domingo, 30 de novembro de 2014

UM ARTISTA EM BUSCA DE SUA PRÓPRIA VOZ: "David Fray: J.S. Bach - Swing, Sing and Think" (2008), de Bruno Monsaingeon



Quem gosta de música, porém nunca teve uma experimentação profissional na área, dificilmente pode ter a exata percepção do quão exigente é o processo de gravação de uma obra musical. O artista que se arvora a lançar um álbum deve preparar-se regiamente em sentidos os mais variegados: na escolha do repertório, no tratamento dado pela direção musical, na definição dos grupos ou músicos que participarão da gravação e em quais faixas. Todos esses elementos precisam ser devidamente articulados, sob pena de o resultado final resultar inócuo - na melhor das hipóteses - ou ruim - na pior das hipóteses.

É claro que minhas observações reportam-se ao artista versado em música erudita, cuja seriedade no tratamento da arte musical é patente. Não que não haja seriedade no âmbito da música popular. Não se trata disso. Apenas o apelo da indústria fonográfica, voltado à produção de pseudoartistas comprometidos com o fabrico do dinheiro, muita vez compromete esse processo. Assim, ressalvadas algumas exceções, na música popular, o mais das vezes, a gravação termina por se cuidar de um processo inconsciente, ditado menos pela verve proposital-conceitual do artista que do produtor musical – especializado em vender álbuns e colocar hits nas "paradas", não importa o quão tosco e amador seja o resultado final.  

Como quem trabalha com música erudita lida com um mercado consumidor bem menos rentável que o da música pop, associado ao fato de que ouvinte típico desse estilo é infinitamente mais exigente, resta ao músico o fardo de encontrar sua própria voz em meio a um vasto rol de intérpretes – cada um melhor que o outro. E isso definitivamente não é tarefa fácil.

É no rastro desse afã que acomete todo grande artista, no sentido de imprimir sua própria assinatura à interpretação de uma obra conhecida, que se deve apreciar o DVD “David Fray: J. S. Bach – Swing, Sing & Think”, dirigido pelo documentarista Bruno Monsaingeon. O documentário acompanha as sessões de gravação do primeiro álbum do jovem e virtuoso pianista francês David Fray, focado em três dos mais famosos concertos bachianos para piano e orquestra. Ocorridas em janeiro de 2008 para o selo Virgin Classics, as sessões de estúdio captadas pelo filme permitem ao expectador apreciar o esforço que envolve a atividade de um jovem músico erudito em busca de afirmação artística, máxime de um artista em busca de sua própria voz.

Dessa maneira, a busca de Fray é mostrada pelo diretor sob ângulos distintos: na casa do pianista em Paris e no estúdio de gravação ao lado da “Deutsche Kammerphilarmonie Bremen” - uma das mais respeitadas orquestras de câmara de toda a Europa. Em ambos os momentos, procura-se mostrar o quão exigente é o artista na definição de uma identidade única à intepretação do repertório. Sobretudo se considerarmos que o pianista se propõe a gravar três dos mais famosos concertos de J. S. Bach (Concerto nº 4 em Lá Maior, BWV 1055; Concerto nº 5 em Fá Menor, BWV 1056; Concerto nº 7 em Sol Menor, BWV 1058), a responsabilidade aumenta inda mais. Como dar à sua gravação a autenticidade inerente ao trabalho do verdadeiro artista? De que interpreta uma obra do barroco alemão largamente conhecida e executada pode ser recriada pelas mãos de um jovem músico erudito?

Monsaingeon centra seu documentário na resposta a essas perguntas. Assim, o que se observa durante mais de uma hora é o esforço admirável de um jovem talento da música erudita em busca de sua própria voz artística. É maravilhosa a experiência de ver o pianista a fazer observações para a orquestra de câmara que o acompanha nas sessões de gravação, a mostrar-nos que a inteligência musical não pode (não deve) esgotar-se na mera execução da mecânica pianística. Vai além e requer uma compreensão profunda da obra que se pretender interpretar - algo que invariavelmente não está gravado nas partituras do século XVIII e só se pode adquirir após audições atentas da estética barroca. O filme registra todo o processo: os ensaios exaustivos, os momentos de discussão, até aqueles mais descontraídos (muito instigados pela excentricidade do jovem pianista).

O grande mérito do documentário é, afinal, permitir que o espectador possa adentrar um momento raro no processo de consolidação de uma carreira artística, isto é, a gravação de um álbum. A câmera esperta de Monsaingeon flagra esse momento íntimo de David Fray. Seja na privacidade do seu lar em Paris, seja em estúdio com a Orquestra de Câmara de Bremen, pode-se ter uma visão privilegiada da cabeça do artista, que não apenas domina a partitura, mas também se vê obrigado a conduzir a interpretação orquestral da maneira que lhe parece coadunar com sua “voz”, aquela identidade única que torna um músico digno de respeito e admiração.
 

POR QUE ESTUDAR MÚSICA?: crítica sobre a interpretação desastrosa da "Fantasia VII" de John Dowland pela violonista Alberta Khoury


Certa vez um colega de classe, indolente e rebelando-se, perguntou à minha professora de teoria musical no conservatório: "Qual a finalidade de se estudar disciplinas como estética e história da música?" A professora respondeu em tom resoluto: "Para que o músico possa atingir o grau de educação exigido pela arte feita com qualidade, que lhe permitirá inclusive diferenciar a 'interpretação' da mera 'execução'". Aquela resposta permaneceu durante muitos anos na minha cabeça. E, posto que nunca tenha me insurgido contra o estudo dessas disciplinas formativas (antes o contrário, sempre amei estética e história da música!), foi preciso alguns anos para que eu pudesse amadurecer aquela ensinança.
Pois bem. Hoje, um amigo músico de longa data enviou-me um vídeo no qual uma violonista estrangeira (seu nome é Alberta Khoury) toca uma das minhas peças renascentistas favoritas: "Fantasia VII", do alaudista inglês John Dowland. Ao assistir ao vídeo, de chofre, lembrei da discussão em classe. Percebi que, agora, ela fez todo o sentido para mim.
A musicista tem talento. Disso não resta dúvida. Mas é como um diamante bruto que, devido a uma formação musical capenga, põe-se a executar uma peça do Renascentismo inglês sem absolutamente nenhuma consciência do período histórico da música para o qual se volta. O resultado é um amontoado de notas incompreensíveis, cuja expressão musical é duma ligeireza praticamente inaudível.
         A
o vê-la tocar, um leigo poderia deixar-se impressionar facilmente com sua velocidade. Afinal, a celeridade mecânica nas manipulação de escalas, quase como uma corrida olímpica com os dedos, tem o efeito correntio de assombrar o não iniciado no estudo da música (Nossa! Tu viste como ele toca rápido! É um gênio!). Mas qualquer pessoa com um mínimo de educação musical sabe que a velocidade só faz sentido quando à serviço da expressão musical; fora disso, é reles pirotécnica para "ouvidos destreinados".
É o que ocorre nesta execução de Dowland por Alberta Khoury. Estamos diante duma abordagem desastrosa, verdadeiro desrespeito aos padrões estético e histórico da música erudita renascentista. Pelas mãos dessa violonista, a peça de Dowland não está a ser interpretada; antes o contrário, é apequenada, convertida num exercício maquinal e mecânico de escalas no braço do instrumento. Sobra destreza na manudução da partitura; falta, porém, o essencial: interpretação, expressão artística da linguagem musical do período elisabetano. Uma lástima, principalmente para aqueles que, como eu, veem em John Dowland um dos seus compositores favoritos.   
Portanto, fica a lição para os jovens aspirantes a fazer arte pela música: não se limitem ao estudo da partitura. Estudem também as disciplinas humanísticas. São elas que, ao fim e ao cabo, fazem do músico erudito um tipo raro de artista, alguém que não se limita a ser mero executor mecânico de figuras musicais no pentagrama, alguém que se pode identificar como um artista completo, profundo conhecedor do seu ofício nos campos mais variegados do conhecimento artístico.
           Abaixo, reproduzo a execução (e não interpretação!) desastrosa da violonista.

sábado, 29 de novembro de 2014

MÚSICAS QUE RECOMENDO: "Fantasia nº 7" de John Downland (1563-1626) - Uma homenagem ao violonista Vinícius Linhares


No último dia 27 de novembro, meu primo, Vinícius, que é violonista erudito e professor de violão, fez aniversário. O primo Vinny, como é conhecido na família, não é dado a festejos grandiloquentes, preferindo a companhia reservada de sua família e do seu violão. Apesar disso, decidi prestar minha homenagem ao seu aniversário aqui no meu blogue dedicado ao jornalismo cultural, em face, sobretudo, da importância vital que nossa amizade teve (e ainda tem) na minha vida.

Tudo começa com nossas biografias. São muito semelhantes. Ele, como eu, sempre teve um pendor para a arte erudita, e precisou, também como eu, aprender muito jovem a acreditar acima de tudo nas coisas que ama. Esse amor incondicional pela arte erudita foi nosso baluarte de resiliência, nossa única defesa, aprendida de maneira empírica, contra as “trevas do LIXO cultural” a que é tipicamente submetido um adolescente no Brasil, cujos ouvidos se põem a sangrar, vitimados pelo pagode, axé, forró elétrico, funk carioca, sertanejo universitário, rock colorido e toda sorte de picaretagens musicais que empresários inescrupulosos da indústria fonográfica produzem no País para o consumo de jovens imbecis, pessoas de baixíssimo nível cultural e analfabetos em música.

Como eu, Vinícius também passou sua adolescência a estudar intensamente música erudita. Enquanto nossos pares de juventude iam praticar rituais tribais de “pegação neandertal” em micaretas de axé music ou se punham fantasiados em festas de Carnaval (que sempre detestamos), ao som de músicas que ora enalteciam as nádegas como o bem supremo de uma mulher (que visão machista ridícula!), ora hasteavam a bandeira duma ideologia hedonista medíocre da vida (carpe diem do lixo e da autofagia de cérebros), nós estudávamos oito horas por dia de violão e líamos compulsivamente toda sorte de livros e partituras que catávamos na biblioteca do conservatório. Depois, no nosso tempo livre, íamos a concertos, para ver as grandes orquestras e os mestres da música em ação, para saber qual o estágio do domínio técnico a que poderíamos um dia chegar. E quando estávamos apaixonados por alguma garota, aí exercitávamos nosso romantismo a ouvir as serenatas que Dilermando Reis gravou em parceria com o cantor Francisco Petrônio. Como se vê, o que fazíamos, cada qual à sua maneira, era absolutamente impensável para a quase totalidade das pessoas da nossa idade. Mas essa foi a nossa história de vida. Acima de tudo uma história de resistência, de saber quem se é desde muito cedo e acreditar naquilo. Quantos jovens, como nós, não se perderam no meio do caminho? Quantos não cederam aos impulsos vulgares medíocres? Quantos simplesmente se venderam e juntaram-se aos filões de pseudoartistas da estrumeira que monopoliza o espaço da televisão no Brasil?    

Vinícius, desse modo, foi sempre um apoio permanente nessa luta contra o kitsch e um exemplo para mim. Um irmão de fé, necessário, imprescindível, uma das poucas pessoas com quem eu podia conversar sobre tudo que eu sempre amei (filosofia, poesia, literatura, artes plásticas e, claro, música) sem o temor de experimentar a terrível sensação de “vergonha alheia” que acomete todo aquele que gosta de arte e tem de ouvir de seus pares afirmações patéticas como “Ivete Sangalo é grande cantora” ou que “Luan Santana e Gusttavo Lima cantam bem” ou que “Michel Teló é um poeta” e as bandas de pagode dor-de-corno “deixaram saudade”. Sem dúvida, não foi fácil sobreviver fiel à arte erudita em meio ao assédio despropositado e prenhe de estultice de uma geração inteira de imbecis.

Mas sobrevivemos. Sobrevivemos aos nossos pares, ao destino trágico de toda nossa geração, nascida sob o signo da espada injusta que condena - impiedosa e crudelíssima - o néscio ao lixo da cultura. E hoje estamos aqui. Eu segui para a carreira jurídica. Ele se profissionalizou na música e hoje leciona e dá concertos com seu violão. Não obstante, a música continua a nos unir. Somos utentes incontrastáveis da nossa fé na arte.  

Por isso que, retomando a seção “Músicas que eu recomendo” no blogue Metamorfose do Mal, gostaria de indicar a gravação da “Fantasia nº 7”, do alaudista inglês John Dowland, que Vinícius fez em seu domicílio. Esse registro é-me especialmente significativo, pois Vinícius gravou-o a meu pedido, já que a música renascentista, tal qual a barroca, sempre foi a maior das minhas paixões (Sir. John Langton's Pavan é a trilha sonora da minha vida!). E Dowland foi o maior gênio musical do Renascentismo na história da humanidade.

Parabém, primo Vinícius! Obrigado por todos esses anos de amizade!

E um dia ainda formaremos o nosso duo de violão erudito! Quem viver verá!

sábado, 15 de novembro de 2014

O FAZEDOR DE AMANHECER QUE APANHAVA DESPERDÍCIOS: uma homenagem ao poeta Manoel de Barros (1916-2014)

 
Manoel de Barros nasceu no dia 19 de dezembro de 1916 em Cuiabá, no Estado do Mato Grosso. Cresceu numa propriedade rural, em meio a animais e a típica cultura interiorana. Isso explica a profunda ligação de sua poesia à terra e às coisas do campo. Formou-se em Direito, é verdade. Mas a única profissão que verdadeiramente abraçou na vida foi a do artesão dos versos. Manoel de Barros nasceu poeta: tinha uma raríssima sensibilidade para transcrever em palavras as pequenezas da vida.

A estreita ligação de Manoel de Barros à vida camponesa encontra-se ilustrada na entrevista que deu ao documentarista Pedro Cézar, que dirigiu o longa “Só dez por cento é mentira”, de 2008. “Meu pai me sustentou muito tempo. Também me dava tudo errado. Arranjei vários empregos. Trabalhava um pouco, achava chato, desistia. Passei dez anos no Pantanal com a minha mulher. Depois de dez anos eu consegui que a minha fazenda desse renda pra eu ficar à toa. Significa o seguinte: ficar à toa era eu ficar à disposição da poesia. Então eu comprei o ócio. Aí que eu pude ser o vagabundo profissional como eu sou agora”, declarou o poeta.

Mas a declaração de Manoel de Barros revela também uma compreensão profunda do fazer poético – e uma concepção peculiar de arte. Como que a retomar o aforismo prefaciado por Oscar Wilde em “O Retrato de Dorian Gray”, no qual o dramaturgo irlandês sentenciou que “Toda arte é absolutamente inútil”, Manoel de Barros admite a inutilidade do seu ofício do ponto de vista pragmático. Dando de ombros às ambições materiais do mundo, recolhe-se à paisagem que se torna assim a moldura da sua vida. Eis o quadro que ele se põe a pintar em versos delicados, que vão compondo neologismos com os quais subverte convenções da gramática normativa culta à medida que revela ao mundo sentidos prenhes de uma especial sensibilidade campônia. Na grandeza da sua simplicidade, Manoel de Barros precisou reinventar a própria língua e fazê--la menos complicada, torna-la menos "prestável", menos "útil".

Nesse sentido, Manoel de Barros foi um poeta revolucionário na Literatura brasileira. Fez da linguagem o campo minado de sua recusa à mesquinheza do mundo urbano cúpido. Anunciando a si próprio como um vagabundo, um não-trabalhador, o poeta se punha, humílimo, ao serviço de sua arte, agora também sua profissão inútil. Insciente de sua relevância artística, ou propriamente não se importando com vãos vaidosismos, fazia apenas o que gostava. E como todo grande homem das letras gostava de escrever. Então escrevia sobre o mundo em que vivia, sobre a natureza do Pantanal junto ao qual crescera e que amava. Escrevia e cuidava de cinzelar a linguagem. Seu propósito era um só e muito simples: apanhar os desperdícios deixados por uma existência humana depauperada de sensibilidade, de beleza, de felicidade. A felicidade que o poeta não encontrava no agito da vida citadina, com suas disputas intermináveis por status egóicos, contracheques pragmáticos, maquinarias úteis. O poeta banhava-se na placidez desimportante da chuva, ouvia música na sinfonia magnânima do coaxar dos sapos num regato. Manoel não precisava frequentar aeroportos para voar em aviões; ele tinha seus insetos. Nunca se apressava como o homem que corre para bater o ponto na repartição. Manoel andava lento como as tartarugas e falava o sotaque impronunciável das águas.

Foi esse o poeta que quis renovar o homem usando borboletas, admitiu ouvir o tamanho oblíquo de uma folha; ousou amar os restos como as moscas, a celebrar a riqueza da própria incompletude. Foi esse o poeta que na sua obra confessou ter desapetite para inventar coisas prestáveis, ter sido aparelhado para gostar de passarinhos, a regozijar-se com o que aprendera di-menor com a natureza. E, reconhecendo que seu quintal é maior que o mundo, para usamento de todos os poetas, versificou com a simplicidade sentimental que sempre foi peculiar à poesia de um fazedor de amanhecer: tenho abundância de ser feliz.

sábado, 8 de novembro de 2014

POEMAS QUE LEIO, POETAS QUE ADMIRO: "I primi che si amano", de Pier Paolo Pasolini (1922-1975)

 
Muito conhecido por seus filmes, o italiano Pier Paolo Pasolini foi também um intelectual de obra multifacetada. Participou ativamente da vida pública, tentando conciliar três característicos inarredáveis da sua personalidade: era cristão, marxista e homossexual assumido. A conjugação desses fatores tornou-o uma figura controversa, sobretudo na Itália fascista onde cresceu e viveu. É célebre a celeuma em que se envolveu nos jornais da época, quando, acusado por Italo Calvino de ingenuidade e saudosismo do mundo pré-burguês, escreveu a sua famosa “Carta aberta a Italo Calvino”, onde rebateu as críticas às suas posições políticas e estéticas, a sentenciar lindamente seu rechaço à crescente superfluidade do consumismo no mundo. “Aqui fique claro que os bens supérfluos tornam supérflua a vida”, escreveu Pasolini. (Ao leitor interessado nesse debate intelectual, a versão integral da carta pode ser lida em: PASOLINI, Pier Paolo. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013. Prefazione di Alfonso Berardinelli. Settima ristampa).

Contudo, além de cineasta, ativista político e intelectual público, Pasolini foi também poeta de grande talento. Sua obra inclui, por sinal, vários livros de poesia. Infelizmente quase todos eles ainda carecem de tradução no Brasil. Assim, ao leitor brasileiro resta socorrer-se das obras no original em italiano, a exigir obviamente o domínio do idioma, ou das traduções publicadas em Portugal.

Abaixo, separei o poema “I primi che si amano” (no original em italiano e na tradução para o português realizada por Rubens Zárate) qual homenagem a esse grande intelectual italiano, cuja carreira cessou ante seu assassinato brutal no ano de 1975. O poema que destaco foi publicado no livro “Teorema”, de 1968, e revela a força de versos que denunciam o hermetismo da arte inacessível – uma das polêmicas, entre tantas outras, nas quais Pasolini meteu-se, a destacar a “vanguarda histórica” dos anos sessenta do século XX e seu espírito libertador das "fotografie ingiallite" dos "poeti i pittori dela generazione precedente".  

I primi che si amano

I primi che si amano

sono i poeti e i pittori della generazione precedente,

o dell'inizio del secolo; prendono

nel nostro animo il posto dei padri, restando,

però, giovani, come nelle loro fotografie ingiallite.

Poeti e pittori per cui l'essere borghesi non era vergogna.

figli in vigogna e feltri...

o povere cravatte che sapevano di ribellione e di madre.

Poeti e pittori che sarebbero divenuti famosi

verso la metà del secolo,

con qualche amico sconosciuto di grande valore,

ma, forse per paura, disadatto alla poesia,

(poeta vero morto fuori dagli anni).

Selciati di Vienna o Viareggio! Lungofiumi

di Firenze o Parigi !

Fatti risuonare con quei piedi di figli

calzati di grosse scarpe.

La ventata della disobbedienza sa di ciclamino

sulle città ai piedi dei poeti giovani !

I poeti giovani che chiacchierano

dopo una vile bevuta di birra,

da borghesi, indipendenti,

— locomotive abbandonate ma ardenti

costrette per qualche tempo su tronchi ciechi,

a godersi la mancanza di fretta della gioventù :

certi di poter cambiare il marcio mondo

con quattro appassionate parole e un passo da rivoltosi.

Le madri come madri di uccelli

nelle piccole case borghesi

intrecciano il gelsomino dell'aria

col significato della luce privata di una famiglia,

e del suo posto in una nazione piena di feste.

Le notti, così, risuonano solo dei passi dei ragazzi.

La malinconia ha infinite tane

infinite come le stelle,

a Milano o in un'altra città,

da cui far alitare la sua aria di stufa accesa.

I marciapiedi scorrono lungo case del settecento,

scrostate case con sacrosanti destini

(strade di paese divenuto città industriale),

con un lontano odore romanico di stalle gelate.

È così che i poeti ragazzi fanno esperienza del vivere.

E hanno da dirsi quello che si dicono gli altri,

i ragazzi-non poeti (signori anche loro della vita

e dell'innocenza)

con madri che cantano

alle finestrelle dei cortili interni

(pozzi puzzolenti alle stelle non viste).

Dove si sono persi quei passi :

Non basta una severa paginetta di memorie,

no, non basta — forse il solo poeta non poeta,

o pittore non pittore,

morto prima o dopo una guerra, in qualche

città dei trasferimenti leggendari,

si tiene in sé quelle notti, con verità.

Ah, quei passi — dei figli

delle famiglie migliori della città (quelle

che seguono il destino della nazione

come un'orda di animali segue l'odore

— aloè, cannella, barbabietola, ciclamino —

nella sua migrazione) quei passi di poeti

con gli amici pittori, che battono i selciati,

parlando, parlando...

Ma se questo è lo schema, altra è la verità.

Riproduci, figlio, quei figli.

Abbi pure nostalgia di loro quando hai sedici anni.

Ma comincia subito a sapere

che nessuno ha fatto rivoluzioni prima di te;

che i poeti e i pittori vecchi o morti,

malgrado l'aria eroica di cui tu li aureoli,

ti sono inutili, non t'insegnano nulla.

Godi delle tue prime ingenue e testarde esperienze,

timido dinamitardo, padrone delle notti libere,

ma ricorda che tu sei qui solo per essere odiato,

per rovesciare e uccidere.


Os primeiros que se amam

 
Os primeiros que se amam

são os poetas e os artistas da geração anterior,

ou do início do século; eles ocupam

em nosso espírito o lugar do Pai, tornando-se,

no entanto, jovens como fotografias amareladas.

Poetas e artistas para os quais não havia

vergonha alguma em ser burguês.

Filhinhos de papai.

Roupas pobres com sabor de Rebelião e de Mãe.

Poetas e artistas que se tornariam famosos

lá pela metade do século,

ao lado de algum desconhecido amigo de grande talento,

mas impotente para a poesia, por covardia talvez

(os verdadeiros poetas morrem jovens).

Calçadas de Viareggio ou de Viena! Cais

de Florença ou de Paris!

Os fatos ecoando nos passos das crianças

que calçam botas pesadas.

Os ventos da desobediência têm perfume de cíclame

sobre as cidades aos pés dos poetas jovens.

Os poetas jovens que falam e falam

depois de alguns copos de cerveja,

independentes, livres como a pequena burguesia

– locomotiva abandonada, mas ardente,

por certo tempo obrigada a apreciar

a lentidão da juventude:

a firme certeza de mudar o mundo podre

com quatro palavras apaixonadas e um caminhar de revoltosos.

As mães, como em ninhos

em seus pequenos lares burgueses,

bordam os jasmins das árias

com o sentido da luz privada da família

e seu lugar em um país repleto de festas.

As noites, então, ressoam apenas os passos dos filhos.

A melancolia tem infinitas tocas.

Tão infinitas como as estrelas

em Milão ou em outra cidade

onde se respira o ar dos aquecedores.

Pelas calçadas percorremos casas do século XVIII,

pinturas descascadas com sacrossanto destino

(as estradas da nação tornando-se uma civilização industrial),

com um distante odor românico de estábulos gelados.

É assim que os rapazes poetas sofrem a experiência da vida.

E têm de dizer o que dizem os outros,

os rapazes que não são poetas (senhores também da vida

e da inocência)

junto às mamães que cantarolam

nas janelas dos pátios

(fossas que fedem para as estrelas).

Onde perdemos esses passos:

não basta uma grave página de lembranças,

não, não basta – talvez o único poeta não seja poeta,

ou o único artista não seja artista,

talvez ele tenha morrido antes ou depois de uma guerra, em qualquer

cidade durante legendária passagem,

as noites realizadas, com autenticidade.

Ah, esses passos – os filhos

das melhores famílias da cidade (aquelas

que seguem o destino da nação

como uma horda de animais seguindo cheiros

– dracena, canela, beterraba, cíclame –

em suas migrações) que passam a poetas

com seus amigos artistas, batendo as ruas,

falando e falando.

Mas se é esse o modelo, é outra a verdade.

Repete, filho meu, aquelas outras crianças.

Sente saudades delas em teus dezesseis anos.

Mas fica ciente desde já

de que ninguém antes de ti fez qualquer revolução;

que os poetas e artistas antigos ou mortos,

apesar dos ares heroicos de suas auréolas,

são inúteis e não te ensinam nada.

Goza tuas primeiras experiências ingênuas e teimosas,

tímido dinamitador, senhor das noites livres,

mas não te esqueças de que estás aqui apenas para ser odiado,

para destruir e para matar.

POEMAS QUE LEIO, POETAS QUE ADMIRO: "À Minha Noiva", de Arthur Azevedo (1855-1908)


É interessante observar que grandes escritores brasileiros foram funcionários públicos. Particularmente, identifico-me com esses abnegados homens da palavra. Não porque seja grande no meu ofício ou porque me possa considerar um escritor (na verdade, sou apenas alguém que gosta de arte), e sim pela minha condição profissional hodierna de servidor público.

Nesse sentido é que quero destacar o maranhense Arthur Azevedo (1855-1908). Conhecido por sua obra na dramaturgia e como contista, o humorista de talento deixou-nos esta pequena pérola em forma de poema. Dedicado à sua noiva, Azevedo sentencia: “eu sou funcionário público”. E faz uma linda declaração de amor para Carlotinha – uma daquelas declarações que só um homem de muita sensibilidade poderia escrever.
 
À Minha Noiva
"Tu és flor; as tuas pétalas
orvalho lúbrico molha;
eu sou flor que se desfolha
no verde chão do jardim."
Têm por moda agora os líricos
versos fazer neste estilo...
- Tu és isso, eu sou aquilo,
tu és assado, eu assim...
Às negaças deste gênero,
Carlotinha, não resisto:
vou dizer que tu és isto,
que aquilo sou vou dizer;
tu és um pé de camélia,
eu sou triste pé de alface,
tu és a aurora que nasce,
eu sou fogueira a morrer.
Tu és a vaga pacífica,
eu sou a onda encrespada,
tu és tudo, eu não sou nada,
nem por descuido doutor;
tu és de Deus uma lágrima,
eu sou de suor um pingo,
eu sou no amor o gardingo,
tu Hermengarda no amor.
Os fatos restabeleçam-se,
ó dona dos pés pequenos:
eu sou homem - nada menos,
tu és mulher - nada mais;
eu sou funcionário público,
tu minha esposa bem cedo,
eu sou Arthur Azevedo,
tu és Carlota Morais.