europeia: a influência de Wells sobre Bioy Casares

I have been here before,
But when or how I cannot tell:
I know the grass beyond the door,
The sweet keen smell,
The sighing sound, the lights around the shore..." 
Dante Gabriel Rossetti.

No final do século XIX, a Europa mergulhou literariamente no gênero dos romances de aventura. A tendência entre os escritores espalhou-se rápido, pari passu ao sucesso das obras do francês Jules Verne e o contexto histórico da expansão colonialista que animava os europeus a se lançarem em viagens transoceânicas. Foi nesse período que o escritor inglês H. G. Wells publicou o seu A ilha do dr. Moreau (1896), obra que descreve a viagem da personagem Prendick até a ilha onde o polêmico cientista que dá título ao livro desenvolve pesquisas e promove experimentos bizarros com animais.
O romance de Wells foi recebido com receio por parte da crítica epocal. Assim como o seu contemporâneo O coração das trevas (1889), de Joseph Conrad, célebre por narrar o choque civilizatório desumanizador vivenciado pelos negros ante a colonização branca, a narrativa de Wells também fora urdida com um tom pesado e macabro, que muitos interpretaram como uma sátira desrespeitosa aos valores da sociedade inglesa, especialmente a ideia do criacionismo religioso na relação Deus-criador e animal-criatura.
Entretanto, as críticas não impediram que A ilha do dr. Moreau viesse a se tornar uma das mais conhecidas obras de Wells e um dos clássicos universais da science-fiction, digna mesmo de servir de fonte inspiradora para as gerações seguintes de escritores.
Nesse sentido, pelo menos dois grandes nomes da Literatura do século XX embeberaram-se no romance de Wells. De um lado, no que tange ao protagonismo de animais na trama, encontramos resquícios de sua obra em A Revolução dos Bichos (1945), do também inglês George Orwell. De outro, quanto ao dilema humano do isolamento social em uma ilha, temos, já na literatura latino-americana, A invenção de Morel (1940), do argentino Adolfo Bioy Casares. É justamente sobre este último livro que me proponho a tratar.
 
A amizade de Bioy Casares com Borges: uma letra de crédito de confiança literária 


Na história da Literatura, é conhecida a amizade de Bioy Casares com Jorge Luis Borges – o escritor argentino que figura, à unanimidade, entre os maiores ficcionistas do século XX. Em colaboração, escreveram, por exemplo, as Crônicas de Bustos Domecq (1967) e Um modelo para a morte (1946). O próprio Borges, em apreciação crítica de A invenção de Morel, escreveu que “Discuti com o autor os pormenores da trama e a reli; não me parece uma imprecisão ou uma hipérbole qualificá-la de perfeita.” O tom efusivo adotado por Borges pode levantar suspeitas: seria a opinião imparcial do crítico literário? Ou a referência à “perfeição” da trama não passaria de um gesto de complacência amistosa?

Decerto, essas desconfianças acometem o leitor culto, que frequentemente se socorre da crítica, até para buscar alguma orientação especializada. De qualquer maneira, é o tipo de dúvida que só se tira lendo o livro – embora, como asseverava Otto Maria Carpeaux, ser amigo de Borges valia a Bioy Casares uma “letra de crédito de confiança literária”.
O fato é que A invenção de Morel impressiona menos pela amizade do autor com o gênio argentino do que por seus méritos literários próprios. E é isso que torna o romance digno de sucessivas apreciações e notas, garantindo-lhe a perentoriedade de sua posição nas listas das principais obras de ficção do século XX.         
 
Um solitário fugitivo apaixonado, vagando por pântanos deletérios de uma ilha condenada: primeira apreciação sobre o enredo 
 
O enredo gira em torno de um fugitivo da Justiça. Orientado por um comerciante de tapetes italiano, o homem, desejoso de empreender com sucesso sua fuga, dirige-se ao lugar onde ninguém iria procurá-lo. Este lugar é uma ilha solitária no Pacífico. Nela, estaria a salvo da perseguição das autoridades oficiais venezuelanas. Qual o motivo? A peste que consome todos os que habitam o terreno.     
De fato, a ilha para onde se dirige o prisioneiro já tivera sido habitada anteriormente. Houve mesmo construção de museu, capela e piscina. Mas nenhum navegador ousava aproximar-se, dado o risco de contágio pela moléstia misteriosa “que mata de fora para dentro”. “Caem as unhas, o cabelo, morrem a pele e as córneas dos olhos, e o corpo vive oito, quinze dias”, descreve Bioy Casares.
Premido pelas circunstâncias, tão horrível era sua vida, o fugitivo decide partir para a ilha. Lá chegando, embora a tivesse considerado aparentemente vazia, vem a descobrir a existência de outros habitantes. Não são selvagens, como haveria de se supor; parecem muito mais com turistas – “veranistas que habitam o museu”.
De madrugada, um gramofone me despertou. Não pude voltar ao museu para buscar as coisas. Fugi pelos barrancos. Estou nos baixios do sul, entre plantas aquáticas, indignado pelos mosquitos, com mar ou córregos imundos até a cintura, percebendo que antecipei absurdamente minha fuga. Acredito que aquela gente não veio me procurar; talvez não tenham me visto. Mas sigo meu destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais parco, menos habitável da ilha, a pântanos que o mar suprime uma vez por semana. (BIOY CASARES, 2008, p. 13).
A aparição desses veranistas dá-se de maneira inexplicável. Surgem, pois, “de uma hora para outra”, cobrindo os capinzais de “gente que dança, passeia e se banha na piscina”. Aterrorizado pela solidão nos baixios, temeroso de que pudesse se achar enfermiço de alucinações no cérebro, o fugitivo passa a observar os intrusos, enchendo a cabeça de dúvidas: por que se arriscam tanto, dançando ao redor de um gramofone sobre os capinzais das colinas ricas em cobras? Essa intrepidez é especialmente irritante ao narrador, que se vê encurralado em pântanos deletérios.     
A posição do narrador, eleita por Bioy, é necessariamente dúbia. O livro, escrito sob a forma de um diário, “para deixar testemunho do adverso milagre” de ser ilhéu de uma ilha deserta e condenada pela peste, é tomado por intermitentes notas de rodapé de um suposto editor cujo papel amiúde se cinge a duvidar do relato, como quando o fugitivo afirma que a ilha se chamaria Villings e pertenceria ao arquipélago das Ellice - afirmação ilidida incontinênti.         
Aliás, o fugitivo-narrador passa a adotar um tom cada vez mais pessimista, jamais ficando claro na obra, até pela parcialidade da narração em primeira pessoa, se a condenação que o levou a ilha fugido foi justa ou injusta.
Sinto com desagrado que estes papéis se transformam em testamento. Se devo me resignar a tanto, farei que minhas afirmações possam se comprovar, de modo que ninguém, por me suspeitar falsidade, julgue que minto ao dizer que fui condenado injustamente. (BIOY CASARES, 2008, p. 17).
A trama prossegue. No seu decurso, observa-se que o fugitivo explora as construções da ilha, alojando-se no museu. Já está cada vez mais próximo dos veranistas. Quem seriam eles, afinal?
A primeira descoberta de identidade, no entanto, não se dá pela perquirição investigativa de um ilhéu sobrevivente. Dá-se pelo amor. Na verdade, talvez fosse mais preciso falar-se em “paixão platônica”, que é o que o fugitivo termina por desenvolver pela mulher que, todas as tardes, as mãos juntas sobre os joelhos, observa o crepúsculo da ilha.
Na verdade, um dos momentos mais lindos do livro encontra-se no platonismo dessa estranha relação que se trava entre o fugitivo-observador, de um lado, e a mulher de feições espanholas, de outro. É fantástico notar a criatividade do escritor argentino em inserir num enredo de solitude assombrada, de ruídos solitários do mar, de inquietude daquele que se vê atormentado pelos passos misteriosos ante o medo do desconhecido, um elemento de sentimento amoroso. Mais do que isso, a maneira com que Bioy Casares urde essa relação nos limites do ciúme e do temor de ser capturado pelos “veranistas intrusos” é sublime. Há um sentimento que impulsiona o narrador a ter esperanças na ilha deserta, arriscando o sigilo de sua própria condição. Valeria a pena fazê-lo em prol de um sentimento nascente e fadado ao fracasso? Para a personagem principal do romance, sim.
Não espero nada. Isto não é terrível. Com esta conclusão, ganhei tranquilidade.
Mas essa mulher me deu uma esperança. Devo temer as esperanças.
Observa os entardeceres todas as tardes; eu, escondido, a estou observando. Ontem, hoje de novo, descobri que minhas noites e meus dias esperam essa hora. A mulher, com a sensualidade de cigana e o lenço colorido, grande demais, me parece ridícula. Contudo, sinto, um pouco talvez por pilhéria, que se pudesse ser visto um instante, interpelado por ela um instante, afluiria juntamente o socorro que o homem encontra nos amigos, nas namoradas e nos que estão em seu próprio sangue. (BIOY CASARES, 2008, p. 26).          

Graças a essa paixão platônica por Faustine, a personagem que protagoniza a história há de lançar-se cada vez mais próximo aos demais habitantes da ilha. Desejando conquistar o coração da mulher que contempla silente todas as tardes o arrebol, o fugitivo, quase um morto insone, lança-se aos galanteios do costume, porém é desprezado. Ocorre que esse desprezo é um desprezo incomum: nele não há uma negativa peremptória. A mulher apenas o ignora, como se o fugitivo não existisse. Seria a condição solitária indigna? Que mistério haveria para fazê-lo tão detestável aos olhos daquela mulher? Por que não lhe dizia sequer uma palavra? Ao menos uma recusa?
Estava para dizer que aí se manifestavam os perigos da criação, a dificuldade de possuir diversas consciências equilibradamente, simultaneamente. Mas de que serviria? Esses consolos são lânguidos. Tudo se perdeu: a vida com a mulher, a solidão passada. Sem refúgio, perduro neste monólogo que, a partir de agora, é injustificável. (BIOY CASARES, 2008, p. 42).         

E é assim que, avançando pelos corredores do museu onde se escondia, entre passos azafamados em fuga, o narrador sai do seu esconderijo e presencia como que uma reunião de grupo. Ali estavam reunidos os turistas, incluindo Faustine. Mas, sobretudo, tinha destaque um homem, que parecia ser o líder. Era Morel (nome claramente inspirado em Moreau, o cientista do romance de Wells). Ele reunira os seus, para dar-lhes conta da invenção que criara - e cujas consequências afigurar-se-iam terríveis para todos os habitantes da ilha, incluindo o próprio fugitivo...
 
O limiar da morte em vida e a condição humana de dar-se por morto, para não morrer: segunda apreciação sobre o enredo 

No plano da literatura de ficção científica, A invenção de Morel projeta uma realidade dentro do qual estão urdidas não apenas relações de ordem repressivo-policialescas (como a fuga da Justiça de um preso perpétuo), mas também a ideia de uma existência ilhada pela solidão, pela tristeza, pelo desespero. Como alguém poderia suportar a languidez de dias que se passam num purgatório tão terrível?
A esse respeito, Otto Maria Carpeaux (2008, p. 131) observou que
O romancista argentino constrói seus mundos irreais mas possíveis porque sem contradições internas (...), de modo que uma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. São mundos impossíveis dentro da nossa realidade, mas perfeitamente possíveis fora dela, porque em sua construção não entrou nenhuma contradição. São possíveis geometricamente, aritmeticamente, logicamente. Mas moralmente?   
Ao questionamento, levantado por Carpeaux, quanto à possibilidade moral do mundo imaginado por Bioy Casares, é preciso perguntar: de onde parte esse escrúpulo interrogante? A resposta não se pode dar de qualquer maneira, mas deve ser buscada, segundo entendo, nas primícias do romance. Aí compreendemos a generatriz filosófica da dúvida: que condição humana desventurosa faria alguém abandonar a vida em sociedade para isolar-se numa ilha?
A opção que se coloca ao protagonista vai de extremo a extremo. Condenado pela máquina judiciária, considerando-se injustiçado, que mal haveria na fuga, para salvar sua liberdade e, em sentido lato, sua existência? Qual o sentido de ser condenado a existir aprisionado perpetuamente sob o gradil das leis dos homens? Não se estaria a morrer lentamente? Não se estaria a definhar com langor sob os escombros dos edifícios da burocracia “que nunca falha” no seu mister de “aplicar a justiça”?
Bioy Casares suscita essas interrogantes com sua narrativa. E responde-as com uma dúvida ainda mais profunda: é preferível arriscar-se a morrer em uma ilha condenada pela doença, porém conservando a liberdade, ou ter a certeza de uma vida inteira pela frente, desde já morta por estar-se aprisionado? Não seria esse o limiar da morte em vida? 
No fundo, o fugitivo de Bioy Casares é um retrato da existência de cada um de nós. É uma peça literária ficcional, mas que bem designa o quão grande pode ser a covardia de condenar a si próprio a uma vida inteira aprisionada – seja a prisão física ou espiritual. Quantos não estão aprisionados em vida a uma existência desditosa, reféns de convenções, premidos pelo fastio de ser um humano condicionado pelas ordens e leis de outrem? Não seria melhor fugir para uma ilha deserta, desligar-se do mundo, conservando a liberdade, ainda que ciente dos perigos da moléstia fatal que espera os viajantes? Quem está disposto a pagar o preço desse risco?
No romance de Bioy Casares, o jogo da vida e da morte tem sua intersecção na liberdade. Não faz sentido viver aprisionado ao mundo, afogando-se num calabouço respiratório. É melhor fugir, arriscando-se a morrer, sozinho, como um ilhéu à deriva, a permanecer sob o jugo opressivo de um Estado que cassa a esperança da liberdade, impondo a reclusão vitalícia, verdadeira morte em vida.

Por isso, lemos num excerto do romance que “Os que decidem a condenação impõem tempos, defesas que nos aferram à liberdade, dementemente.” E é demente a opção daquele que prefere viver isolado em uma ilha, pesteada de moléstia letal, negando a segurança de uma prisão confortável à sua própria existência tardia e dispensável. É aí que se encontra o anelo de liberdade mais pungente de um ilhéu fugitivo: não esperar nada da vida, para não arriscá-la; dar-se por morto, para não morrer. Afinal, mesmo na solidão de uma ilha deserta e condenada, é impossível estar morto.
REFERÊNCIAS
BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. Trad. Samuel Titan Jr. 3º ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008. 136 p. (Coleção Prosa do Observatório).  
BORGES, Jorge Luis. Prefácio. In: ______.  

CARPEAUX, Otto Maria. O mundo de Morel. Pósfácio. In: ______.