domingo, 24 de junho de 2012

SILFRA: Hilary Hahn & Hauschka na crônica experimental "post-classical" da música erudita


Minha viagem de volta: bordejando o cais de uma vida feliz

A maior vantagem de se ter nascido numa família de migrantes (entenda-se: pessoas que migraram de um Estado para outro do País) é a liberdade que se tem, amiúde, em aproveitar o tempo de maneira aprazível ao teu estilo. Vivesse numa família típica, em um domingo ensolarado como o que faz hoje, e quiçá fosse forçado a reunir-me com uma parentela, sentado à borda da piscina, emulando a convivência familial. Já aí surgiriam dois problemas: o primeiro consiste na minha descrença nas reuniões de famílias, haja vista laços de sangue não aproximarem necessariamente o espírito; o segundo parte das minhas idiossincrasias, em razão de as minhas preferências culturais "excêntricas" raramente terem permitido, ao longo da vida, que eu tivesse capacidade de dialogar com alguém sem experimentar momentos de vergonha alheia.
Quando me afirmo “excêntrico“, faço-o em homenagem mais à opinião de terceiros do que à conclusão personalíssima que, acaso, estivesse a alcançar por livre e espontânea perscrutação. Desde a universidade, carrego o estigma da excentricidade. Primeiro por gostar de rock numa cidade em que quase ninguém aprecia o estilo; segundo por ter optado em estudar música erudita num instrumento tão vulgarizado quanto mal tocado (o violão); terceiro, por sempre ter considerado as pessoas bem mais interessantes pelo que têm a partilhar em termos conteudísticos do que pela fineza da passamanaria que vestem.
O que me encanta, ao fim e ao cabo, é a excelsitude; e excelsitude, para mim, é conhecimento, é inteligência.   
Creio, todavia, que a minha tão propalada excentricidade deve-se menos às minhas predileções do que à geografia que me circunda. Noutros lugares, pelos quais já passei em viagens, posto que não completamente à vontade, consolou-me o fato de encontrar outros com gostos semelhantes aos meus. Ao menos outrem ninguém se houve comigo a acusar-me de estrangeirado. Foram lugares nos quais, pela primeira vez, não me senti enfermiço; quando foi possível bordejar o cais de uma vida feliz.
Desde então, tenho preparado, silencioso, o meu retorno. Há um barco, que hei de navegar, remando numa viagem de (e sem) volta. Definitivamente, não me aclimei ao calor. Sinto muita falta dos longos dias frios...        

A melhor das famílias

Como as circunstâncias da minha biografia, sob o influxo da diáspora teodoriana, levaram-me a uma existência afastada do convívio familiar latino-americano típico, logo aprendi a ter uma nova família. Uma família que substituísse (e superasse) o conforto psicológico que os parentes distantes nunca haveriam de trazer-me. Optei pela melhor delas, então: a Literatura.
Olho para os lados e nunca me sinto sozinho: vejo as traduções de Bárbara Heliodora para o teatro completo de Shakespeare; os olhos aziagos de “Os Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, a espreitar-me; também as “Recordações do escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto, estão ao meu lado a recordar-me do Brasil paralelamente à fronte imponente de Machado de Assis que estampa a caixa com a edição completa de sua obra.
Pensando nesses termos, recordo o que já alhures se disse com sabedoria: “Quem lê nunca está só”. E acredito, piíssimo, nesse asserto.    
Ouso, no entanto, apontar sua manifesta incompletude. Falta-lhe um pedaço da sapiência com que se o edificou. Acuso: não só quem lê nunca está só, mas também quem ouve. A música é um bálsamo que não descura o seu ouvinte. E também a ela recorro em dias nos quais, meditabundo, opto pela solidão.   

Cultura erudita custa caro 

Optar pela solidão num domingo de sol é gesto de misantropia rebelde que só se justifica se a música for da mais alta estirpe. E é assim que me sinto, com o coração livre de todo o peso na consciência, ao ouvir Silfra (2012), de Hilary Hahn e Hauschka.
O álbum chegou faz pouco tempo para mim. Importei-o da Alemanha, país no qual foi gravado e lançado pelo respeitadíssimo selo “Deutsche Grammophon" ainda no mês de maio do corrente ano. Como se nota, demorou quase dois meses para vir às minhas mãos - além, é claro, de ter-me custado valor exorbitante por se cuidar de "produto importado".
Antes que o leitor me condene, é evidente que eu não poderia comprar um álbum desses nas lojas da cidade. Nenhum comerciante ajuizado o importaria (ele não venderia). Aliás, creio mesmo que, à exceção de São Paulo, fosse qualquer outra cidade do Brasil e eu teria sérias dificuldades em adquiri-lo. Não somente pelo fato de tratar-se de um álbum de música erudita, a afastar por si só quaisquer pretensões de vendagens significantes na indústria fonográfica, mas sobremodo pela direção experimental das composições.    

O duo "post-classical" de violino e piano


Após dois anos de colaboração musical entre a violinista estadunidense Hilary Hahn e o pianista alemão Volker Bertelmann (Hauschka), entre improvisos e experimentações, eis que esses dois grandes artistas presenteiam o mundo com Silfra (2012).
O  nome do álbum já revela a direção musical pretendida pelo duo: Silfra é uma fenda (ou fissura) localizada no lago Þingvallavatn, que fica no sul da Islândia. Trata-se de um lugar muito procurado por mergulhadores praticantes do chamado “scuba diving” – uma espécie de mergulho de longo período com cilindro. Mas é também lugar de beleza natural paradisíaca, cuja paisagem pitoresca - especialmente acentuada pela limpidez das águas, de um azul profundo, que trespassam a fissura no lago - remete à direção musical pretendida pelas composições: o campo harmônico é trabalhado de maneira a evocar sentimentos como o de alguém que se pusesse a respirar após longo período sob as águas. É como um sopro de ar no pulmão de um mergulhador solitário; ele desce ao fundo da fenda para encontra-se, sozinho, e descobrir-se, ao tornar à superfície, novamente (sozinho) no mundo.
  De fato, é verdadeiramente surpreendente o trabalho harmônico que Hahn e Hauschka atingiram nesse álbum. As composições seguem um formato atípico para os padrões tradicionais de duo violino-piano a que o ouvinte de música erudita habituou-se a ouvir.   

Um mergulho em si mesmo 


A primeira faixa (“Stillness”) funciona como que o prelúdio da direção musical do álbum, pondo-se a anunciar, pelo violino, o desvanecimento de um duo clássico nos moldes tradicionais. “Bounce Bounce” surge em seguida, então, e já revela todo o experimentalismo de timbres no violino de Hahn acompanhado pelo baixo bem demarcado do piano de Hauschka.
“Clock Winder” marca a batida do relógio em pouco mais de dois minutos, seguindo-se “Adash”, faixa em que se nota o compasso acelerar novamente.
Mas é em “Godot”, quinta faixa do álbum, que o duo atinge o auge da criatividade. Numa composição de mais de doze minutos, o ouvinte pode fechar os olhos e imergir no fundo das águas cristalinas do lago islandês. A sensação que se tem ao ouvir “Godot” é a de um mergulho profundo em si mesmo, nadando em direção ao fundo da alma em busca de respostas, cujas perguntas se desconhecesse, mas que ainda assim é preciso nadar e nadar e nadar atrás delas. Ou nada ou afoga-se. “Godot” desfaz o predicado de uma vida afogueada, lançando-nos o desafio – por certo ominoso aos olhares humanos estultos – de viver a vida com vagueza, deslizando pelas profundezas de infindos mares sossegados.
E é assim que o piano reaparece, com destaque, executando uma melodia tranquila, em “Krakow”. Na faixa seguinte, “North Atlantic”, temos a continuidade do sossego dos que mergulham na fenda do maior dos lagos naturais da Islândia, só interrompido pelo acento dado ao violino novamente em “Draw a Map”.  
Em “Ashes” há uma melodia triste a contrastar fortemente com “Sink” – a décima faixa do álbum. Em “Halo of Honey” o improviso torna a mergulhar em águas calmas, preparando a evocação final da hipnose solitária encontrável em “Rift” – a derradeira e misteriosa faixa do álbum.


Música para poucos ouvidos


Silfra é, enfim, um álbum de música erudita diferente. Não serei hipócrita perante os poucos leitores deste blog em afirmar que o comprei de maneira consciente. Não. Admito que não conhecia o trabalho do pianista alemão Hauschka, embora este tenha considerável discografia já lançada no mercado. Comprei Silfra por admirar a virtuose Hilary Hahn, violinista estadunidense que há tempos me encanta desde o seu álbum de estreia, “Hilary Hahn plays Bach”, de 1997. Hahn é daquelas mulheres únicas que, aliando elegância, sensibilidade e talento musical (verdadeiro), tornam-se irresistivelmente atraentes (nunca escondi minha paixão platônica por ela). Não é sem razão que, contando pouco mais de trinta anos, já goza do respeito da rigorosíssima crítica musical erudita.
Se o leitor deste blog puder, eu recomendaria adquirir Silfra. Mas advirto: não é um álbum “fácil” de se ouvir - como o são, por exemplo, aqueles que contêm peças da obra musical de cânones como Bach ou Mozart. É álbum de difícil oitiva, só apreciável por iniciados na música erudita, gente que há tempos já cultiva o hábito adorável de amar esse estilo.
A ressalva supra não é sem razão. Não quero sentir-me culpado na hipótese de o leitor vir a adquirir Silfra e surpreender-se negativamente. Como eu disse no início deste texto, sou um excêntrico. E Hahn e Hauschka formam um duo de pura excentricidade musical. Nada menos que excelente.