domingo, 24 de fevereiro de 2013

A VELHICE É A PIOR DAS DOENÇAS: a inexorabilidade do tempo, a geografia de ausências e a solidão existencial de quem é abandonado para morrer em "Era uma vez em Tóquio" de Yasujiro Ozu

 

 
É estranho.
Nós temos nossos próprios filhos,
mas foi você que fez mais por nós,
e você nem mesmo é nossa parente.
Shukishi Hirayama, personagem de "Era uma vez em Tóquio" (1953),
do diretor Yasujiro Ozu.
 
O eu-soberano irresponsável e a decrepitude do corpo

Um dos principais problemas da humanidade é a sua incapacidade de observar a vida desde a perspectiva de outrem. O rico não se solidariza com o pobre, porque não é capaz de experienciar a privação existencial que advém da pobreza. O homem machista que subjuga a mulher não percebe o quão humilhante é ser subjugado. O mandante que contrata o assassino ignora as consequências dolorosas do homicídio para os familiares da vítima. O político corrupto que desvia o dinheiro da merenda escolar não atenta para a dor de uma criança com fome.   

Esses são apenas alguns retratos das muitas vezes em que as relações sociais apresentam-se conflituosas. São conflitos que se agravam à medida que mais se evidencia a inidoneidade dos seres humanos em projetar o eu-próprio na esfera de uma existência conjunta, co-partilhada - o eu que não pertence exclusivamente ao meu próprio eu, o eu que se estende ao outro. Não sou ingênuo e sei que há raízes plúrimas na conflituosidade social (a dicotomia de interesses que opõe pobres e ricos contém, por exemplo, um inegável componente econômico). Mas as observações que estou a frisar decorrem de um mergulho no eu desde uma ponto de vista predominantemente filosófico, metafísico até.      

Sendo assim, talvez o aspecto mais visível da identidade de um eu-soberano, que se considera irresponsável pelo outro, dê-se em relação à velhice. Na decrepitude do corpo, os ossos fragilizam-se, a energia falece, o ânimo desmaia. A beleza esvai-se como brisa noturna, e as rugas tomam o lugar do que outrora se considerou belo. O tempo passa não como um carro veloz, mas como uma bigorna pesada: ela deita sobre o peito altaneiro e o estrebucha, ano a ano, mês a mês, dia a dia. O sopro forte dos zéfiros joviais se enfraquece até que se torna um canto cada vez mais distante, como o apelo de um pássaro longínquo cujo viço da penugem vai esmaecendo conforme nos aproximamos. Agarramo-lo, então ele se transforma; não é mais uma ave rara e bonita; é um jumento arisco que reluta em carregar-nos; a queda do corcovo é a morte.    

Portanto, o ser humano precisa de ajuda ao envelhecer, porque é quando mais se fragiliza. Os antigos romanos, guerreiros adeptos do vigor, sabiam disso. Pessimistas, advertiam num conhecido adágio: a velhice é a pior das doenças. Recuperei-o propositalmente para encimar o meu escrito, pois ele escancara a realidade difícil que o discurso politicamente correto quer a todo custo esconder com expressões ora polidas ("terceira idade"), ora absolutamente patéticas ("melhor idade"). Nem se me acuse de ineditismo na observação das consequências ruins do envelhecimento e do emprego franco e direto da palavra velhice. A literatura é pródiga em afirmar o contrário. Já na Roma Antiga, por exemplo, o poeta Virgílio, na sua celebérrima epopeia Eneida, deu voz, no nono canto, ao queixume da mãe do jovem guerreiro Euríalo, desamparada ao ver seu filho morrer na guerra, tomada por uma dor materna eloquente:

Em que estado, oh Euríalo, te vejo?
És tu aquele da velhice minha
Tardo amparo? Deixar-me só pudeste,
Cruel? A  tantos riscos te mandaram
E à miseranda mãe não consentiram
Dizer-te o extremo adeus? Em terra ignota
Ah! jazes o pasto aos cães e aves Latinas,
Nem às tuas exéquias presidindo
Eu, tua mãe, te expus à porta, os olhos
Te cerrei, ou lavei tuas feridas,
Cobrindo-te co'a veste, que incessante
Noite e dia apressava e com tecê-la
Dos cuidados senis me distraía! (VIRGÍLIO, 2004, p. 292-293).

No século XIX, sobre o mesmo assunto, Machado de Assis escrevia com a conhecida tinta irônica da sua pena a respeito de Virgília, a paixão de juventude do protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881):  

Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso... Tinha então cinquenta e quatro anos, era uma ruína, uma imponente ruína. (ASSIS, 2004, p. 74). 

Mais adiante, o escritor brasileiro descreve a "ruína" Virgília pelos olhos de um Brás Cubas abnegado em seu leito de morte:

Vejo-a assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. havia já dois anos que não nos víamos, e eu via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos, porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa igualaria ali a simples saudade. (ASSIS, 2004, p. 74-76).

Portanto, não há nenhuma novidade - nem mesmo lexical - em empregar o termo velhice para referir-se ao "estado ou condição de velho". Exceto, é claro, pelo desafio ao discurso politicamente correto do "todos e todas", que quer, pateticamente, promover inclusão social pela obliteração do gênero de linguagem.  

Atravessando o umbral da decrepidez


Pôster japonês de Era uma vez em Tóquio (1953).
Mas, ao contrário do que possa supor um intérprete apressado, o meu texto não visa a fomentar discursos discriminatórios. Muito pelo contrário. É exatamente uma percepção realista dos efeitos cruéis do envelhecimento que legitima o tratamento privilegiado que se deve dar ao idoso. Há necessidade de que se proteja especialmente aqueles que, já caminhando a passos largos para o encontro fatal com a morte, tanta contribuição deram à sua comunidade.

Na verdade, creio seja possível afirmar que o grau de amadurecimento democrático de uma sociedade está diretamente relacionado ao grau de respeito que se confere aos mais velhos, isto é, pessoas das quais o tempo subtraiu a força da juventude, mas não a sabedoria, muito menos a dignidade. Por conseguinte, é preciso respeitá-los e valorizá-los como seres humanos merecedores de uma proteção especial, seja porque representam o ideal cíclico de uma solidariedade intergeracional, seja porque todos os seres humanos presumidamente hão de atravessar o umbral da decrepidez.   

Essas observações acerca do envelhecimento não são desapropositadas. Escrevi-as com a intenção manifesta de evidenciar o dilema existencial que atravessa aquele que se afasta da juventude, aproximando-se da morte. Não é comum alguém ter coragem de enfrentar o assunto. Falar de morte abertamente, como um processo necessário para a compreensão ontológica do ser, conduz ao terreno perigoso da metafísica, no qual é comum se confundir reflexão filosófica com morbideza barata, quando não condenar o pensador ao ostracismo da opinião. A situação é complexa. A maioria das pessoas recusa-se a pensar sobre um destino fatal como parte natural da vida. Além disso, há ainda o problema de descrever a relação do eu com a morte como parte do conhecimento de uma experiência, o que dificulta até mesmo a proposta de uma ética da alteridade, como bem observou o filósofo francês Emmanuel Lévinas em God, Death, and Time (2000, p. 19):

The same problems are posed when one speaks of death as my death. The relationship to my own dying does not have the meaning of knowledge or of experience, even if this had only the sense of a presentiment, of prescience.
(...)
My relationship with my death is a nonknowledge (non-savoir) on dying itself, a nonkonwledge that is nevertheless not an absence of relationship. Can we describe this relationship? [1]

A centralidade filosófica, no sentido de uma possibilidade ontológica, do ato de morrer encontra-se ainda na obra de Martin Heidegger. Em Ser e Tempo (1927), o filósofo alemão procurou articular a existência humana (o Dasein, i.e., o ser-aí) derredor da identificação do seu existir inautêntico (pura faticidade, generatriz da ruína da vida). É quando Heidegger nota que o eu individual do homem está a ser esmagado cotidianamente, subtraindo sua capacidade de transcedência, isto é, de atribuir um sentido ao próprio ser. O homem preso ao cotidiano de uma existência inautêntica é, assim, um ser que vive ao reboque das vicissitudes, que se deixa convencer por credos que não são seus, que se deixa manipular com facilidade pelos outros. É, enfim, um ser-para-a-morte.   
 
Die Herausstellung des alltäglichen durchschnittlichen Seins zum Tode orientiert sich an den früher gewonnenen Struckturen der Alltäglichkeit. Im sein zum Tode verhält sich das Dasein zu ihm selbst als einem ausgezeichneten Seinkönnen. Das Selbst der Alltäglichkeit aber ist das Man, das sich in der öffentlichen Ausgelegtheit konstituiert, die sich im Gerede ausspricht. Dieses muβ sonach offenbar machen, in welcher Weise das alltäglichen Dasein sein Sein zum Tode sich ausgelegt. Das Fundament der Auslegung bildet je ein Verstehen, das immer auch befindliches, das heiβt gestimmtes ist. Also muβ gefragt werden: wie hat das im Gerede des Man liegende befindliche Verstehen das Sein zum Tode erschlossen? Wie verhält sich das Man verstehend zu der eigensten, unbezüglichen und unüberholbaren Möglichkeit des Daseins? Welche Befindlichkeit erschlieβt dem Man die Überantwortung and den Tod und in welcher Weise?
Die Öffentlichkeit des alltäglichen Miteinnander "kennt" den Tod als ständig vorkommendes Begegnis, als "Todesfall". Dieser oder jener Nächste oder Fernerstehende "stirbt". Unbekannte "sterben" täglich und stündlich.  Der "Tod" begegnet als bekanntes innerweltlich vorkommendes Ereignis. Als soches bleibt er in der für das alltäglich Begegnende charakteristichen Unauffällichkeit. Das Man hat für dieses Ereignis auch schon eine Auslegung gesichert. Die ausgeprochene oder auch meist verhaltene"flüchtige" Rede darüber will sagen: man stirbt am Ende auch ein mal, aber zunächst bleibt man selbst unbetroffen. (HEIDEGGER, 2012, p. 694-696). [2]   

Por todos esses motivos, apesar de polêmico, o tema da morte e das consequências do envelhecimento definitivamente precisa ser pensado.

Yasujiro Ozu: o gênio do anticinema

O diretor japonês Yasujiro Ozu (1903-1963),
um dos maiores gênios do cinema de todos os tempos.

É nesse contexto que se apresenta o filme Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari, Japão, 1953). Trata-se da obra mais conhecida do diretor japonês Yasujiro Ozu - indiscutivelmente um dos maiores cineastas do século XX. No enredo, o espectador acompanha a saga do casal Shukishi Hirayama (Chishû Ryû) e Tomi Hirayama (Chieko Higashiyama). Eles são idosos e moram numa vila rural no interior do Japão com a sua filha caçula Kyoko (Kyoko Kagawa). Decidem, então, visitar os outros filhos, adultos e independentes, na capital Tóquio.  

Com esse enredo simples, Ozu mostra o seu desapreço pelos filmes hollywoodianos grandiloquentes. Não há exageros na narrativa de Era uma vez em Tóquio. Toda a trama há de fluir como flui a vida, constante, meticulosa, detalhista. Por isso, a primeira impressão que se tem ao assistir ao filme é a de lentidão. É possível mesmo que se trate do filme mais lento da história: de tão acentuada, ela chega a ser incômoda - decerto irritante ao público acostumado à lógica do blockbuster-videoclipe-de-final-de-semana produzido em Hollywood. As cenas passam, assim, muito devagar. A câmera está quase sempre em um ângulo baixo, imóvel, a capturar uma imagem parada como um retrato, como se aquele que assiste ao filme fosse parte de um desenho demorado. Os enquadramentos não são muitos, e a direção dos atores visivelmente não exige que eles externem emoções de uma maneira acentuada, enérgica. A percepção é de um aprofundamento absoluto na narrativa cinematográfica, uma circunstância tão rara de se encontrar hoje em dia que me arrisco a dizer que boa parte do público nunca experimentou. São características como essas que levaram Kiju Yoshida (2003) a afirmar que Ozu emprega uma espécie de técnica de anticinema, no sentido de que desconstrói o modelo narrativo típico do cinema dos Estados Unidos da América, com suas histórias grandiosas, interpretações exageradas, por vezes até caricaturescas, direcionadas à manipulação de emoções da audiência.  

Em Era uma vez em Tóquio, proporcionalmente à vagarosidade das cenas, os diálogos são pausados e sucintos. Há uma notória despreocupação do diretor em emular climas de tensão dialogal para "prender" a atenção do público - ou mesmo explicar ponto a ponto o que acontece na tela. Para Ozu, importante não é o suspense do que está por vir, mas sim o que está acontecendo. Ou melhor: o que já aconteceu. Suas personagens são ineptas em compreender o presente, que só adquire significância quando convertido em um passado resignante, do qual a ninguém é dado escapar.

Viagem a Tóquio: a história da geografia de ausências de um melodrama familiar japonês

O casal Shukishi Hirayama e Tomi Hirayama, interpretados magnificamente por Chishu Ryu e Chieko Higashiyama, em cena de Era uma vez em Tóquio (1953).

A viagem à Tóquio é o mote de um drama familiar que se descostura na tela conforme se nota o impacto causado pela chegada do casal Hirayama. De início, os velhos se hospedam na casa do primogênito Koichi (So Yamamura), que é médico e tem dois filhos com a esposa Fumiko (Kuniko Miyake). Ozu mostra, então, o desconforto causado na família: o filho mais velho de Koichi irrita-se por ter de ceder seu espaço aos avós. O próprio Koichi, sempre muito ocupado, quase não para em casa. E, quando chamado à presença de um paciente, prioriza o trabalho, em detrimento ao compromisso de fazer um passeio pela cidade de Tóquio com os pais.

A filha mais velha do casal é Shige (Haruko Sugimura). Ela administra um salão de beleza, onde também vive com o marido. Quando convocada a dar atenção aos pais por Koichi, alega igualmente estar muito ocupada com seu trabalho. Não pode levá-los ao passeio por Tóquio.        

Os dias se sucedem lisamente. Shukishi e Tomi, que haviam vindo do interior para usufruir a convivência com os filhos e conhecer a capital japonesa, não conseguiram nem um nem outro: Koichi e Shige nunca têm tempo para estar com eles; na rotina da metrópole, há sempre algo mais importante do que os pais - sutilmente transmudados em um casal de velhos indesejado, um verdadeiro estorvo. A única pessoa que lhes dá atenção é Noriko (Setsuko Hara), viúva do filho do meio do casal Hirayama, que morreu durante a Segunda Guerra Mundial. Após o episódio trágico, a nora nunca mais se casou.     

A importância de Noriko na trama é fundamental: ela é quem conduz o casal Hirayama para um passeio pela cidade de Tóquio. Mas não se pense que se cuida de uma desocupada. Noriko tem seu emprego, trabalha como secretária de uma pequena repartição. É, portanto, uma pessoa tão atarefada quanto Shige e Koichi. Mas, à diferença destes, ela se esforça para dedicar seu tempo aos sogros. Dedica-lhes mesmo uma atenção afetuosa, um sentimento sincero, que se supõe haver tão somente na filiação.

Kiju Yoshida descreve muito bem esses elementos dramáticos que, com muita delicadeza, vão se acentuando paulatinamente em Era uma vez em Tóquio:

Tanto o filho mais velho, que é médico, como a filha mais velha, que trabalha num sa~lão de beleza, cumprem a rotina de trabalho da mesma maneira, dia após dia. Achando inconveniente a visita do casal de velhos, eles os colocam num ônibus turístico, em vez de mostrar-lhes pessoalmente a grande cidade. E aquilo que os dois velhos veem da janela do ônibus são os pontos turísticos mais famosos, como o parque defronte ao Palácio Imperial, os arranha-céus de Marunouchi, a estação ferroviária de Tóquio. Tendo visto todos esses lugares, nada mais é mostrado da cidade.
Apenas a esposa do segundo filho, morto na guerra, acompanha o casal de velhos no ônibus turístico. A nora, que não passa de uma estranha e, ainda por cima, perdeu o marido - apenas ela, que não tem nenhum tipo de obrigação para com eles -, zela pelo casal de velhos e lhes mostra a cidade. (YOSHIDA, 2003, p. 25). 

Assim, Ozu mostra que a suposição de afeto na consanguinidade é falaciosa. Não há amor na biologia. O sentimento que se busca está além de graus de parentescos. Noriko, mesmo não sendo filha, mesmo não sendo "parente de sangue", é a única pessoa verdadeiramente interessada em bem receber os idosos na capital. Interessa-se pela companhia deles, leva-os a um passeio, mesmo que à custa de prejuízos eventuais na sua rotina de trabalho. Noriko é fida como uma filha legítima. Já os filhos biológicos não veem a chegada de seus pais com bons olhos. É lógico que os receberam, acataram a ideia da viagem. Mas, com sinceridade, não desejavam que estivessem ali. Tudo é importante, tudo reclama tempo e atenção. Só quem não recebe a atenção devida são os pais, aqueles mesmos que no passado, quando jovens, dedicaram suas vidas a cuidar destes filhos, ora tão ocupados em seus afazeres, obnubilados pela cegueira da grande metrópole.

Há uma cena particularmente importante nesse prisma. Ela ocorre quando Koichi e Shige, sentindo-se culpados pelo fato de que seus pais quase nada aproveitaram da cidade, decidem enviá-los para "aproveitar o feriado" no conhecido balneário de Atami. No hotel para onde os velhos são "despachados" como uma bagagem difícil de carregar, veem gente jovem a comer, a beber, a dançar. Não era lugar para eles. Quando viajaram a Tóquio não estavam em busca de "agitação"; queriam era placidez, era tranquilidade; queriam era aproveitar o tempo na presença dos filhos e dos netos. Queriam um pouco de amor. Cansados, decidem voltar antes do combinado para casa. O retorno antecipado irrita ainda mais os filhos, que tinham feito planos contando com a ausência dos pais.    

Em passagens como essa, Ozu, com uma sutileza absolutamente genial, aprofunda o abismo entre as gerações. Da vida rural apegada à família, somos conduzidos ao Japão da sua metrópole - um lugar de vazio e impessoalidade. Todos estão sempre mui ocupados, mui atarefados. Todos estão preocupados com suas carreiras, com suas vidas particulares, com seus projetos ambiciosos. Já ninguém tem tempo para os pais.  

No filme, esse descaso, gerador de uma crescente e cruel solidão, está a todo momento imbricado com os planos de câmera que asseguram uma visão limitada de Tóquio. Yoshida percebeu muito bem esse aspecto, associando-o ao efeito da película monocromática empregada pelo diretor japonês, na cena em que o casal Shukishi e Tomi passeiam sozinhos pela cidade:

Certamente, a Tóquio observada agora pelos dois velhos que trocam palavras em meio a suspiros já é diferente daquela de antes, a da cobertura do prédio de loja de departamentos. Dessa vez, a cidade não é mostrada. A câmera, que se movimenta para acompanhar o casal de velhos, atravessa o viaduto e revela apenas suas figuras em pé. Aquilo que poderíamos pensar ser a grande metrópole de Tóquio não passa dos sons de um trem que corre pela estação Ueno. Não há mais nada para mostrar.
E, por causa do forte contraste da película monocromática, apenas o céu brilha, fulgurante, estendendo-se como pano de fundo para os dois velhos. A cidade de Tóquio, que com certeza os dois contemplam, não é vista em lugar nenhum - logo, Tóquio embora presente no "vazio do nada", não passa de uma geografia de ausências, impossível de precisar.
Em vez de ser representada, a capital é radicalmente abreviada. Afinal, sua eliminação quase completa é um método muito mais eficaz de expressar a verdade - assim era o estilo irônico e bem-humorado típico de Ozu, que representava com total confiança e impressionante domínio todos os elementos do filme; o que prova, também, que ele não acreditava no mito corrente de que o cinema é uma mídia que transmite significados inquestionáveis. (YOSHIDA, 2003, p. 27-28).   


Se, quando da chegada do casal de velhos à capital, o diretor lança mão de planos amplos, com tomadas vastas de Tóquio, desde o passeio de Shukishi e Tomi com Noriko pela cidade, a visão do público se reduz, porque é reduzida e redutora a visão que o casal Hirayama tem da janela de um ônibus turístico. Dessa maneira, Ozu aprofunda cada vez mais o sentimento de solidão dos velhos que, simultaneamente, sentem-se pequenos  - ante a amplidão anônima da cidade grande, muito diferente da vila rural - e indesejados - ante o embaraço que sua presença em Tóquio causa na cotidianidade da vida dos filhos.   

O amor pelos pais em segundo plano


Cena de uma reunião da família Hirayama em Era uma vez em Tóquio (1953).
Há, de maneira insofismável, um forte componente melodramático no filme. Ao opor gerações, Ozu expõe o esqueleto de uma sociedade japonesa capitalista no pós-II Guerra Mundial. Retrata-se o esplendor de uma frieza citadina crescente, para a qual as relações humanas estão em um plano secundário. Há o primado do trabalho, porque há o primado do dinheiro. Mas, acima de tudo, há o desprezo pela ascendência, pelos mais velhos, pelos próprios pais - vistos agora como símbolos do estorvamento de um cotidiano mecânico e maquinal. Na frialdade da Tóquio de Yasujiro Ozu, as famílias são reles peças de uma engrenagem maior, que não cessa nunca de trabalhar. Tais constatações, muito graves para a sociedade japonesa, decerto estão a valer para o resto do mundo, dada a linguagem universal da geografia de ausências das grandes metrópoles, esvaziadas de uma perspectiva humana conjunta, perdidas em meio a existências inautênticas, atabalhoadas pela rotina impessoal de uma dominância invisível e, portanto, inexpugnável.

O problema é que o conflito chega ao fim. E o fim do tempo de uma vida é contado no relógio da morte. O ponteiro pode até girar devagar, mas o que importa é que ele sempre gira. A passagem do tempo é inexorável. E a inexorabilidade do tempo é a morte.

Pois é a morte de Tomi, em dado momento da narrativa, que desencadeia a face mais cruel desse desprezo aos mais velhos (em última medida, ao componente humano da própria existência). Ao saberem que sua mãe encontra-se em péssimo estado de saúde, Koichi e Shige retornam para a casa dos pais na cidade de Onomichi. Lá, encontram Tomi já em vias de passamento. Os filhos experimentam o momento de dor, do sofrimento em família, mas nem por isso se descolam do seu cotidiano em Tóquio. Estão afobados, querem retornar, têm seus empregos, delongar mais que o necessário em Onomichi é perder dinheiro em Tóquio. A pressa com que desejam desincumbir-se do funeral e da burocracia da herança só irrita a caçula Kyoko, que, por residir no interior com os pais, sente viva a indiferença familial que as ações açodadas dos irmãos urbanos conotam.

Novamente, Ozu realça o esforço de Noriko. Ao saber que Tomi estava nos estertores da morte, viajara imediatamente para o interior, desvencilhando-se do trabalho. É ela também a única que se dispõe, na família, a permanecer um pouco mais de tempo em Onomichi. Enquanto os outros se preocupam em lidar o mais rapidamente possível como esse "problema" do funeral e da herança, Noriko sofre sinceramente pela perda de ente querido, uma amável conselheira, uma "mãe". Nesse sentido, Noriko, mesmo não sendo originalmente da família, era muito mais filha de Tomi que os demais residentes em Tóquio. 

Era uma vez em Tóquio: o injusto esquecimento de  uma obra-prima no Brasil

Setsuko Hara, que interpreta Noriko Hirayama em Era uma vez em Tóquio
e trabalhou na Trilogia de Noriko com Yasujiro Ozu.
Setsuko não é apenas uma das maiores atrizes de toda a história do Japão.
Ela é também uma das maiores atrizes da história do cinema,
como comprova sua interpretação absolutamente tocante
de Noriko Hirayama em Era uma vez em Tóquio (1953).   

Em Era uma vez em Tóquio, o drama familiar é conduzido com uma sutileza ímpar. A mão do diretor torna o melodrama não somente aceitável, verosímil, real, mas o aprofunda em um nível de reflexão como poucas vezes se viu na história do cinema. Nada do que o espectador extrai do que é apresentado na tela decorre de alusões explícitas. As câmeras não procuram em nenhum momento disfarçar enigmas. Tudo o que Yasujiro Ozu faz é construir sua narrativa fílmica com a cadência de um compasso lento, pausado e profundamente delicado. E que mais impressiona é justamente isto: o realçe verosimílimo que se dá aos desdobramentos humanos de um drama singelo entre pais e filhos. Para Ozu, não importa a manipulação do público, tanto que quase todo o filme não tem trilha sonora - um dos elementos mais eficientes de técnica cinematográfica para suscitar emoções. No cinema de Ozu, a arte cinematográfica encontra-se implícita nos gestos subtis das personagens, naquilo que se infere dos olhares, dos abraços, do choro sincero de uma dor eloquente.

Elementos estéticos como esses tornam Era uma vez em Tóquio, do ponto de vista artístico, um dos filmes mais importantes de todos os tempos. Impressiona a intemporalidade do melodrama da família japonesa. Os pais, ao se deslocarem ao encontro dos filhos em Tóquio, percebem que foram abandonados à espera da morte. Já não têm relevância. São apenas um fardo a carregar-se por ordem das conveniências familiares, um fardo tão pesado quanto é o peso da idade, que desfigura a beleza e rói até o último fio de cabelo colorido no toucado. Impressiona mais ainda a técnica de um cineasta como Yasujiro Ozu, que, com sua habilidade única, prova que o cinema, enquanto proposta de arte, pode oferecer uma visão bem peculiarizada da narração de uma trama, aproximando-se de uma linguagem própria em um grau excepcional, perfeitamente distinguível de outras manifestações artísticas - tal como a narrativa literária.

Por todos esses motivos, é lamentável que tão poucas pessoas tenham assistido ao filme Era uma vez em Tóquio no Brasil. Em parte, isso se deve aos distribuidores, notadamente desinteressados em diretores tão pouco comerciais quanto Yasujiro Ozu (a minha cópia de Tokyo Story em blu-ray veio direto dos Estados Unidos, o que inclusive me obrigou a assisti-lo em inglês, circunstâncias que só agravam o quadro de inacessibilidade da obra do cineasta japonês). Mas a oferta inexiste porque a demanda é escassa: quase ninguém - dos muitos pretensos e autodenominados "cinéfilos" que eu conheci - viu o filme. Aliás, quem se considera cinéfilo deveria se envergonhar de dizê-lo publicamente sem conhecer o cinema que é feito no Japão e, em particular, a obra de Yasujiro Ozu.    

Um tratado cinematográfico sobre o envelhecimento

Noriko e Shukishi em Onomichi - uma das cenas mais lindas da história do cinema mundial. 

Não tenho dúvidas, entretanto, de que o espectador que se dispuser a conhecer um tipo incomum de cinema, quase inexistente hoje, para o qual importa mais a condução minudente do roteiro que a desfaçatez da mediocridade que se esconde sob a capa de efeitos especiais milionários, Era uma vez em Tóquio afigurar-se-á um filme deslumbrante, um melodrama familiar pungente, onde a dor reside no silêncio, no que não foi dito, onde a morte é uma sombra que anda de mãos dadas com a solidão de quem espera o seu final e percebe-se tristemente abandonado por aqueles que mais amou.

Interpretado com base nessas premissas, parece-me forçoso reconhecer que Era uma vez em Tóquio não é apenas uma "obra-prima do cinema". Trata-se, em verdade, de um legítimo tratado cinematográfico sobre as consequências cruéis do envelhecimento, sobre a inexorabilidade da passagem do tempo e sobre como a presença física dos seres humanos podem desvelar um abandono sentimental que se esconde, fingido e hipócrita, sob a capa da tradição familiar.

Com seu filme, talvez Ozu tenha querido provar que, em sentido contrário ao que supunham os antigos romanos, a velhice não é, por si só, uma doença. Mas que a doença está no vazio de uma existência inautêntica, só perceptível quando capturada pela câmera de um diretor que enfatiza a lentidão no contexto da vida urbana capitalista, prenhe de uma pretendida "agitação". Em Era uma vez em Tóquio o tempo não está parado, ele apenas corre vagarosamente, de modo a completar, assim, um ciclo existencial ininterrupto. Porque as gerações se sucedem umas as outras, e porque todos vamos morrer um dia, o efêmero da vida precisa adquirir uma dimensão de sentido que só o próprio homem é capaz de dar, percebendo-se a si mesmo e, em consequência, percebendo o outro. Na geografia de ausências da Tóquio de Yasujiro Ozu, onde o tempo corre lento, porém inexorável, o sinal mais visível de que o fim aproxima-se não são os cabelos esbranquiçados ou a tez rugosa, mas sim o desprezo dos mais novos pelos mais velhos, ora abandonados à própria sorte, ou, melhor dizendo, abandonados à espera  - cruelmente solitária - da própria morte.

Notas:

[1] Traduzo: "Os mesmos problemas colocam-se quando se fala da morte como a minha morte. A relação com a minha própria morte não tem o sentido de conhecimento ou de experiência, mesmo se isso tinha apenas o sentido de um pressentimento, de uma presciência. (...) Minha relação com a minha morte é a de um não conhecimento da morte em si mesma, um não conhecimento que não é, todavia, uma ausência de de relação. Podemos descrever essa relação?  

[2] A tradução é de Fausto Castilho:
"A exposição do ser para a morte cotidiano-e-mediano se orienta pelas estruturas da cotidianidade obtidas anteriormente. No ser para a morte, o Dasein se comporta em relação a si mesmo como um assinalado poder-ser. Mas o si-mesmo da cotidianidade é a-gente, o qual é constituído no ser-publicamente-interpretado que se expressa no falatório. Por conseguinte, no falatório é que deve se tornar manifesto o modo como o Dasein cotidiano interpreta seu ser para a morte. O fundamento da interpretação forma cada vez um entendimento que é sempre também um encontrar-se, isto é, um estado-de-ânimo afetivo. De onde a pergunta: como o entender que se-encontra no falatório de a-gente mantém aberto o ser-para-a-morte? Como a-gente se comporta, entendendo, em relação à possibilidade mais-própria, irremetente e insuperável do Dasein? Qual encontrar-se abre para a-gente o estar entregue à morte e de que modo?
A publicidade do cotidiano ser-um-com-o-outro 'conhece' a morte como algo que sobrevém constantemente vindo-de-encontro como 'caso de morte'. Este ou aquele que está perto ou está longe 'morre'. Desconhecidos 'morrem' diariamente e a toda hora. A 'morte' vem-de-encontro como conhecido acontecimento que ocorre no-interior-do-mundo. Como tal, ela permanece na não-surpresa característica do-que-vem-de-encontro cotidiano. A-gente já tem também assegurada uma interpretação para esse acontecimento. O que é dito expressamente a respeito ou no mais das vezes contido em alusões 'fugazes' reduz-se a dizer que no final a-gente também morre uma vez, mas a-gente mesma não é de imediato atingida."     
REFERÊNCIAS
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Apresentação e notas Antônio Medina Rodrigues; ilustrações Dirceu Marins. 4ª ed. São Paulo: Ateliê, 2004. 305 p. (Coleção Clássicos Ateliê).

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Edição bilíngue alemão-português. Tradução, organização, nota prévia, anexos e notas de Fausto Castilho. Campinas, SP: Unicamp; Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. 1199 p. (Coleção Multilíngues de Filosofia da Unicamp - Heideggeriana I).

LÉVINAS, Emmanuel. God, death, and time. Translated by Bettina Bergo. California: Stanford University Press, 2000. 320 p.

VIRGÍLIO, 70-19. Eneida. Tradução por José Victorino Barreto Feio e José Maria da Costa e Silva (livros IX-XII); edição organizada por Paulo Sérgio de Vasconcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 443 p. (Coleção biblioteca Martins Fontes).

YOSHIDA, Kiju. O anticinema de Yasujiro Ozu. Tradução Centro de Estudos Japoneses da USP: Madalena Hashimoto Cordaro (coord.), Lica Hashimoto, Junko Ota, Luiza Nana Yoshida. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. 312 p. (Coleção mostra internacional de cinema).

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A LAVOURA NÃO É ARCAICA, É SILENCIOSA: o exemplo de desprendimento e liberdade de Raduan Nassar

O escritor e agricultor Raduan Nassar em foto tirada em 2012.

(...) fui confessando e recolhendo nas palavras
o licor inútil que eu filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas,
traçando num quadro de silêncio a simetria dos canteiros,
a sinuosidade dos caminhos de pedra no meio da relva,
fincando as estacas de eucalipto dos viveiros,
abrindo com mãos cavas a boca das olarias,
erguendo em prumo as paredes úmidas das esterqueiras,
e nesse silêncio esquadrinhando em harmonia,
cheirando a vinho, cheirando a estrume,
compor aí o tempo, pacientemente.
Raduan Nassar, "Lavoura arcaica".

O enigma do escritor que abandonou a literatura

Há algum tempo atrás uma notícia chamou-me a atenção. Ela dava conta de que o escritor brasileiro Raduan Nassar doara sua fazenda, situada entre os municípios de Buri e Campina do Monte Alegre, no Estado de São Paulo, para a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). O detalhe é que a fazenda, segundo alguns especialistas em imóveis rurais, em condições normais de venda no mercado, poderia ser arrematada por até vinte milhões de reais. Isto mesmo: vinte milhões! O seu proprietário, no entanto, não exigiu um centavo sequer: doou-a de bom grado a uma instituição de ensino. E doação, até por definição jurídica, significa negócio jurídico gratuito.
  
A atitude de Raduan Nassar pareceu mais um ato enigmático na biografia de um escritor marcado por decisões aparentemente inexplicáveis. Como encontrar, por exemplo, uma razão que justifique um autor, no auge do sucesso, abandonar, sem maiores explicações, a literatura? Pois foi exatamente o que Raduan fez após lançar as novelas Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978) - ambas recebidas com entusiasmo pela crítica. De chofre, sem mais nem menos, no começo da década de 1980, ele simplesmente decidiu parar de escrever. E parou.  

A decisão do escritor brasileiro era tão absurdamente incompreensível que houve mesmo quem supusesse tratar-se de uma bravata. Ela voltaria em pouco tempo, ânimo renovado, rancor arrefecido. Seu retorno seria triunfal.

Mas Raduan Nassar não voltou. Parou de escrever. Parou de publicar. Para desespero dos cultores da boa literatura, ele havia largado definitivamente o ofício de escritor. Queria mesmo era se dedicar à agricultura.

Por isso, paralelamente a essa despedida súbita do meio literário - que, por sinal, oficialmente nunca ocorreu -, o escritor investiu dinheiro e comprou uma fazenda: Lagoa dos Sinos, localizada no interior de São Paulo. Foi lá que Raduan Nassar passou os últimos 20 anos, recluso, dedicando-se a atividades agropastoris. Criou galinhas, pasceu o gado, plantou arroz, cultivou soja e milho. Amargou prejuízos. Com o tempo e a perseverança, todavia, veio o sucesso. Uma vida dedicada à terra e sua propriedade o tornara um homem rico. Vinte milhões. Eis o valor.      

O enigma do agricultor que abandonou a agricultura

De repente, nova reviravolta: Raduan Nassar doa sua fazenda. Como que a repetir o passado, o escritor-agricultor, célebre por sua curta e habilidosa carreira literária, mas também por seus enigmas, torna a impressionar a todos ao desfazer-se de seu patrimônio milionário - a fazenda à qual dedicara o trabalho de toda uma vida.  

Para doar Lagoa dos Sinos, Raduan fez algumas exigências à donatária. Exigiu que a universidade instalasse cursos de graduação na fazenda; queria que ela se tornasse um campus. Exigiu também que, quando da assinatura do contrato de doação, não houvesse ninguém da imprensa. Nem uma câmera, nem um repórter, ninguém do público por perto: Raduan queria doar sua lavoura em silêncio. 

No meado  de 2012, o escritor assinou a papelada e a burocracia atestou definitivamente: a fazenda Lagoa dos Sinos passou para o patrimônio da UFSCAR. Raduan Nassar deixou, assim, um imóvel milionário para trás. Deixou, acima de tudo, a terra à qual dedicara sua vida de agricultor, onde fizera vicejar a soja, onde colhera o milho. Raduan abandonou a lavoura como abandonou a literatura.   
    
O homem que amou sua lavoura

Quando tomei partido da decisão de Raduan, pus-me incontinênti a pensar sobre o quão significativo é seu exemplo hodiernamente. Sob a égide do ímpeto da ganância, quantos seriam capazes de desfazer-se de uma fazenda tão valiosa? Estimulados a acreditar que enriquecer é o único sentido possível que se pode ter na vida, quem ousaria abdicar da própria fortuna, de um imóvel milionário, assim, de repente? E a crença patrimonialista na "família brasileira", que faz com que cargos públicos sejam loteados entre parentes, que o erário seja repartido como um bolo de aniversário entre poucos ilustres convidados? Raduan não concorda? Por que não doou a fazenda aos irmãos? Por quê?       

Perguntas como essas nos conduzem à perplexidade proporcionalmente à mesquinhez de nossas existências. Apegados em demasia ao poder do dinheiro, tornamo-nos sovinas com a própria vida. Somos incapazes de perceber a lição de Raduan: o desprendimento é parte do ser humano, da tão propalada liberdade que almejamos. Ser livre é tomar as decisões de peito aberto, de coração sincero, mesmo quando elas se afigurem incompreensíveis. Ser livre é nadar contra a corrente, é trocar os prestigiosos holofotes do mundo literário pelos raios do sol quente numa manhã comum, um chapéu de palha sobre a cabeça, uma enxada a capinar a terra, o mero bruxuleio da luz de uma lâmpada a iluminar a plantação. Ser livre é dedicar-se ao trabalho na fazenda só pelo prazer de vê-la crescer, ter sucesso, ser produtiva. E depois a doar a uma universidade, sem pensar em quantias, em somas, em números - ou no patrimônio da família. Doar a terra que tanto cultivou para os outros, para o próximo, o seu semelhante. Se os que irão se beneficiar não são parentes, tampouco são desconhecidos:  são estudantes que hão de aprender na terra o seu ofício, para que nela trabalhem, como o escritor trabalhou, para que a amem - como Raduan amou sua lavoura.      

Um exemplo de liberdade

Uma decisão como a de Raduan, em um mundo de aparências e falsas caridades, poderia muio bem servir para evidenciar seu comportamente generoso. À reputação de grande artista da palavra somar-se-ia a de filantropo benemérito, respeitável pela sua biografia como pela sua literatura. Mas, quando da celebração do negócio, o doador não quis a presença da imprensa, dos jornais, da TV, de ninguém. E o que significa isso? Significa que o escritor doou sua fazenda não para ser visto, observado, admirado ou querido. Doou-a exclusivamente por sua consciência altruísta, por desejar retribuir com educação ao povo da terra que o acolheu, ou por uma outra razão qualquer indecifrável, digna de um grande enigmatista.

Em sua curtíssima carreira literária, naquele que é seu livro mais conhecido (a novela Lavoura arcaica), Raduan Nassar (2009, p. 11-12) escreveu: 

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).

Tal qual André, a personagem que protagoniza a novela e narra as consequências de seu asfastamento da propriedade rural da família, Raduan Nassar também está a empreender uma fuga. Foge do estereótipo cúpido, tão comum em nossos dias, para dedicar-se ao exame consciencioso da própria vida. Na solidão do campo, a contrario sensu, encontra a temperança. É mais humano no meio de bois e galinhas, no meio do milharal e da sojicultura. Aventura-se na terra não porque precisa, mas porque a ama e porque essa é a sua decisão. A sua decisão personalíssima.  

Enquanto em Lavoura arcaica André - o personagem - foge da vida rural, para contrapor-se à crença excessivamente rigorosa do pai na ordem familiar, na vida real, Raduan - o homem - regressa ao campo sem ceticismos: troca os livros pelo arado, a biblioteca pelo trator, as palavras pelos grãos de sementes. Deixa a cidade e as letras pela agricultura. Essa é a sua decisão, a decisão de um homem livre. Então, muitos anos depois, doa sua fazenda. Vai arar outros campos, lavrar novas terras. Se sulcar o mesmo chão já não o faz livre, sua fuga já não se justifica. Vai-se embora. Procura outro caminho, uma nova lavoura, para amar, semear, cultivar. E o que a todos surpreende como um enigma, para o escritor faz todo o sentido, pois essa é a sua decisão. Nesse sentido, não existe ninguém neste mundo mais livre do que Raduan Nassar.   

REFERÊNCIAS

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3ª ed. rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 194 p.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

AS CRIANÇAS LADRONAS EM CAMINHO DA REGENERAÇÃO: a liberdade das ruas e a violência no reformatório baiano da pobreza em "Capitães da Areia" de Jorge Amado


O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar.
E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças,
esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe,
que viviam de furto como homens,
que eram temidos na cidade como ladrões.
Esqueceram as palavras da velha de lorgnon.
Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças,
cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. 
Jorge Amado, "Capitães da Areia".

 
Meninos de rua: uma velha tragédia social brasileira 
Um dos problemas mais graves da sociedade brasileira diz respeito ao tratamento desumano reservado para as crianças e adolescentes pobres. Num país como o Brasil, em que os direitos sociais com alguma qualidade estão todos privatizados (saúde, educação, moradia, lazer etc.), é fácil concluir que a pobreza implica não apenas a supressão do poder aquisitivo que confere status existencial na sociedade de consumo (porque "existir", nessa sociedade, significa "consumir"), mas também acarreta consequências oprobriosas, que resultam na mais vil indignidade: doenças medievais que matam, subnutrição, dentes que apodrecem, roupas esfarrapadas, exploração do trabalho, inclusive o sexual, abandono nas ruas, alfabetização precária ou mesmo inexistente. Tudo acompanhado, é claro, de muita, muita violência.    

O problema dos "meninos de rua" é grave, sem dúvida. Mas, no Brasil, o descaso com que é tratado pelo Estado e pela sociedade talvez seja ainda pior. O desinteresse apresenta-se já nas faculdades de direito, que tradicionalmente formam a mão de obra burocrática que há de conduzir os negócios estatais: boa parte delas, ainda hoje, sequer tem uma disciplina específica direcionada ao estudo dos direitos da criança e do adolescente. Depois, o desinteresse toma a forma de desprezo social: os "meninos" não são mais "meninos", e sim "menores". E os "menores de rua" são um problema "do Estado", que deve dar a eles o amparo que ninguém está disposto a dar. Pois esses "menores", quando cedo seguem o caminho quase inevitável da criminalidade, transmudam-se novamente: agora são "pivetes", perigosos infantes a sonhar o periclitante sonho de se tornar um grande criminoso. Colocando em risco a paz e a segurança públicas, os pivetes constituem a face mais visível e incômoda do problema. E a resposta institucional não tarda a chegar: polícia e violência, violência e polícia. E assim o ciclo da tragédia se completa, infindo e irresoluto.

Esse é o cenário do Brasil atual, onde há o desprezo generalizado pelos menores de rua. Há também o temor (e a repulsa) pelos pivetes - a juventude que se educa na "escola do crime", para praticar delitos, às vezes de proporções dantescas, que remetem a precoces adultos cruéis. Sendo assim, a quem haveria de interessar o problema das crianças e adolescentes em situação de risco? Quem se interessaria pelos meninos de rua que a sociedade e o Estado convenientemente invisibilizaram?  

Pois bem. O escritor Jorge Amado interessou-se pelo problema. Interessou-se tanto que escreveu um romance a seu respeito: Capitães da Areia. Trata-se de uma ficção que visa a denunciar a situação de abandono em que se encontram os "meninos de rua" nas cidades brasileiras. Por isso, a crítica considera-o um romance de "denúncia social", que pertence à fase da prosa regionalista dentro do movimento modernista no Brasil, mesma fase a que pertencem outros grandes romances nacionais, como O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz, Menino de Engenho (1932), de José Lins do Rego, e Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos.

Os meninos do trapiche abandonado

O curioso é notar a atualidade de um livro septuagenário. Publicado pela primeira vez em 1937, Capitães da Areia continua a bem representar o significado da vida dos meninos de rua. Narra a história de várias personagens, unidas pela miséria, mas também pelo crime: agem como quadrilheiros juvenis, a praticar pequenos furtos em Salvador - a "cidade da Bahia". São as aventuras desses pequenos delinquentes, esboço do que hoje se entende como "gangue", que Jorge Amado irá narrar. Eles formam os "Capitães da Areia", infantes que

Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas. Levavam vida nem sempre fácil, arranjando o que comer e o que vestir, ora carregando uma mala, ora furtando carteiras e chapéus, ora ameaçando homens, por vezes pedindo esmola. (AMADO, 2008, p. 46).  

Como qualquer grupo organizado, os Capitães da Areia têm uma base e um líder. A base é o trapiche abandonado onde dormem "em companhia dos ratos, sob a lua amarela". O líder é Pedro Bala, um adolescente de quinze anos. Loiro e bom de briga, Bala conquista a liderança do grupo junto ao cabloco Raimundo após uma luta nas areis do cais. Mas o chefe dos Capitães da Areia também é um menino solitário: órfão, porque nunca soube de sua mãe, e seu pai morrera durante uma greve dos doqueiros, há dez anos vagabundeia pelas ruas da Bahia.    

Como Bala, os outros integrantes dos Capitães da Areia são todos muito jovens: vão dos oito aos dezesseis anos. Também têm trajetórias semelhantes de abandono nas ruas de Salvador. Há o negro João Grande, conhecido e admirado por sua força, que engajou com apenas nove anos no grupo, após seu pai, que era carroceiro, ter sido atropela por um caminhão. Há João José, o mais inteligente, que tinha o hábito incomum de furtar livros, para depois "comer os olhos" com a letra miúda e contar as histórias para seus colegas, quase todos analfabetos ou de pouquíssimo estudo. Esse gosto pela leitura, uma "ânsia que era quase febre", foi que lhe valeu o apelido de "Professor".

Aquele saber, aquela vocação para contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães da Areia, se bem fosse franzino, magro e míope. Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, contando aquelas histórias que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capitães da Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia. (AMADO, 2008, p. 32).

No meio dos Capitães da Areia, outros membros se destacam: o Gato, o elegante do grupo, que se envolverá com a prostituta Dalva e tornar-se-á rufião; Boa-Vida, "mulato troncudo e feio", que incorpora a figura do malandro que faz sambas com seu violão; Pirulito, um garoto dedicado à religião, que sonha em ser padre; e Volta-Seca, um mulato sertanejo que deseja juntar-se ao bando de Lampião.

Sem-Pernas e o abandono de qualquer carinho

Menção especial merece o Sem-Pernas.  Talvez ele seja a personagem com maior densidade psicológica em toda a trama: adolescente coxo, valia-se da comiseração proporcionada pela sua deficiência física para adentrar e espionar as casas escolhidas para novos furtos. Mas, além de espião do grupo, e do prazer que tinha em irritar os outros (o que o metia constantemente em brigas e lhe valeu a fama de malvado), o Sem-Pernas era também um garoto dotado de algum sentimento piedoso, que "No mais fundo do seu coração ele tinha pena da desgraça de todos. E rindo, e ridicularizando, era que fugia da sua desgraça. Era como um remédio." (AMADO, 2008, p. 37).

Mas o aspecto mais marcante da personalidade iracunda do Sem-Pernas é o sofrimento ante a lembrança, que o atormenta e corrói, das muitas surras que levou ao longo da vida, especialmente quando foi levado preso. Essas reminiscências tormentórias hão de acompanhá-lo durante toda a trama. Adquirem uma cor vibrante na passagem em que o adolescente hesita em pilheriar da fé de Pirulito. Assustado com a expressão extática do amigo que reza, mas descrente de que ali houvesse a felicidade e o carinho perdidos que tanto buscava, o Sem-Pernas vê-se recolhido ao seu dilema, incapaz de encontrar uma resposta: 
  
O que ele queria era felicidade, era alegria, era fugir de toda aquela miséria, de toda aquela desgraça que os cercava e os estrangulava. Havia, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas havia também o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Pirulito buscava isso no céu, nos quadros de santo (...). Mas o Sem-Pernas não compreedia que aquilo pudesse bastar. Ele queria uma coisa imediata, uma coisa que pusesse seu rosto sorridente e alegre, que o livrasse da necessidade de rir de todo e de rir de tudo. Que o livrasse também daquela angústia, daquela vontade de chorar que o tomava nas noites de inverno. Não queria o que tinha Pirulito, o rosto cheio de exaltação. Queria alegria, uma mão que o acarinhasse, alguém que com muito amor o fizesse esquecer o defeito físico e os muitos anos (talvez tivessem sido apenas meses ou semanas, mas para ele seriam sempre longos anos) que vivera sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos homens que passavam, empurrado pelos guardas, surrado pelos moleques maiores (...). Ele quer um carinho, u'a mão que passe sobre os seus olhos e faça com que ele possa se esquecer daquela noite na cadeia, quando os soldados bêbados o fizeram correr com sua perna coxa (...). Confusamente desejava ter uma bomba (como daquelas de certa história que o Professor contara) que arrasasse toda a cidade, que levasse todos pelos ares. Assim ficaria alegre. Talvez ficasse também se viesse alguém, possivelmente uma mulher de cabelos grisalhos que o apertasse contra o peito, que acarinhasse seu rosto e o fizesse dormir um sono bom, um sono que não estivesse cheio de dos sonhos da noite na cadeia. Assim ficaria alegre, o ódio não estaria mais no seu coração. E não teria mais desprezo, inveja, ódio de Pirulito (...). (AMADO, 2008, p. 38-39). 

Em outro momento do romance, Jorge Amado volta a agudizar o conflito psicológico que advém dos traumas de infância do Sem-Pernas. Tal ocorre quando os Capitães da Areia decidem assaltar a casa de um rico advogado em busca de ouro. Como de costume, enviam o menino coxo que "sabia como nenhum afetar uma grande dor e assim conseguia enganar senhoras, cujas casas eram depois visitadas pelo grupo já ciente de todos os lugares onde havia objetos de valor e de todos os hábitos da casa" (AMADO, 2008, p. 39). Porém, o Sem-Pernas, ao ser recebido na casa, encontra dona Ester, uma mulher que enxerga nele a lembrança do filho falecido, tratando-o com uma doçura e carinho incomuns. Pela primeira vez o Sem-Pernas se sentia não apenas como o deficiente físico que angariava a pena alheia, mas como um verdadeiro filho. Nesse sentido, é exemplar sua reação transtornada quando recebe um "beijo de boa-noite" na face, um autêntico "beijo de mãe": 

O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder sequer o boa-noite, a mão no roso, no lugar em que dona Ester o beijara. Não pensava, não via nada. Só a suave carícia do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe. Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem-Pernas. (AMADO, 2008, p. 127/128). 

Sem querer, o Sem-Pernas encontrara justamente aquele sentimento pelo qual a vida toda procurara: o amor maternal. Mas novo dilema se instala: ele fora enviado pelos seus companheiros como o espião, para dar as coordenadas do furto. E agora? Vai trair a confiança dos Capitães da Areia, permanecendo na casa de Dona Ester? Ou vai cumprir sua missão, fiel ao comando do grupo? Neste último caso, contudo, não estaria a trair a confiança de dona Ester?

Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia comida boa, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. (...) E se para alguém o Sem-Pernas abria uma exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora  sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado. Com esse pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não os trairia. Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. (...) Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. (AMADO, 2008, p. 131).    

Nessa passagem, evidencia-se um conflito personalíssimo (o Sem-Pernas e seu escrúpulo). Mas há também o aspecto moral, no sentido de uma "lei do grupo". A lealdade aos Capitães da Areia não é fácil de ser rompida nem mesmo para um garoto traumatizado, pela violência como pela pobreza, que encontra o sonhado "amor de mãe" e seus consectários (o aconchego, a proteção, o carinho, o cuidado). Podendo permanecer onde está, isto é, na casa de dona Ester, com comida boa, roupinha de marinheiro e beijo de boa-noite, ainda sim o Sem-Pernas opta em seguir a lei do grupo. Foge, repassa as coordenadas, o furto concretiza-se. Mas a pergunta diante da qual se põe o leitor é a seguinte: como o Sem-Pernas pôde ter optado pela imundice do trapiche, pelo abandono de uma vida sem pai nem mãe, pela violência e pela fome das ruas?

À primeira vista, parece uma opção estúpida, para não dizer suicida. No entanto, é preciso considerar que, no romance de Jorge Amado, os Capitães da Areia não eram apenas uma gangue de meninos de rua; eles eram uma família. Para o Sem-Pernas, como para os demais membros do grupo, em meio ao abandono a que se habituara, os Capitães da Areia eram a sua única e verdadeira família em Salvador. E o parentesco que une essas crianças "é a miséria, a razão de existir, a luta tenaz contra tudo e todos, contra a cidade que se torna uma inimiga" (HATOUM, 2008, p. 277).     

Os mistérios do sexo

Outro aspecto interessante do romance é a sexualidade dos meninos de rua. A presença desse elemento, que por sinal é marcante na obra de Jorge Amado, aparece por mais de uma vez, mas não de uma maneira romântica, idealizada. Na verdade, acostumados a viver submetidos a um código próprio (a lei do grupo), cujos signos decifram-se na forma de armas brancas (a navalha, o punhal), o sexo surge como uma descoberta instintiva e desregrada. Desse modo, os Capitães da Areia "falavam naturalmente em mulher apesar do mais velho ter apenas dezesseis anos. Cedo conheciam os mistérios do sexo." (AMADO, 2008, p. 34).    

Mas o conhecimento que tinham do sexo era tão violento quanto a vida que levavam. Nesse ato não havia amor, porque esse era um sentimento que os ansiava, uma busca perdida. Os Capitães da Areia sabiam apenas que precisavam matar o seu desejo. Alguns, como o Gato, iam dar com as meretrizes. Outros procuravam negrinhas para "derrubar no areal", mesmo que à força, como no episódio em que Pedro Bala estupra uma menina (aliás, uma das passagens mais terríveis da história). Havia também os homossexuais no grupo. Boa-Vida, por exemplo, tentara conquistar o Gato, que o repelira com agressão. Outros, como Barandão e Almiro, mantinham uma relação homoafetiva em segredo, já que "uma das leis do grupo era que não admitiriam pederastas passivos" (AMADO, 2008, p. 47). 

Disso sobressai o microcosmo em que os meninos de rua vivem: o trapiche é-lhes a casa, mas é também a porta aberta para o mundo, "porque toda a zona do areal do cais, como aliás toda a cidade da Bahia, pertence aos Capitães da Areia" (AMADO, 2008, p. 28). Sendo assim, poucos são os adultos que o integram: o capoeirista Querido-de-Deus, a mãe de santo Don'Aninha, o padre Sérgio. Não há espaço para outros, visto que os Capitães da Areia não podem confiar em ninguém, fugitivos perenes que são da polícia.  

Bexiguentos

Nesse microcosmo de fome, violência, criminalidade, desprezo social, no submundo da cidade de Salvador em que vivem os Capitães da Areia, enfim, um dos medos que aflige os meninos de rua é a doença. Aí ficam por sua própria conta, ao deus-dará.           

Por vezes morria um de moléstia que ninguém sabia tratar. Quando calhava vir o padre José Pedro, ou a mãe-de-santo Don'Aninha ou também o Querido-de-Deus, o doente tinha algum remédio. Nunca, porém, era como um menino que tem a sua casa. (AMADO, 2008, p. 46).

É uma epidemia de alastrim que vai desencadear alguns dos momentos mais dramáticos do romance. Quando um dos Capitães da Areia cai doente com "bexiga", percebe-se o total desamparo em que se encontram. Se, sem remédios, sem assistência médica, qualquer doença menos grave já preocupava, imagina então um vírus contagioso e fatal como o da varíola. Era praticamente morte certa.

Uma das passagens mais tocantes do romance ocorre justamente no auge da epidemia de alastrim. No capítulo "Filha de bexiguento", Jorge Amado denuncia como a doença atinge cruelmente os pobres. É nesse instante que conhecemos Dora, uma menina de "treze para catorze anos", que assiste à sua mãe sucumbir à doença, necessitada que estava de trabalhar:

Assim estava o morro quando Estevão foi levado para o lazareto. Não voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá. Nesta tarde ela já estava com febre. Mas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia, conseguiu não ser metida num saco. Aos poucos foi melhorando. (...) Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro, porque a epidemia de varíola tinha se acabado. A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida, se bem ainda não estivesse completamente boa, foi à casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa. Trabalhou o dia todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrim e a recaída é sempre terrível. Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola. (AMADO, 2008, p. 168).   

Com essa passagem, Amado mostra que a morte da lavadeira poderia ter sido evitada noutras circunstâncias, caso ela tivesse tido o tempo adequado para recuperar-se. Mas a miserabilidade da sua vida, e a premente necessidade de garantir o sustento de sua família, fê-la retornar para o trabalho, na verdade, o caminho conducente à sua morte. Com isso, nova tragédia se anuncia: seus filhos, Dora e o caçula Zé Fuinha, agoram estão nas ruas, pobres e órfãos de pai e mãe.   

Chibatadas, socos e pontapés: a política oficial da regeneração dos meninos de rua pela violência

Além da doença, a polícia é uma ameaça constante na vida dos Capitães da Areia. O episódio da narrativa mais representativo disso dá-se com a prisão de Pedro Bala, que, mandado ao Reformatório Baiano de Menores Abandonados e Delinquentes, experimenta o tratamento oficial para "reformar" e regenerar crianças e adolescentes "desviados":       

O investigador fez um sinal para os soldados. Pedro Bala sentiu duas chicotadas de uma vez. E o pé do investigador na sua cara. Rolou no chão, xingando. (...) Agora davam-lhe de todos os lados. Chibatadas, socos e pontapés. O diretor do reformatório levantou-se, sentou-lhe o pé, Pedro Bala caiu do outro lado da sala. Nem se levantou. Os soldados vibraram os chicotes. (AMADO, 2008, p. 201) 

A prisão de Pedro Bala é o mote para desvelar a máscara da política estatal. Crianças e adolescentes são reformados "na base da porrada". O Estado alcança os jovens deliquentes, mas não para propiciar os direitos suprimidos, a escola, a saúde, a educação não vêm. O que chega aos meninos de rua é a "mão forte" do reformatório, que lhes cassa a liberdade, soqueia, senta a cinta, vibra o chicote. O Estado apresenta-se ainda mais violento que as ruas de Salvador.   

No reformatório, onde deveria se "regenerar", Pedro Bala é lançado pelo bedel na cafua, com feijão magro e água, obrigado a aspirar o odor fétidos das próprias fezes. Fica sabendo que mais de um menino já morreu naquele espaço tão apertado. Seus dias na solitária, cheio de fome e sede, dão-lhe tempo para pensar. E tudo no que pensa é no ódio, no desejo de vingança. No reformatório baiano da pobreza, o chefe dos Capitães da Areia aprende a suportar as dores no corpo espancado e a sobreviver com pouca água, quase nenhuma comida. Pode alguém recuperar-se da delinquência dessa forma?     

O lirismo do grande Carrossel Japonês na noite da Bahia

São essas pequenas tragédias sociais que Jorge Amado vai narrando ao longo do livro. É a face de denúncia social do romance, que o situa historicamente no conjunto das obras neorrealistas da prosa regionalista do modernismo brasileiro.

Apesar disso, Capitães da Areia reserva momentos de lirismo. O mais emblemático deles ocorre no passeio dos meninos no Grande Carrossel Japonês. É quando se revela que os temidos jovens delinquentes, que cresciam e se afirmavam no uso da navalha e do punhal, também possuíam a capacidade de maravilhar-se com um brinquedo. Porque o carrossel, no fundo, era apenas isto: um brinquedo para quem não tivera a chance de brincar como qualquer outra criança. Um brinquedo para aqueles que queriam esquecer tudo, toda a miséria e abandono, e ser "iguais a todas as crianças". 

O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram que não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham lar, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que eram temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas do Grande Carrossel Japonês. (AMADO, 2008, p. 82).

Em 1937, Capitães da Areia foi queimado em praça pública por ter sido considerado um livro "propagandista do credo vermelho". O fato é que a alardeada "ameça comunista", pretexto comum para o exercício do arbítrio totalitário no século XX, não se concretizou, e a ditadura militar (felizmente) acabou no Brasil. De eterno, dessa história toda, só ficou mesmo o problema das crianças e adolescentes de rua no Brasil - que ainda hoje, em pleno século XXI, permanece longe de ser resolvido - e a sua representação literária mais pujante: o romance Capitães da Areia, uma leitura instigante e envolvente sobre uma das mais tristes tragédias sociais brasileiras.   
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. Posfácio Milton Hatoum. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 283 p.