quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Caso Escola Base: 20 anos depois, o linchamento moral continua

► Aviso ao leitor: o artigo abaixo foi publicado originalmente no blogue Metamorfose do Mal no dia 08 de abril de 2014.

Em São Paulo, na Escola de Educação Infantil Base, dá-se um crime bárbaro. O casal de proprietários – Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada – aproveitava-se da sua condição de educadores, para abusar sexualmente de crianças. Para cometer o delito hediondo, eram ajudados por Maurício Alvarenga, o perueiro pervertido que transformava sua Kombi em motel. A Escola Base, na verdade, era a “escolinha do sexo”.

Há 20 anos, em março de 1994, manchetes sensacionalistas desse tipo, escritas em tom categórico, monopolizavam o noticiário policial do País. O “Jornal Nacional”, da Rede Globo, exibia a primeira reportagem a respeito de uma acusação gravíssima de estupro de crianças. Duas mães haviam procurado uma delegacia. Elas alegavam que seus filhos, de apenas quatro anos, tinham sido vítimas de abuso sexual na escola onde estudavam. E apontaram o casal Shimada - com a cumplicidade de Maurício Alvarenga e sua esposa Paula Milhem, professora e sócia da instituição de ensino - como sendo os responsáveis pela prática criminosa. Era o início do erro mais marcante da história recente do jornalismo brasileiro: o caso da Escola Base.      

A importância desse episódio consiste na sucessão de erros cometidos na cobertura do caso. Desde o sensacionalismo na descrição dos fatos até a convicção de culpa, tudo conspirou para que a imprensa brasileira caísse na armadilha mais perigosa do jornalismo: a de noticiar fatos sem os investigar, a de confiar na versão oficial das autoridades. Sim, pois um jornalista que divulga informações sem averiguar sua autenticidade não é um verdadeiro jornalista, senão um “moleque de recados” dos mais irresponsáveis. E foi exatamente assim que procedeu a imprensa brasileira no caso da Escola Base. Agiu como “moleque de recados” do delegado Edélcio Lemos, um sujeito histérico e absolutamente despreparado para o exercício do seu cargo, que, à época, fazia questão de vir a público, diante dos holofotes e das câmeras de TV, afirmar, peremptoriamente, que o casal Shimada, bem assim todos os demais acusados, eram pedófilos, abusadores sexuais, gente da mais alta periculosidade. O resultado não poderia ser pior: dias após o início do estardalhaço, o inquérito foi arquivado por falta de provas. Todos os acusados foram inocentados.   

Manchete sensacionalista de um dos jornais que, em 1994, cobriram o caso da Escola Base em São Paulo: condenação sumária e sem direito de defesa dos acusados, linchamento moral perpétuo.

Mas a comprovada inocência dos acusados não era mais capaz de desfazer o linchamento moral a que haviam sido submetidos pela imprensa brasileira. A Escola Base, um sonho antigo do casal Shimada, faliu. No muro, as marcas das pichações enfurecidas: “Queremos Justiça!”, “Estuprador”. Na vida dos acusados, que haviam sido condenados pela mídia, de forma sumária e sem direito de defesa, a marca indelével do sofrimento e da eterna humilhação. Não é fácil superar a mácula de tornar-se nacionalmente conhecido como pedófilo. A bem da verdade, socialmente, é quase impossível apagar a má fama. O processo penal tem início, meio e fim. Mas, mesmo quando inocentado o réu, o linchamento moral perante a sociedade permanece. O poder da imprensa, quando empregado para o assassinato de reputações, é altamente destrutivo.    

Hoje, vinte anos depois do ocorrido, a ombudsman da Folha de São Paulo, Suzana Singer, declara em seminário que a imprensa brasileira amadureceu após o caso da Escola Base. Em parte, ela tem razão. O amadurecimento veio, ainda que de modo traumático, ante a observação das consequências desastrosas que a divulgação leviana de um caso criminal pode acarretar. No entanto, é preciso tomar cuidado ao afirmar tal maturidade. Não basta conjugar o verbo no futuro do pretérito ao descrever uma ação criminosa, tampouco é suficiente acrescentar o adjetivo “suposto” ao referir-se a alguém acusado da prática de um crime. Mudanças redacionais são paliativas. A propalada maturidade do jornalismo brasileiro após o caso da Escola Base, se existe mesmo, só se verifica ante uma mudança necessária de postura profissional. Já não se pode admitir que um jornalista publique sem investigar, sem apurar, sem proceder ao exame das acusações que são feitas. Um jornalista não se pode contentar com a opinião de um delegado ou de um promotor. Esses profissionais não são portadores da verdade. São representantes do Estado – uma entidade que é cheia de falhas e muita vez parcial. É dever do jornalista não acreditar cegamente no que lhe dizem, é seu dever profissional sempre desconfiar. Não importa se quem o diz é o presidente, o papa, Jesus Cristo. Muito menos um delegado. O bom jornalismo – um jornalismo que se possa considerar “maduro” – é aquele que não age como um veículo de fofocas, direcionado à repercussão antiética de boatos. Jornalista tem de ir a fundo na investigação dos fatos, escavar o detalhe que passou despercebido pelas autoridades, a nuance que pode alterar o ânimo do jogo. Creio que só assim se pode falar em amadurecimento da imprensa brasileira. Só assim se poderá evitar, vinte anos depois, que o caso da Escola Base se repita e destrua a vida de outras pessoas.