quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Folia da Filosofia: ou sobre como pular o Carnaval com Nietzsche no trio elétrico da tragédia


          Escrevo num momento crucial para a cultura brasileira. É quarta-feira de cinzas – data que, se para os cristãos católicos marca o início do mistério quaresmal, para os profanos representa o último dia do feriado prolongado da mais célebre das festas populares do País: o carnaval. Pois é justamente este derradeiro significado, ligado ao carnaval, que me toma de assalto e me lança num arroubo indomável ao único mundo onde me sinto verdadeiramente feliz: o mundo das palavras.
          Providência ou acaso, o leitor assíduo deste blogue, abrindo divergência ao imprevisível, decerto optaria sem vacilar pela primeira. Convicto estaria de que me conhece suficientemente bem para prever minha opinião sobre o pandemônio carnavalesco em que se converte o Brasil todos os meses de fevereiro. Duro, áspero, mordaz e impiedoso seriam alguns das adjetivamentos que se imporiam no anseio de quem aguarda deste escritor um manifesto sobre o carnaval. Creio que a lógica da intelectualidade com que me porto em sociedade conduz o leitor a essa conclusão. Que haveria de se esperar de alguém que, por mais de uma vez, aqui mesmo neste blogue - lido por alguns “gatos pingados” tão intrépidos quanto intermitentes em sua assiduidade -, já se declarou pretenso herdeiro da mais genuína “arte do combate” dos grandes literatos alemães senão a crítica violenta, haurida do lugar-comum da intelectualidade brasileira, para condenar o carnaval, qual um juiz da racionalidade, verdadeiro Torquemada redivivo, irascível diante da mais incisiva manifestação cultural da estultícia escarninha e do exagero erotizado?
          Esse é um primeiro equívoco que me vejo na obrigação de corrigir. O leitor que se tenha conduzido precipitadamente a concluir da forma descrita acima não poderia estar mais enganado. Acreditem: eu respeito o significado simbólico da festa do carnaval para o povo brasileiro. Está claro, todavia, que semelhante afirmação não poderia vir desapercedida de um suporte teórico. É que não há graça na vida se não puder me arriscar na especulação corajosa de quem reflete e, por refletir, põe-se a teorizar. “Viver é correr riscos”, já o repete toda a gente num adágio maquinal. Não ousarei discordar.  
          Entender meu apreço pela festa do carnaval pressupõe, assim, uma breve digressão pela Filosofia. Mais precisamente pela obra de Nietzsche, o filósofo alemão cujo pensamento, dentre outros temas, dedicou-se a estudar as pulsões e instintos subjacentes às ações humanas. É nesse ponto que seu livro O nascimento da tragédia (1872) ganha importância em minha reflexão. Entendê-lo, dessa feita, é fundamental.
          O nascimento da tragédia é o livro inaugural do pensamento filosófico nietzscheano. Historiadores da Filosofia creditam-no ao “período trágico” das ideias do filósofo alemão, isto é, quando seu autor dedica atenção especial ao tema da arte. Escrito por volta de 1870/1871, apresenta um gênio da Filosofia ainda em formação: aqui encontramos o jovem Friedrich Wilhelm Nietzsche, à época contando apenas vinte e seis anos, ainda no início de sua carreira acadêmica, mas cuja obra de estreia já era aguardada com grande expectativa pelos seus colegas, dado o talento excepcional com que Nietzsche destacara-se nos seus idos de estudante de Filologia – o que lhe garantiu o status de mente filológica prodigiosa junto a seus pares da academia.
          A publicação de O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus) foi, todavia, um fracasso. A comunidade acadêmica tratou com desprezo a obra. A abordagem deveras especulativa com que Nietzsche se propôs a estudar a tragédia grega fulminou suas ideias de descrédito diante da tradição filológica classicista.      
          Dezesseis anos depois, Nietzsche revisita seu primeiro livro, redigindo uma “tentativa de autocrítica” que passa a figurar no introito da obra. Não dá razão à recepção fleumática com que foi tratado pelos filólogos temporâneos, mas admite a prematuridade frágil de suas ideias, ainda que nelas também reconheça o embrião “terrível e perigoso” do “problema com chifres” da problematização da ciência – tema que centralizaria muitas de suas reflexões filosóficas posteriores. 

O que consegui então apreender, algo terrível e perigoso, um problema com chifres, não necessariamente um touro, por certo, em todo caso um novo problema: hoje eu diria que foi o problema da ciência mesma – a ciência entendida pela primeira vez como problemática, como questionável. Mas o livro em que se extravasava a minha coragem e a minha suspicácia juvenis – que livro impossível teria de brotar de uma tarefa tão contrária à juventude! Edificado a partir de puras vivências próprias prematuras e demasiado verdes, que afloravam todas à soleira do comunicável, colocado sobre o terreno da arte – pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência – um livro talvez para artistas dotados também de capacidades analíticas e retrospectivas (...) uma obra de juventude cheia de coragem juvenil e de melancolia juvenil, independente, obstinadamente autônoma, mesmo lá onde parece dobrar-se a uma autoridade e a uma devoção própria, em suma, uma obra das primícias, inclusive no mau sentido da palavra, não obstante o problema senil, acometida de todos os defeitos da mocidade, sobretudo de sua “demasiada extensão”, de sua “tempestade e ímpeto” [Sturm und Drang]. (NIETZSCHE, 1996, p. 15). 

           A principal característica de O nascimento da tragédia, enquanto produto do pensamento filosófico nietzscheano, é o desafio à tradição filológica que insistia na compreensão da Grécia Antiga e de suas respectivas manifestações culturais, a exemplo da tragédia ática, como consequência da racionalidade dos helênicos. Nietzsche a isso se opunha, pondo em destaque, a partir de uma visão original, o pessimismo e os instintos como condições de possibilidade imprescindíveis da produção artístico-cultural grega. Na tragédia teatral dos gregos antigos, havia, prevalentemente, um instinto pulsante incontornável – uma autêntica necessidade da tragédia. Traduzia-se, com isso, um modo próprio de vida da sociedade grega antitético ao socratismo estético moralizante, à “serenojovialidade” do homem teórico e sua racionalidade dialética. A isso o filósofo alemão chamou de “pessimismo da fortitude”, entendido como o grande ponto de interrogação sobre o valor da existência.

Será o pessimismo necessariamente o signo do declínio, da ruína, do fracasso, dos instintos cansados e debilitados (...) como ele o é, segundo todas as aparências, entre nós, homens europeus “modernos”? Há um pessimismo da fortitude? Uma propensão intelectual para o duro, o horrendo, o mal, o problemático da existência, devido ao bem-estar, a uma transbordante saúde, a uma plenitude da existência? Há talvez um sofrimento devido à própria superabundância? Uma tentadora intrepidez do olhar mais agudo, que exige o terrível como inimigo, o digno inimigo em que pode pôr à prova a sua força? Em que deseja aprender o que é “temer”? (NIETZSCHE, 1996, p. 14).    

          Nietzsche estrutura sua crítica filológica expressa nessa obra a partir de duas personagens divinas do panteão grego: Apolo e Dionísio. Opondo-os, busca aí chegar “não apenas à intelecção lógica mas à certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco”. (NIETZSCHE, 1996, P. 27). Citando Schopenhauer, Nietzsche (1996, p. 30) reporta-se à possibilidade de o princípio da razão sofrer uma exceção, gerando “imenso terror que se apodera do ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da aparência fenomenal”. Seu objetivo, assim, é arrostar esse terror: o filósofo se lança a identificar esses instintos dionisíacos na tragédia grega, reposicionando-os no cabedal da Filologia helenista moderna, a qual os ignorara até então, dada a opção dos filólogos, sobretudo alemães, em exaltar as características racionais e moralizantes do socratismo estético como propulsoras da arte helênica – tudo, enfim, o que Nietzsche visava a combater com seu primeiro livro.                     
          Dessa forma, Apolo e Dionísio são deidades da cultura grega (Kunstgottheiten) a orientar a percepção nietzscheana dos instintos naturais do homem na arte. Há um impulso artístico apolíneo. Mas há também um impulso artístico dionisíaco. Em Apolo encontramos um deus ético, incentivador do autoconhecimento, cuja crença divisa o onírico do real, a que Nietzsche associa à necessidade da aparência bela, como que um fazedor de imagens, um figurador plástico (Bilder), isto é, o impulso da arte que se expressa plasticamente no belo é a arte apolínea. Já em Dionísio temos seu oposto. A crença dionisíaca é a do exagero e da excitação, da máxima do “tudo em demasia”, momento em que irrompe o instinto vital do humano, fulminando a continência moral apolínea; é aí que se encontra a música, compreendida como a arte não figurada (unbildlichen) que dá vazão à sensação extática, ao delicioso êxtase proporcionado pela natureza humana mais íntima, porquanto ultrapassadas as limitações morais da subjetividade solapada pelo autoesquecimento embriagado.

(...) Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais perto possível, pela analogia da embriaguez. (...) despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja intensificação o subjetivo se esvanece em completo autoesquecimento. (NIETZSCHE, 1996, P. 30).   

          Esses impulsos artísticos naturais, conquanto opostos, são complementares. Nietzsche defende que um se alimenta do outro. São instintos conjugados reciprocamente, num autêntico gênio apolíneo-dionisíaco, cada qual a contribuir para a dimensão de completude da tragédia ática no que se propõe a convencer o homem do prazer da existência. Ao gênio apolíneo cabe o prazer da existência pela aparência; ao gênio dionisíaco cabe, ao revés, desconstruir essa mesma aparência.

Ao contrário do que pode aparentar em um primeiro momento, para Nietzsche, também a arte dionisíaca quer convencer do eterno prazer da existência, só que não por meio de belas aparências. O prazer dionisíaco ocorre justamente no momento em que se vai além do mundo das aparências, quando se suspende o véu das ilusões fenomênicas e do princípio da individuação e se ascende ao substrato dionisíaco da existência, ao Uno Primordial. Contudo, esse acesso ao dionisíaco propiciado pela tragédia é apenas temporário. Enquanto uma manifestação artística simultaneamente dionisíaca e apolínea, ela possibilita o acesso ao dionisíaco através de meios e elementos apolíneos que salvaguardam a individualidade cotidiana de aniquilação definitiva. Trata-se de uma encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos que leva os espectadores-artistas a experienciarem o consolo metafísico e o sentimento de alegria trágica que, para Nietzsche, são os objetivos principais da encenação, sem os quais uma tragédia não pode ser classificada enquanto tal. Quando se entra em contato com o núcleo pulsante de vida, que é o cerne da existência, percebe-se que apesar da destruição das aparências, por trás do princípio de individuação, a vida é eterna. Ao se perceber que, apesar da finitude e transitoriedade da existência individual, a vida é eterna e continuará a se produzir incessantemente, a pessoa vivencia o sentimento de alegria trágica que potencializa a existência. (BARROS, 2009, nº 12, p. 128).   

          Nietzsche vislumbra o nascimento da tragédia no coro trágico. Historicamente vinculada às homenagens ritualísticas ao deus Dionísio, a música dos coreutas de sátiros que entoavam os ditirambos (a música dionisíaca) é, para o filósofo, a nota distintiva de sua especial importância. Há na melodia ditirâmbica polissêmica um “espírito da música” excitante, conducente do espectador, portanto, ao mais sublime dos estágios de sentido, que é quando a subjetividade oriunda da individuação apolínea cede ao “protodrama no âmago”, ao abismo instintivo da própria natureza humana. A música é o caminho para o êxtase do estado dionisíaco. 

O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda a vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados. Nesse sentido, o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar [...] O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão [...] não é o refletir, não, mas é o verdadeiro conhecimento, o relance interior na horrenda verdade, que sobrepesa todo e qualquer motivo que possa impelir à atuação [...] Na consciência da verdade uma vez contemplada, o homem vê agora, por toda a parte, apenas o aspecto horroroso e absurdo do ser [...] isso o enoja. (NIETZSCHE, 1996, p. 55-56).   

          Nesse ponto de sua obra, Nietzsche declara guerra à “serenojovialidade grega” do helenismo posterior a Sócrates, o filósofo incentivador da vida racional, criador da maiêutica. Nietzsche acusa Sócrates de iniciar uma espécie de ditadura da razão sobre os instintos, impondo o saber qual sinonímia da virtude, de forma que o pecado seria, a fortiori, produto da ignorância. Esse pensamento socrático não se restringe ao julgamento moral dos fatos da vida, mas espraia, influente como vírus num corpo debilitado, por todo o pensamento grego. Daí surgir o “socratismo estético” que, ao lado do socratismo teórico, compõe-se do repúdio à encenação da tragédia desprovida de uma organização racional. O exemplo maior da desconstrução da simbiose apolíneo-dionisíaca com que se urdiu a tragédia ática dá-se na obra do poeta Eurípides (480-406 a. C). O teatro euripidiano caracteriza-se por priorizar a inteligibilidade dialógica em detrimento à espontaneidade ditirâmbica. Há mais diálogos; há menos ditirambos de coros e, portanto, há menos música. Otto Maria Carpeaux (2010, p. 189) recorda que o poeta Aristófanes (447-385 a.C.) já considerava Eurípides como “espírito subversivo, como corruptor do teatro grego e o fim da tragédia ateniense.” Era uma crítica que se voltava contra o fato de a tragédia euripidiana, diferentemente da esquiliana, centrar o heroísmo não em coletividades representadas, mas na figura do próprio indivíduo. Nietzsche vai de encontro a Eurípides, mas à sua própria maneira, isto é, pela crítica à assunção de uma excessiva racionalidade socrática moralizadora do teatro trágico grego, o que, ao fim e ao cabo, afastava o impulso artístico dionisíaco do seu correlato entramado – o impulso apolíneo. 

Excisar da tragédia aquele elemento dionisíaco originário e onipotente e voltar a construí-la de novo puramente sobre uma arte, uma moral e uma visão do mundo não dionisíacas – tal é a tendência de Eurípedes que agora se nos revela em luz meridiana. (NIETZSCHE, 1996, p. 78).       

          Todas essas considerações sobre O nascimento da tragédia de Nietzsche me permitem demonstrar o porquê de eu respeitar o carnaval. No contexto do pensamento nietzscheano, é possível entender essa festa popular como uma espécie de retorno do povo brasileiro ao impulso dionisíaco primaz. É como se o povo, aprisionado na corriqueirice vital, com suas obrigações morais entediantes e convenções da aparência, tomasse as ruas inebriado pela “embriaguez” das subjetividades que cedem ante o autoesquecimento dos papéis representados cotidianamente em sociedade (o impulso apolíneo da individuação forçada do sujeito).
          A música, nesse sentido, ocupa um papel central, tal como Nietzsche exaltava sua força na tragédia: são os batuques, sambas, marchinhas etc. expressões artístico-culturais de um povo que busca reencontrar a si próprio nos instintos mais subjacentes às emoções represadas no cotidiano. Não surpreende, dessa feita, que homens estejam travestidos de mulher, bem assim mulheres travestidas de homens nas festas carnavalescas - gesto de transgressão comum em diversos blocos de carnavais. Há, nessa simples “brincadeira”, uma demonstração inequívoca de como o impulso apolíneo, plasmado no homem socrático, racional, contido e sereno, deve ceder, nalgum momento de nossas vidas, ao ânimo impetuoso de quem se diverte em notar a si mesmo feliz pela simples ausência de amarras ideológicas, muitas das quais oriundas, até irrefletidamente, das convenções sociais que enformam a individuação do sujeito.
          E, se pensarmos bem, as fantasias trajadas pelas pessoas em carnavais não expressariam essa revolta? Não haveria no ato de esconder a sua própria sisudez existencial repúdio ao papel que desempenham as normas do trato social no afastamento do indivíduo dos prazeres humanos?
          A esta altura, o leitor questiona se é moralmente válido defender uma festa em que tantos infortúnios ocorrem. É realmente frequente a leitura de textos que condenam o “espírito carnavalesco”, apontando que o País seria bem melhor a extinguir-se o carnaval. Há inclusive elementos estatísticos a dar suporte a esse tipo de pensamento: haveria menos consumo de bebidas alcoólicas, menos atos contravencionais e criminais, menos brigas; haveria também preservação do patrimônio das cidades, de resto usualmente destruído pelos excessos daqueles que vandalizam de calçadas a banheiros químicos, afirmando sua própria ignomínia pela brusquidão de seus atos, sem contar a diminuição da contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, dado o estímulo à prática do sexo desvairado que circunda os corpos desnudos do carnaval. Ora, todos esses problemas não são passíveis de refutação. Eles ocorrem de fato. O Estado lucra com o turismo, mas boa parte da população sofre os reveses das consequências desses excessos que, repito, sequer pretendo ilidir. Sucede, no entanto, que uma festa não pode ser medida pelo que de pior dela advém. Não creio haja da parte de quem quer seja o desejo de ver concretizadas as consequências ruins que o carnaval acarreta. Elas existem no carnaval como existiriam em qualquer outra festa. Pois onde há seres humanos aglomerados, aumenta exponencialmente a possibilidade de conflitos.
          Não se pode, portanto, condenar à extinção uma festa popular pelo simples fato de que não é possível impedir de todo as consequências malfazejas que ela possa, eventualmente, gerar para a coletividade. Se há suciatas infiltradas em escolas de samba, ou corja de peraltas vandálicos que bebem para potencializar o instinto agressivo com que se portam nos bailes, esses são excessos a serem combatidos, mas que não podem servir para justificar o genocídio cultural das festas populares. Nem mesmo a apropriação do carnaval pela máquina capitalista, industrializando a festa, tornando-a um produto rentável, em alguns casos notadamente excludente dos mais pobres, pode justificar a defesa da supressão das culturas.  
          Eu mesmo, que me considero fortemente influenciado pelo pensamento nietzscheano, em face de que o ideal de transgressão de todos os valores preconizado pelo filósofo, desde a adolescência, sempre me pareceu a teorização idônea a contemplar filosoficamente meus desejos inatos de inconformismo com o status quo, dando um direcionamento político-filosófico contracultural à minha rebeldia pubescente (ainda que Nietzsche fosse um filósofo reacionário em muitos pontos), jamais poderia vir a público, tomar a palavra e defender a uniformização das culturas. Se assim procedesse, estaria a ir de encontro ao pensamento nietzscheano, cuja herança remonta, para além da “ciência” da suspicácia permanente contra tudo e contra todos, a um esforço contínuo em rejeitar o totalitarismo cultural, a imposição de valores de terceiros, que nos são legados o mais das vezes de maneira acrítica e que terminam por guiar vidas inteiras ao abismo da limitação intelectual e, portanto, a uma moral do rebanho.

Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. [...] Nietzsche se opõe à supressão das diferenças, à padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião. (GIACÓIA JUNIOR, 2000, grifo meu).           

          No fundo, as críticas ao carnaval revelam muito preconceito social. Aquele desejo antidemocrático de impor ao outro nossa própria opinião – no caso, nosso juízo estético.
          É claro que não posso ser hipócrita, enganando o leitor. O carnaval é uma festa popular que nunca foi do meu agrado pessoal. Meus pais até tentaram introduzir-me nesse aspecto cultural quando era um inocente infante brasileiro, mas de pronto notaram que eu era um garoto estranho – do tipo que preferia vestir camisas pretas de bandas a fantasias e comprazia-se muito mais com o som pesado e introspectivo das guitarras distorcidas à alegria do som percussivo típica dos ritmos brasileiros.  
          Minha experiência pessoal, meu juízo estético personalíssimo, entretanto, não se presta a legitimar autoritarismos de univocidade cultural. Além de compartilhar com Nietzsche o desejo em não ver suprimidas as diferenças culturais, tampouco posso admitir seja possível negar ao ser humano o direito de reencontrar a si próprio no êxtase proporcionado pelo contato com o “eu primordial”, isto é, a percepção não analítica da realidade, o instinto humano vital, a essência da vida irracional, o desejo primitivo de liberdade das correntes apolíneas. O carnaval, mais do que uma festa popular brasileira, é o símbolo cultural da força da vontade (Wille) que transgride as aparências, que oblitera os vestígios da subjetividade autoimposta; uma felicidade popular da embriaguez pelo autoesquecimento – o desejo do humano, enfim, ao impulso artístico primordial, o impulso dionisíaco.      

REFERÊNCIAS
BARROS, Thiago Mota da Silva. Nascimento e morte da tragédia ática segundo Friedrich Nietzsche. Revista Ítaca: revista de pós-graduação em filosofia IFCS-UFRJ. Rio de Janeiro, nº 12, p. 122-131, 2009. Disponível em: http://revistaitaca.org/versoes/vers12-09/121-131.pdf. Acesso em: 22 fev. 2012.
CARPEAUX, Otto Maria. Comentário. In: EURÍPEDES, c. 480-406 a. C. Medeia. Edição bilíngue. Tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2010.
GIACÓIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. (Coleção Folha Explica).  
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Die Geburt der Tragödie oder Grichentum und Pessimismus. Projekt Gutemberg DE. Spiegel Online: Kultur. Hamburg. Disponível em: http://gutenberg.spiegel.de/. Acesso em: 22 fev. 2012.  
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

MMA e a visão reducionista do esporte no Brasil


          De uns tempos para cá, tem havido uma popularização crescente do MMA no Brasil. Para quem não sabe, MMA é o acrônimo em inglês para “mixed martial arts”. A tradução desse acrônimo já nos permite entender seu significado: trata-se de desporto de combate que visa a conjugar distintas artes marciais. Com esse fim, lutadores rivalizam uns com os outros numa arena de oito lados – a que se denomina de “octógono”, embora alguns eventos adotem o formato de um ringue tradicional. O MMA, no fim, é isto mesmo: um polígono de modalidades de artes marciais.
          O crescimento em popularidade do MMA no Brasil não veio, todavia, desacompanhado de críticas. “MMA não é esporte; é selvageria”. Eis uma curta afirmação que bem resume quase tudo o que costuma ser ventilado contra a mistura de artes marciais. Não creia o leitor que esse ensaio rudimentar de crítica tenha partido de figuras inexpressivas. O jornalista Milton Neves, por meio do seu Twitter, já chegou a comparar as lutas a brigas de gangues e insinuar que o fã de MMA “deve achar uma beleza leão comendo cristão em Roma”. Outro nome de peso do jornalismo brasileiro afirmou em artigo recente que “Esta nova luta chamada UFC-MMA não pode ser considerada esporte. É uma armação comercial, manipulada, montada por espertalhões e avalizada por um sistema midiático que se associou para anestesiar o nosso senso crítico. Esta modalidade pugilística inventada pela família Gracie seria inofensiva se a mídia inteira – rádios, TV aberta, TV por assinatura, jornalões sisudos, jornalecos e portais-bolha da internet – não se acumpliciasse para promover 'a competição do futuro'. Nas TVs e rádios, jornalistas jovens, lindas e animadas, anunciavam o ‘fenômeno que está apaixonando crianças e mulheres.’ Isso é criminoso, sobretudo em concessões públicas.” (DINES, 2012).  
         Essas críticas não são novas. E nem são específicas do Brasil. Acompanham a prática desse tipo de luta desde seu surgimento. Foram especialmente nocivas nos Estados Unidos da América, haja vista o UFC (Ultimate Fighting Championship) – o maior evento de MMA da atualidade - ter sido criado em 1993 como um torneio sem muitas regras, inclusive sem a divisão de categorias de lutadores pelos pesos respectivos – aspecto tradicional da prática de esportes de combate. Não raro, quem assiste a algum dos primeiros eventos do UFC fica surpreso em notar oponentes com diferenças de peso gritantes, digladiando-se no octógono.
          Mas, afinal, o MMA é ou não é esporte?
          Acredito que a resposta a essa pergunta esteja na própria ideia do que se entende hoje por “esporte”. Se partirmos de uma noção correntia de que a prática desportiva confunde-se com alguma forma de atividade física humana, que visa a produzir entretenimento ao requerer habilidades específicas, podendo ainda ser competitiva, de modo que atletas disputem torneios com vistas a definir um vencedor, isto é, aquele que possui a mais apurada perícia no desporto, não vejo como alguém possa sustentar que o MMA não é esporte. Ele se enquadra sem refutações nos característicos citados acima. Além disso, parece próprio do senso comum universal quanto ao conceito de esporte que, mesmo as atividades físicas agressivas, contanto que estruturadas sob a forma de técnicas de combate, podem ser guindadas à condição de práticas desportivas. Ignorar esse último asserto é afirmar, de modo implícito, que toda arte marcial, por ser potencialmente lesiva a outrem, não se poderia afirmar enquanto desporto.
          O leitor já nota, a esta altura, que a discussão quanto ao MMA ser ou não esporte carece de fundamentos. É, o mais das vezes, fruto do destempero verbal daqueles que, ignorando o profissionalismo que envolve o autêntico artista marcial, querem fazê-lo parecer um “lutador de rua”, um sujeito violento que agride gratuitamente e vale-se do desejo sanguinário da audiência para locupletar-se. Nada mais equívoco. Os lutadores de MMA são atletas no mais lídimo sentido da palavra: possuem equipe de treinadores, programas de aperfeiçoamento do condicionamento físico, acompanhamento nutricional esportivo. Ninguém sobe ao octógono só porque “brigou na rua”. Pode até ser que algum lutador tenha extravasado sua agressividade inata de uma maneira reprovável nalgum momento de sua biografia; mas decerto ele logo se pôs a treinar numa academia, optando por alguma modalidade de arte marcial – ou, como sói acontecer no MMA, por várias delas.
          Há ainda outro ponto a considerar-se. O MMA, ao contrário do que seus críticos propalam ao acusá-lo de “selvageria”, é regido, sim, por regras. As regras, ainda que tenham sutis variações de acordo com a comissão do torneio em disputa, são pensadas para proporcionar o máximo de liberdade na mistura das artes marciais, gerando, da maneira mais extrema possível, entretenimento de embate corporal, sem que isso, no entanto, permita que os organizadores possam descuidar da saúde do atleta. Daí o porquê de eventos sérios de MMA sempre possuírem equipe médica ao lado do octógono, estando ainda o árbitro autorizado a intervir para interromper o combate, quando notar que um dos contendores não mais tem condições de prosseguir com a peleja sem que tal ponha em risco sua integridade física.
          No fim das contas, o que observo nessas críticas dirigidas ao “mixed martial arts” é, para além de uma notável incompreensão e desconhecimento da prática desportiva em si, uma visão reducionista do conceito de esporte, que teima considerá-lo tão somente aquilo que se convencionou classificar como tal. Ignoram, dessa forma, que o desporto é um conceito em constante evolução na história da humanidade. Quantos esportes novos não surgiram com o passar dos anos? O fato de o taekwondo ter sido incluído no rol de esportes olímpicos apenas nas Olimpíadas de Sidney (Austrália), em 2000, não fez de sua prática “esportiva”; ela já o era mesmo antes desse reconhecimento, como as demais artes marciais também o são. Aliás, se uma dada modalidade de artes marciais é incontestavelmente um tipo de “esporte”, a exemplo do jiu-jitsu, do judô, do caratê etc., porque a mistura de todas elas não o seria?
          É preciso, portanto, superar essa visão reducionista do conceito de esporte, que visa assim qualificar tal ou qual modalidade, em geral de maneira tanto mais arbitrária quanto irrefletida. O MMA é produto da evolução da prática do desporto. É, sim, esporte extremo (o mais extremo dos esportes de combate). É, sim, violento, mas dentro de parâmetros aceitáveis, com regras bem definidas, as quais tem por objetivo preservar a integridade física do atleta – ainda que em alguns momentos a plasticidade brutal dos golpes desferidos contra o oponente possa vir a chocar o brio dos mais sensíveis.
          De minha parte, sou assumidamente fã de MMA. Não nego: é meu esporte favorito. Por sinal, o único cujo noticiário especializado e lutas televisionadas acompanho regularmente, além de, sempre que minha agenda profissional e acadêmica permite, frequentar alguns eventos pela cidade. Como admirador das artes marciais mistas, as críticas que visam a desqualificar sua prática enquanto “esporte”, buscando preconceituosamente diminuir sua importância ao vinculá-la à brutalidade apelativa, nunca me tomaram muita atenção. Definitivamente não me fizeram deixar de apreciar o esporte extremo. Quis, no entanto, escrever sobre o tema, pois me incomoda o conservadorismo acrítico de quem deseja “colocar um freio no curso da história”. E, como tentei demonstrar neste artigo, sequer refletindo suficientemente sobre os fundamentos de sua crítica.
          O MMA é esporte, sim. E é esporte de artes marciais como qualquer outro. Apenas foi concebido sob um prisma novo (fusão de modalidades de combate), com sistema de regras próprias, ganhando tanto mais adeptos quanto mais os desportistas notam que sua prática não é perigosa para aqueles que o fazem de maneira profissional. Negar ao MMA a pecha de “esporte”, acusando-o disso ou daquilo, não é senão produto da má vontade daqueles que insistem em não reconhecer que as atividades esportivas encontram-se em constante evolução, como de resto o próprio homem está também. Novos esportes, assim, sempre surgirão. O “mixed martial arts”, nesse sentido, é apenas mais um deles.     

REFERÊNCIAS

DINES, Alberto. A indústria decidiu naufragar. Observatório da Imprensa. São Paulo, 24 jan. 2012. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_industria_decidiu_naufragar. Acesso em: 07 fev. 2012.