sexta-feira, 11 de outubro de 2013

INTRODUÇÃO AO VIOLÃO ERUDITO: "Latino" (2012), de Milos Karadaglic


  
Não é fácil ouvir violão erudito. Popular por excelência, até pela sua manifesta portabilidade, a maioria das pessoas está acostumada a tratar a guitarra (ou o violão, denominação peculiar que recebe no Brasil) como aquele instrumento que "todo mundo arranha", que é bom para levar para um luau na praia, para o churrasco da turma da faculdade. Há também os que o utilizam como um recurso a mais na hora de conquistar uma garota. E ainda há os que tiram seu sustento dele, seja porque o violão é, em geral, o instrumento do músico que toca nos bares que animam a vida citadina noturna, seja porque, não raro, há nas praças dos grandes centros alguém a tocá-lo por uns trocados. Nada disso é ruim, evidentemente. Música é uma das melhores coisas da vida - e é bom que as pessoas queiram cultivá-la. Entretanto, num contexto como esse, fica difícil supor que o violão possa ocupar algum lugar no mundo da música erudita.       

Apesar disso, ele ocupa. E um lugar importante. É fato que durante muito tempo houve forte rejeição ao instrumento nas salas de concerto, com a historiografia a lembrar-nos de que os seus tocadores eram mal vistos em sociedade, a atrair a pecha desonrosa do desocupado, do vadio, dos valdevinos. Não fosse o portento da pesquisa musical desenvolvida pelo violonista espanhol Andrés Segovia no século XX, a contribuir para o estabelecimento de um repertório violonístico digno de concertistas, a aceitação do instrumento no mundo musical erudito talvez sofresse uma resistência ainda maior.  

Porém, não é para tratar da história do violão que escrevo. Desejo, isto sim, comunicar-me com o leitor que se interessa pela música erudita. Como começar a escutá-la ao violão? Eis o que questionamento que ora me proponho.   

Um bom começo


Nesse sentido, penso que a oitiva precipitada de algumas obras de compositores renomeados do violão, como os prelúdios de Abel Carlevaro, os estudos de Benjamin Dwyer ou até mesmo a suíte "Rememórias" de Marlos Nobre, dada sua exploração instrumental, a trabalhar com sonoridades e timbres em perspectiva, pode causar algum estranhamento ao ouvinte leigo. A consequência previsível seria a rejeição à sonoridade, pois, como disse, diferentemente de piano e violino, não é fácil aceitar o violão como um instrumento do time erudito - inclusive no plano auditivo.

Em vista disso, penso que calha ao perfil introdutório o álbum Latino, do violonista montenegrino Milos Karadaglic, lançado pelo selo alemão Deutsche Grammophon em 2012. São dezesseis faixas extraídas de partituras que considero de fácil audição. Um exemplo é "Libertango", do argentino Astor Pizzolla. Por se cuidar da composição que abre o disco, ela dá ao ouvinte uma boa mostra da direção musical adotada pelo arranjador, maestro e produtor Christoph Israel: composições latino-americanas conhecidas do grande público, em releituras com arranjos violonísticos muita vez acompanhadas de orquestra. Assim é que, na faixa cinco, deparamo-nos com a conhecidíssima melodia do tango "Por Una Cabeza", de Carlos Gardel, que o solista executa acompanhado da Studioorchester der Europäischen FilmPhilharmonie. E a presença da música argentina não para por aí, pois há ainda "Oblivion", também de Piazzolla, além de "Milonga", peça composta por Jorge Cardoso e extraída do famoso livro 24 Piezas Sudamericanas.  

Mas nem só da Argentina vive o álbum. Coerente com seu propósito de repertoriar a música latino-americana, Milos Karadaglic interpreta ainda obras de compositores do México (Scherzino Mexicano e Canción - Andante, de Manuel Maria Ponce), do Paraguai (Un Sueño En La Floresta e Una Limosna Por El Amor De Dios, ambas de Agustín Barrios Mangoré) e do Uruguai (La Cumparsita, de Gerardo Matos Rodriguez, e Batucada, oriunda da série Cenas Brasileiras, de Isaías Savio). A música cubana, por sua vez, comparece com a popular Quizas, Quizas, Quizas, de Osvaldo Farrés, além de uma das minhas músicas favoritas, a soturna Un Dia De Noviembre, assinada nada mais nada menos que pelo genial Leo Brouwer - o maior compositor vivo do violão erudito. Obviamente, como uma das mais importantes escolas do violão mundial, o Brasil não poderia ficar de fora do repertório. Assim é que o maestro Heitor Villa-Lobos aparece no repertório com o Prelúdio nº 1 em Mi Menor e a Mazurka-Choro da Suíte Popular Brasileira. Nem poderia ser diferente, já que Villa-Lobos não só é o maior músico de toda a história do Brasil como também é um dos artistas mais importantes do século XX.   


Dessa maneira, Milos Karadaglic executa em Latino composições típicas do repertório violonístico erudito com outras bastante conhecidas do grande público. Sua execução competente cumpre, assim, o propósito de repertoriar a música latino-americana, como ainda tem o mérito de proporcionar ao ouvinte leigo um álbum acessível de violão erudito. Logicamente, sempre haverá aquele ouvinte "purista", a torcer o nariz para alguém que se proponha a reler canções populares em um ambiente de extremo rigor sonoro - tal qual é o mundo erudito. Quem, todavia, não permitir que seu ouvido fique empedernido, encontrará em Latino um bom começo para iniciar-se na arte maravilhosa da ouvida do violão erudito.

 
 
 

domingo, 6 de outubro de 2013

Tiago Tiroteio




Ele acordou às seis da manhã. Recolheu a farda do varal, que ficava num canto escondido da casa. No uniforme, um nome: Tiago. Soldado da PM. Seu filho nunca entendeu direito o porquê de o pai precisar esconder a própria farda. “É perigoso onde a gente mora”. Uma afirmação dessas era o bastante para confundir o garotinho, que olhava para o pai fardado como quem vê um desses heróis dos gibis.

Mas Tiago não alimentava os sonhos infantis do filho pequeno. Porque nem mesmo ele sabia por que era policial. Desemprego? Falta de opção? “Dinheiro com certeza não é. Policial no Brasil ganha salário de fome”, ele sempre dizia para si mesmo. Inerte, quedava-se naquela rotina – ponto culminante de um calendário vital violento, no qual Tiago, diferentemente do seu filho, não via nenhum heroísmo.
Saía às ruas todos os dias à cata de bandidos. No início, até flutuava em devaneios soberbos, empolgado ao portar uma arma, altivo com a ideia de se tornar uma autoridade, um homem da lei. Depois veio a frustração. A viatura velha vivia quebrada, o revólver sem balas, e o soldo que mal dava para sobreviver. Umas más companhias lhe diziam que o jeito era “tirar por fora”. E não foram poucos os colegas de farda que Tiago viu se aliarem ao crime. “Dinheiro é foda, compra todo mundo”. Ele, no entanto, procurava manter-se afastado da linha frágil que separa o policial corrupto do bandido; nessas horas, pensava sempre no seu filho. E resistia.

Só não conseguia resistir à violência da sua rotina. Prisões, agressões, empurrões. Aprendeu no quartel que é “na porrada” que se lida com bandido, que bandido só conhece a linguagem do cacete. Ou do cassetete. Lembrou-se do seu primeiro dia na rua, em como ajudou um colega a prender uma mula do tráfico. Era um moleque franzino, nos seus dezesseis anos de idade. Estava algemado, poderiam ter parado por ali. Mas o colega veterano discordou: “Agora é que vem a parte boa do negócio; ele vai aprender uma lição”. Tiago perdeu a conta de quantos socos e pontapés o moleque levou até ficar desacordado. Mas os gemidos de dor que escutou naquele dia ainda ecoam na sua mente todas as vezes que coloca a cabeça no travesseiro, como um convite terrificante e permanente, um aval para bater, uma licença para espancar.      
  
A violência rapidamente o seduziu. Tiago percebeu naquela adrenalina de socos e pontapés uma espécie de compensação física para sua vida frustrada e sem sentido. Nunca teve senso de dever policial – provavelmente nem saberia, se perguntado, definir o que é dever. A violência, por outro lado, não precisa de definições. Apenas é sentida toda vez que aquele que apanha sofre com as dores no corpo, nos olhos esgazeados da vítima, no semblante de terror diante do algoz imponente. Aquilo trazia a Tiago um alívio imediato. Era um elixir para a sua frustração cotidiana. A violência era o seu heroísmo.

Assim as sessões de espancamento entraram na sua rotina de trabalho. Se o salário de fome no fim do mês mal dava para pagar as contas, pelo menos havia a compensação da violência. “É bandido, tá valendo”. Tiago batia sem dó nem piedade. Seu parceiro inseparável era o cassetete, que usava amiúde, como uma ferramenta brutal de sevícia. No quartel, de forma irônica, apelidaram-no de “tiroteio” justamente por não gostar de usar o revólver. “Bala acaba rápido com a diversão”, ele dizia. E repetia para si próprio sem se preocupar em disfarçar um sorriso largo no rosto: “Eu gosto é de moer na pancada”.   
 
Certa vez Tiago participou duma patrulha que prendeu uma vendedora de DVDs piratas numa favela. Segurou-a com força pelo braço, impedindo-a de correr e fugir. A mulher se disse injustiçada, que tinha filho doente, que o marido estava preso e por isso precisava trabalhar. Tiago ouviu o apelo, porém não se apiedou. Para ele não importava o que ela tinha feito, se era legal ou ilegal. Não importava nem mesmo a prisão. Tudo era oportunidade para bater, para espancar. Tiago só queria sentir, extático, aquele alívio tremendo que lhe dava a violência, o elixir de todas as suas frustrações. E bateu tanto e com tanta violência naquela mulher que precisou ser contido pelos colegas de farda. “Tu tá louco! Vai matar ela!” Tiago respirou fundo. Quando começava a bater com seu cassetete, perdia a noção da realidade, como se estivesse entorpecido por algum tipo de droga incendiária dos pulmões, a dar-lhe um fôlego iracundo e infinito. A violência era adrenalina pura.   

Finalmente veio um protesto de professores. Estavam em greve, queriam melhores salários. Quando entrou na polícia, Tiago sempre viu com bons olhos esses movimentos. Achava justo, afinal, também ganhava pouco e lamentava militar não fazer greve. Mas o soldado apelidado de Tiroteio era outro. Não mais refletia, não mais raciocinava. Como um boi raivoso, vivia sob um jugo que o atrelava à carroça de pensamentos violentos. Só pensava em bater. Só pensava em espancar.

Então olhou para o lado, viu o capitão dar o sinal. Era a ordem de avanço. À sua frente, algumas centenas de professores tentavam invadir, com faixas nas mãos, a Câmara de Vereadores. Tiago podia ter-se contido, podia ter gritado, até mesmo empurrado os invasores. Mas preferiu sacar da cintura seu cassetete. Com a carranca frenética de um doido, agiu como um policial descontrolado, que sentia o cheiro da violência como o de uma saborosa refeição. Pôs-se a bater, a bater e a bater.
Qualquer um na sua frente era alvo de pancada, não importava se homem ou mulher, se velho ou novo. Naquele momento Tiago não enxergou os professores, nem suas faixas, nem ouviu quando o capitão ordenou que ele parasse de bater. Só viu aumentar sua felicidade à medida que aumentava o grau de violência. Ali ele era um drogado, a aspirar a atmosfera dolorosa de gritos e gemidos, o ar de dor, muita dor, que circundava os olhos de quem ele espancava, que exalava o corpo de quem ele atingia com o cassetete. Ali já não era policial, já não tinha farda, já não pensava mais no seu filho. Porque naquela violência imotivada ele se sentia feliz, Tiago já não tinha nada. Era puro heroísmo.