Quem gosta de música, porém nunca teve uma
experimentação profissional na área, dificilmente pode ter a exata percepção do
quão exigente é o processo de gravação de uma obra musical. O artista que se
arvora a lançar um álbum deve preparar-se regiamente em sentidos os mais
variegados: na escolha do repertório, no tratamento dado pela direção musical,
na definição dos grupos ou músicos que participarão da gravação e em quais
faixas. Todos esses elementos precisam ser devidamente articulados, sob pena de
o resultado final resultar inócuo - na melhor das hipóteses - ou ruim - na pior
das hipóteses.
É claro que minhas observações reportam-se ao
artista versado em música erudita, cuja seriedade no tratamento da arte musical
é patente. Não que não haja seriedade no âmbito da música popular. Não se trata
disso. Apenas o apelo da indústria fonográfica, voltado à produção de
pseudoartistas comprometidos com o fabrico do dinheiro, muita vez compromete
esse processo. Assim, ressalvadas algumas exceções, na
música popular, o mais das vezes, a gravação termina por se cuidar de um processo inconsciente,
ditado menos pela verve proposital-conceitual do artista que do produtor musical –
especializado em vender álbuns e colocar hits
nas "paradas", não importa o quão tosco e amador seja o resultado final.
Como quem trabalha com música erudita lida
com um mercado consumidor bem menos rentável que o da música pop, associado ao fato de que
ouvinte típico desse estilo é infinitamente mais exigente, resta ao músico o fardo
de encontrar sua própria voz em meio a um vasto rol de intérpretes – cada um
melhor que o outro. E isso definitivamente não é tarefa fácil.
É no rastro desse afã que acomete todo grande artista, no sentido de imprimir sua própria assinatura
à interpretação de uma obra conhecida, que se deve apreciar o DVD “David Fray: J. S.
Bach – Swing, Sing & Think”, dirigido pelo documentarista Bruno
Monsaingeon. O documentário acompanha as sessões de gravação do primeiro álbum
do jovem e virtuoso pianista francês David Fray, focado em três dos mais famosos concertos bachianos para piano e orquestra. Ocorridas em janeiro de 2008
para o selo Virgin Classics, as sessões de estúdio captadas pelo filme permitem ao expectador apreciar o
esforço que envolve a atividade de um jovem músico erudito em busca de afirmação artística, máxime de um artista em busca de sua própria voz.
Dessa maneira, a busca de Fray é mostrada pelo diretor sob ângulos
distintos: na casa do pianista em Paris e no estúdio de gravação ao lado da “Deutsche
Kammerphilarmonie Bremen” - uma das mais respeitadas orquestras de câmara de toda a Europa. Em ambos os momentos, procura-se mostrar o quão
exigente é o artista na definição de uma identidade única à intepretação do repertório. Sobretudo se considerarmos que o pianista se propõe a gravar três
dos mais famosos concertos de J. S. Bach (Concerto nº 4 em Lá Maior, BWV 1055; Concerto nº 5 em Fá Menor,
BWV 1056; Concerto nº 7 em Sol Menor, BWV 1058), a responsabilidade aumenta inda
mais. Como dar à sua gravação a autenticidade inerente ao trabalho do verdadeiro artista? De que interpreta uma obra do barroco alemão largamente conhecida e executada
pode ser recriada pelas mãos de um jovem músico erudito?
Monsaingeon
centra seu documentário na resposta a essas perguntas. Assim, o que se observa durante mais de uma hora é o esforço admirável de um jovem talento da
música erudita em busca de sua própria voz artística. É maravilhosa a
experiência de ver o pianista a fazer observações para a orquestra de câmara
que o acompanha nas sessões de gravação, a mostrar-nos que a inteligência musical não pode (não deve) esgotar-se na mera execução da mecânica pianística. Vai além e requer uma compreensão profunda da obra que se pretender interpretar - algo que invariavelmente não está gravado nas partituras do século XVIII e só se pode adquirir após audições atentas da estética barroca. O filme registra todo o processo: os ensaios
exaustivos, os momentos de discussão, até aqueles mais descontraídos (muito
instigados pela excentricidade do jovem pianista).
O grande mérito do documentário é, afinal, permitir
que o espectador possa adentrar um momento raro no processo de consolidação de
uma carreira artística, isto é, a gravação de um álbum. A câmera esperta de
Monsaingeon flagra esse momento íntimo de David Fray. Seja na privacidade do
seu lar em Paris, seja em estúdio com a Orquestra de Câmara de Bremen, pode-se
ter uma visão privilegiada da cabeça do artista, que não apenas domina a
partitura, mas também se vê obrigado a conduzir a interpretação orquestral da
maneira que lhe parece coadunar com sua “voz”, aquela identidade única que
torna um músico digno de respeito e admiração.