sábado, 20 de abril de 2013

O DETRITO-DELITO


 


As cidades brasileiras estão sujas. Há lixo espalhado por todos os lados. A sujeira é tanta que o popular conceito de "vala comum" já teve seu sentido modificado: não mais se trata de referência à mediocridade, mas sim de condição da vida urbana. A vala comum agora é a vala geral, democrática. A sujidade, enfim, é de todos.

O problema incomoda. A preservação do ambiente é o pretexto para o estardalhaço: cidade suja é cidade antiecológica. Mas o que incomoda de verdade é a chegada de turistas estrangeiros. Vamos ter Copa do Mundo, Olimpíadas. Definitivamente a sujeira precisa ser varrida para debaixo do tapete. Ninguém lá fora pode saber o quão sujos nós estamos. Porque, com a sujeira escondida, talvez ela já não pareça tão suja assim.

Mas a imundíce da cidade continua a incomodar. E, incomodando gente rica, incomoda os jornalistas que fazem os jornais. Logo o noticiário anuncia: o prefeito tem a solução! Vai multar quem joga lixo na rua. Na TV, o alcaide aparece e, sorridente, tranquiliza: a punição será proporcional ao detrito-delito.   

Então, dirijo-me ao trabalho. Vou a caminhar pelo passeio. Desvio de calçamentos petulantes, que insistem em saltar, como se tivessem na malcriadez um prazer sórdido, nem um pouco comprazente com os pobres dos desavisados, que, naquelas armadilhas citadinas involuntárias, têm a chance de ver sua perna quebrar. Em verdade, sou um soldado numa praça de guerra: um reles descuido e piso em uma mina. A explosão será a queda, captada pela câmera oportunista do celular do transeunte, que, sem absolutamente nada de útil a fazer na vida, dedica-se ao nobilíssimo ofício de eternizar o ridículo em imagens. Elas vão parar no Youtube, um upload onde milhares de internautas de vidas ainda mais inúteis deliciar-se-ão em ver que o calçamento malcriado derruba mais uma vítima.

Resignado, sigo caminhando. Não por coragem ou por qualquer outro sentimento digno. Caminho porque preciso. Faltar ao emprego é desconto no salário. E eu não perderei nem um centavo do meu sustento pela maldita de uma calçada esburacada.  

No caminho, vejo um catador - esquálido e depauperado, parcos cabelos brancos, o rosto queimado pelo sol. Eu o observo debruçar-se sobre um cesto na praça; diligente na sua magreza, ele vasculha o interior dum saco plástico, arqueando sua coluna com uma flexibilidade surpreendente para alguém da sua idade. Lembrou-me os pormenores do lixo. 

Em pouco tempo, lá vem o guarda municipal. Todo feliz, pegou o seu gadjet. Na tela sensível ao toque, digitou palavras que pareciam mágica sob o olhar estupefato do catador descamisado.  

- O senhor está sendo multado.

- Mas por quê?

- Por catar o lixo e deixá-lo cair no chão.

- Desde quando isso dá multa? 

- Desde quando o Prefeito disse na TV que ia multar gente porca que nem o senhor - respondeu o guarda, já elevando o tom para a rispidez de uma "autoridade". - O senhor é um desinformado ou o quê? Até parece que não vê televisão! Vai ver que é por isso que fica jogando lixo na rua. Não tem televisão, não tem educação. Agora é multa!

- Mas eu sempre catei lixo aqui. Vivo disso. Que vou fazer agora? - replicou o velho, exibindo dentes raros e pretos.

- Isso não é problema meu. Só faço meu trabalho. E meu trabalho é multar quem joga lixo no chão. Me passe o seu email.

- Como? O seu email. A multa é digital.

- Mas, seu guarda, eu nem sei que que é o tal do êmêiul...

Ao supor que o catador resistia à ação da autoridade, o guarda se aborrece: 

- Olha, já vi que, além de porco, o senhor é um turrão - disse ele ao catador, enquanto pegou caneta e um caderninho. Começou a anotar alguma coisa. Então continuou: - Tome aqui a sua multa. Vai em papel mesmo. E vou logo lhe dizendo: se não pagar, o Prefeito vai lhe botar preso!   

E o guarda, virando-se, retirou-se um tanto aborrecido com o catador. Mas logo viu dois moleques que o distraíram. Eram do tipo gazeteiros, com farda de colégio, que atravessavam a praça atirando ao chão o papel da cola, jovens fraudadores a desfazer-se da prova do delito. E lá se foi o guarda municipal atrás dos infratores. O gadjet na mão.   Enquanto isso, o velho catador prosseguiu na sua indigente labuta, a revirar os sacos, a buscar, na sujeira, seu ganha-pão.

Confesso que fiquei curioso em saber que fim levou a multa aplicada ao catador. No entanto, atrasado que estava para o trabalho, nem me detive tanto naquele pensamento.

Horas mais tarde, já voltando do expediente, caminho de novo pela praça. Um detalhe me prende a atenção: há vários papéis espalhados pelo passeio, como se um uma carreata de político tivesse estado ali, extemporânea, só para tornar ainda mais sujo o que sujo já estava.

Eis que ouço um trovão. Noto que a chuva típica da tarde aproxima-se. Com ela vem o vento, que passa e gruda sob os meus pés um dos papéis espalhados sobre a calçada. Curioso, agacho-me, pego a folha amarelecida e imunda. Então leio o slogan em letras garrafais que encima o seu título: "Prefeitura, multando quem jogar lixo no chão".   

domingo, 14 de abril de 2013

SUA MAJESTADE, O VIOLÃO: Dilermando Reis e a dignificação do violão brasileiro


Mandar parente a jato pro dentista,
Almoçar com tenista campeão,
Também poder ser um bom artista exclusivista 
Tomando com Dilermando umas aulinhas de violão.
Juca Chaves, "Presidente Bossa Nova" (1957).
PREFAÇÃO

O texto abaixo foi publicado originalmente, em 11 de abril de 2013, na Revista Bula de jornalismo cultural, publicação na qual fui recentemente admitido como colaborador (no que sou muitíssimo grato ao editor Carlos William Leite pelo convite). Quem quiser lê-lo na revista, basta acessar o link:
http://www.revistabula.com/275-sua-majestade-o-violao-dilermando-reis-e-a-dignificacao-do-violao-brasileiro/

 
Uma dúvida pueril

"Todo grande escritor é antes de tudo um grande leitor." Eis uma máxima corrente entre os estudiosos da literatura. Nos seus termos, implicitamente, assinala-se a importância do exercício da leitura, entendida como condição imprescindível para qualquer um que ambicione dedicar-se ao ofício de escrever. 

Essa afirmação, não obstante encerre uma das poucas verdades universais da vida (alguém consegue pensar em um escritor de talento que não tenha sido um leitor dedicado?), costuma ser ignorada pelos estudantes de música. De fato, nem sempre se enfatiza a contento a importância do ato de ouvir na formação do músico. Com isso, perde-se uma das características singulares da educação musical, que não se resume apenas ao aprendizado de um instrumento - visão limitada e equivocada -, mas abrange também o desenvolvimento de um juízo crítico, capaz de educar o ouvido. Dessa maneira, o estudo da música aperfeiçoa a audição, a permitir uma imersão consciente - e, portanto, mais profunda - no prazer maravilhoso que é articular os sons em um nível artístico.        

Ciente dessas premissas, que ora estou a defender, é que recordo com carinho da minha infância como ouvinte. Mesmo antes de iniciar-me no estudo formal da música, no aprendizado propriamente dito dum instrumento, credito minha musicalidade à influência positiva que recebi de meu pai. Lembro-me de vê-lo colocar alguns discos na vitrola, os quais produziam uma música estranha, que não tinha cantor. "Como pode haver música sem canto?", eis a dúvida pueril que me atormentava.

A paixão pela música instrumental


Naqueles idos, embora o infante Rafael não compreendesse, o que meu pai se punha a fazer era tão somente exercitar uma de suas maiores paixões: a ouvida da música instrumental. "Música sem cantor" era, assim, a manifestação conceptual de uma puerilidade, oriunda da percepção auditiva ingênua de um garoto que apenas começava a perceber que a beleza da expressão musical independe de uma letra. Em tais casos, o protagonismo é todo do som, ou melhor, da sua especial qualidade, do seu timbre.

Ainda que de maneira involuntária, ao ouvir seus discos de música instrumental, meu pai deu o pontapé inicial da minha educação como ouvinte. Seu toca-discos era diversificado: ia da música erudita à música sertaneja "de raiz" (aquela onde os músicos sabem tocar seus instrumentos de verdade, virtuosos populares da viola caipira), das guitarradas do Pará à flauta andina, da polca paraguaia à seresta brasileira e ao chorinho. No seu adorável exercício de oitiva, meu pai não se importava com classificações estéticas (ele mesmo não as dominava, pois não teve educação formal em música como eu). Seu ouvido não era treinado, era o de um leigo, que, apesar disso, sempre teve um bom gosto inato para rejeitar tudo quanto não fosse perfeitamente audível na sua instrumentalidade.    

Remontando-me ao passado, associo a esse período o começo do meu próprio interesse pela música instrumental. Tal constatação pode parecer algo despiciendo, mas não é: aos ouvidos dos demais garotos da minha idade, tudo o que meu pai ouvia era "música de velho". Natural, portanto, rejeitar aquele estilo de música, decerto nem um pouco popular, nunca ouvida nas rádios, nunca exibida em videoclipes na MTV. Mas a influência de meu pai impediu-me de cair no fosso da intolerância musical. Ainda que eu fosse fortemente influenciado pelo rock dos Estados Unidos da América, por mais que a música instrumental não gozasse de nenhum "apelo jovem", com meu pai aprendi a respeitar aquele modo peculiar de se fazer música - um respeito que os muitos anos que passei estudando em conservatório converteram no mais lídimo e apaixonado interesse. 

O homem que fez história com apenas um violão

O jovem Dilermando Reis.

Como não poderia deixar de ser, foi graças ao meu pai que tomei contato com a obra violonística de Dilermando Reis. O azo surgiu com a ouvida de um LP intitulado "O melhor de Dilermando Reis". Lançado em 1977, esse álbum homenageava a morte do violonista, ocorrida no início do mesmo ano. Nele se encontram várias das mais famosas gravações feitas pelo músico, onde se destacam algumas das preferências musicais que tanto marcaram sua carreira: o choro ("Odeon" e "Apanhei-te Cavaquinho", ambas de Ernesto Nazareth), as transcrições ("Lamentos" e "Carinhoso", ambas de Pixinguinha), além da sua conhecidíssima interpretação de "Sons de Carrilhões" - a obra-prima de João Pernambuco, até hoje uma das mais lindas composições da música brasileira.

Eu poderia vir aqui e enaltecer as qualidades do instrumentista Dilermando, um músico prolífico, que, desde 1941, quando gravou seu primeiro disco pela gravadora Colúmbia, não parou mais. Até 1977, data da sua morte, deixou 35 discos, no formato de 78 rpm, além de 25 LPs, todos pela gravadora Continental. Mas isso seria restringir em demasia, e injustamente, a trajetória de um dos maiores artistas que o Brasil já conheceu.     

Em verdade, aos olharmos a biografia do menino pobre, que saiu do interior de São Paulo (ele nasceu em 1916 em Guaratinguetá, numa família de inacreditáveis quinze filhos), para ganhar a vida na cidade grande com seu violão, já se estaria diante de um brasileiro admirável. Dilermando, ainda adolescente, foi acolhido como pupilo pelo violonista Levino da Conceição, que depois o abandonou subitamente, deixando-o numa pensão do Rio de Janeiro. Essa circunstância forçou o jovem Dilermando a trabalhar como professor de violão contratado das lojas de música da então capital federal. Foi o que ele fez, pelo menos até 1934, quando conseguiu se firmar como artista do rádio - o principal veículo de comunicação da época. Uma bonita história de superação, sem dúvida.

Mas Dilermando tem uma importância histórica para a música brasileira que transcende a sua biografia inspiradora. É como afirma o músico Paulinho Nogueira, em texto escrito para a contracapa do livro de partituras que Ivan Paschoito organizou a partir das transcrições que fez das peças interpretadas pelo violonista: "Dilermando Reis é um mito. Um homem que escreveu uma significativa parte da história da música popular brasileira apenas com um violão."

Derrubando preconceitos com seu violão


No Brasil da década de 1930, quando Dilermando Reis principiava sua carreira musical, a sociedade via com maus olhos o violonista. Diferentemente do piano, cultuado até hoje como símbolo de status entre as famílias mais ricas, o violão era um instrumento desprezado e desrespeitado pelas classes mais abastadas. Não raro, a figura do violonista era confundida com a do malandro - o desocupado a flertar com a vagabundagem. Um preconceito forte e insensato, que Dilermando experimentou na própria pele e, com sua carreira brilhante, ajudou a derrubar.   

Na sua trajetória artística, Dilermando Reis empenhou-se na realização do seu maior sonho: viver da música instrumental, a atuar na condição de solista com seu violão. Trabalhou, de forma incansável, para colocar o violonista na categoria de músico de respeito, retirando-lhe a má fama de vagabundo e desocupado. Nesse propósito, além da sua discografia fecunda, contou com a ajuda do rádio, veículo onde manteve o famoso programa "Sua Majestade, o Violão", sucesso epocal que durou de 1956 a 1969.

Como professor de música, Dilermando contribuiu enormemente para a formação de um repertório para o estudante de violão. Prova disso são as dezenas de obras que editou, muitas delas apresentando transcrições inéditas de composições originalmente pensadas para outros instrumentos.

Pode-se atribuir à Dilermando também o mérito de ter desenvolvido sua carreira de solista mediante um diálogo permanente entre o erudito e o popular, sem jamais descambar para a vulgaridade, oportunismo comum nesses casos. É o que se percebe na discografia de um artista que gravou composições de Ary Barroso, Pixinguinha e Américo Jacomino com a mesma qualidade técnica dedicada a transcrições de peças eruditas, como Clair de lune, de Claude Debussy (presente no álbum "Sua Majestade, o Violão", de 1957), Sonata ao Luar, de Ludwig van Beethoven (presente no álbum "Dilermando Reis", de 1971), e Estrellita, de Manuel María Ponce (presente no álbum "Volta ao mundo com Dilermando Reis", de 1959).

Mas a genialidade de Dilermando ia além. Ele também era um grande compositor. São exemplares, nesse sentido, composições como Magoado (1941), Tempo de criança (1949), Se Ela Perguntar (1958, em parceria com Jair Amorim), Uma Valsa e Dois Amores (1961). Todas elas podem ser consideradas peças obrigatórias na formação do violonista, verdadeiros clássicos do repertório característico do que se poderia chamar de violão brasileiro.       
  
Em defesa da memória de Dilermando Reis


Infelizmente, um artista da envergadura de Dilermando Reis, que tanto contribuiu para a música brasileira, parece hoje injustamente esquecido. Não falo do meio artístico, no qual há frequentemente homenagens à sua obra, vistas em sucessivas regravações (só para citar uma das minhas favoritas, temos o primoroso álbum "Relendo Dilermando", de 1994, onde Raphael Rabello, outro gênio do violão, interpreta clássicos do chorinho que ficaram eternizados pelas mãos de Dilermando). Falo é do público em geral, do grande público para o qual o Dilermando sempre se dedicou a levar a sua arte.     

Num passado nem tão distante, Dilermando Reis fazia sucesso no rádio com um programa dedicado ao violão. Hoje, iniciativas desse tipo parecem absolutamente inviáveis, haja vista o baixíssimo nível das músicas - tanto técnica quanto filosoficamente falando - que são empurradas goela abaixo do grande público brasileiro. No Brasil, onde o ouvinte está cada vez mais burro (tendência, por sinal, verificável em nível mundial), pondo-se a idolatrar "artistas" com uma sensibilidade musical menor que a de um sapo, a música instrumental, com o perdão do trocadilho, vai para o brejo.

Por isso quis escrever sobre Dilermando Reis. Em primeiro lugar, para provar a perenidade da sua arte: mesmo que as pessoas da minha geração (nascidas na década de 1980, que não completaram nem 30 anos) não saibam quem ele foi, ao menos eu estarei aqui, lançando mão do meu humilde talento com as palavras, para fazer jus à memória do grande violonista brasileiro. Em segundo lugar, para homenagear meu pai, que, mesmo em face de sua rustiqueza e limitada educação formal, típica do homem do campo nascido num rincão pobre do interior de São Paulo, soube, de maneira absolutamente autodidata, desenvolver um refinadíssimo gosto musical (muito mais apurado do que a quase totalidade das pessoas com quem já pude conviver, seja no tribunal, seja na academia, seja até mesmo no conservatório).  

Pessoas como o meu pai são a prova viva de que a música instrumental tem, sim, seus atrativos, que ainda pode emocionar muitos corações, proporcionando um prazer distinto, cujo gozo independe de classe social ou grau de instrução. É preciso, portanto, abrir espaço para os notáveis instrumentistas que o Brasil possui, democratizando as artes, levando às massas um tipo de música hoje restrita, quase que em sua totalidade, aos círculos mais elitizados da sociedade. É preciso mostrar ao povo que é possível fazer música, captando a atenção sonora do ouvinte, sem ter de apelar para o ultraje da erotização vulgar do corpo da mulher. É preciso demonstrar, de uma vez por todas, que  bundas de fora e corpos sarados não sustentam a falta de talento artístico, nem salvam a pobreza de um arranjo instrumental mal elaborado.

Enfim, após tudo o que escrevi, só me resta mesmo a conclusão de que a música instrumental brasileira é um dos bens mais preciosos da cultura deste País, e que Dilermando Reis é um dos seus mais autênticos representantes. Sua Majestade, o Violão; Sua Majestade, Dilermando Reis.  

REFERÊNCIAS

PACHOITO, Ivan. Great Arrangements of Dilermando Reis. São Paulo: Fermata do Brasil, 1996. 58 p. (Classical Guitar with Tabs).