quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Seção Contos do blogue

Auxílio-bar
 


Este é apenas mais um daqueles barzinhos de esquina da cidade do Rio de Janeiro. O barzinho é bem simples; sem decoração, sem nada. Só tem umas mesinhas de ferro, a exibir a marca de uma cervejaria famosa, e umas cadeiras amarelas desgastadas postas na calçada. Um homem de barriga protuberante (seu nome é Clecivaldo), por trás do balcão, está a palitar os dentes, enquanto assiste ao Flamengo jogar contra o Olaria em disputa de campeonato estadual sem nenhuma importância, mas que a TV transmite mesmo assim, pois sempre há alguém disposto a perder seu tempo vendo uma partida de futebol desse nível.

Eis que Clecivaldo desvia sua atenção do televisor. Ele percebe que um cliente aproxima-se. Vira-se para atendê-lo.    

O cliente que chega veste um paletó chique, ostenta vasta cabeleira e o bronzeado digno de um surfista carioca (todo mundo percebe que é artificial, mas, se por acaso alguém tivesse a chance de questionar a origem daquele bronze, o homem vaidoso insistiria em dizer que é das praias do Cerrado). Se Clecivaldo não o conhecesse, num primeiro olhar apressado, diria tratar-se de mais um daqueles típicos “tiozão”. Sim, aqueles velhos granados, que se recusam a envelhecer, e saem, de balada em balada, à cata das “novinhas”, para reafirmar a própria masculinidade. Mas o homem do bar conhece bem aquele cliente garboso. É o ministro Fúqui, do Supremo Tribunal, que, como se quisesse provar a sua costumeira afirmação de que “ministros e juízes são homens simples e do povo", sempre que volta de Brasília,  dá um pulo ali, naquele barzinho, perdido numa esquina qualquer do Rio de Janeiro.

- Hoje eu vim ver o "Mengão" jogar e quero tomar uma cervejinha, Marivaldo - diz o ministro, todo faceiro, ao aproximar-se do balcão, esforçando-se ao máximo para demonstrar sua integração à populaça. - Me acompanha?  

- Opa. Não posso. Tô trabalhando, seu ministro. Aqui não é que nem no tribunal em Brasília. Aqui não tem assessor. Eu tenho de meter a mão na massa. Não dá pra ficar só assinando o que os outros fazem. E, mesmo que eu não tivesse no trabalho, pra ser sincero com o senhor, que é homem simples, do povo, eu tô quebrado.    

- Sem dinheiro de novo? – fez o ministro, claramente surpreso com a situação. – Eu não entendo como o teu dinheiro acaba tão rápido...

- Aqui no bar eu só ganho um salário, seu ministro.

- Só um salário? E isso é pouco? Para ser sincero, nem sei qual o valor do salário mínimo hoje em dia... Mas me dize uma coisa: por que tu não economizas?

- Mas eu economizo, seu ministro! Pego ônibus todo santo dia, na ida e na volta pra casa lá no morro. Quanto tô doente, vou pro SUS, fico na fila, mas nunca tem médico ou leito. Mandei meus cinco filhos pra escola pública do bairro. Minha mulher trabalha de doméstica. Mas, mesmo juntando o salário da gente, não sobra pra viajar nem em promoção da GOL. Mal dá pra pagar as contas do mês! Não sobra nada! Todo mês eu me fúqui, seu ministro Fúqui!

Clecivaldo pegou uma garrafa e começou a encher um copo:

- Hum. Tá pegando mesmo, hein, Clecivaldo? – observou o ministro Fúqui antes de tomar um gole da cerveja. – Olha: eu acho que posso te ajudar – e bateu o copo no balcão num sinal de firmeza doutoral.      

- Como?

- Meu amigo, eu sou ministro, eu tenho certo poderes, sabe? Eu posso, por exemplo, aumentar salários sem ninguém perceber.

- Mas isso é possível mesmo, seu ministro? Não é contra lei?

- Não, não. Não existe nada que uma boa invencionice jurídica não possa resolver.

- E como funciona isso?

- É fácil. É só criar auxílio. Auxílio serve para tudo e não serve para nada ao mesmo tempo. Tem auxílio-moradia, auxílio-educação, auxílio-funeral, auxílio-saúde. Esses aí são só para começo de conversa. Como não é aumento, mas sim auxílio, ninguém dá a mínima, nem a imprensa, nem a sociedade, ninguém reclama. Aí dá para criar outros auxílios. É usar a tua criatividade com o dinheiro público. Tem auxílio-táxi, auxílio-viagem, auxílio-almoço, auxílio-jantar, auxílio-filho, auxílio-cirurgia plástica, auxílio-academia de ginástica, auxílio-carro de passeio, auxílio-batom, auxílio-paletó, auxílio-presente da amante, auxílio disso, auxílio daquilo. No fim das contas, é tanto auxílio que eu já nem me lembro de todos eles – e riu o ministro cinicamente.

– Então é assim que o senhor quer aumentar o meu salário? Digo o salário mínimo? Criando auxílios?  

- Exatamente, meu prezado Clecivaldo – concordou o ministro Fúqui com um aceno de cabeça. - Inclusive eu já testei essa estratégia no meu próprio contracheque, porque nós, juízes, já estamos a receber auxílio atrás de auxílio...

- Ué? Mas juiz já não ganha bem pra fazer o que faz? Juiz ainda precisa receber tudo isso de auxílio pra viver?   

- Claro que sim, Clecivaldo! O que eu ganho mal dá para eu viver. Sem auxílio não dá para morar em condomínio de luxo, ter carro importado, comprar paletó em Miami, viajar de férias com a família para a Disney, brincar de pira em Paris todo final de ano.    

- Mas o senhor não diz sempre que ministros e juízes são homens simples e do povo?

- Digo, sim, Clecivaldo.

- Então por que juiz precisa de tanto luxo pra viver?  

Parecendo constrangido com a pergunta, sem ver nenhum assessor por perto que pudesse lhe safar da enrascada, o Ministro Fúqui olhou para o relógio. Fingindo ter pressa, largou o copo sobre o balcão do bar e pôs-se a sair. Disse:

- Clecivaldo, tenho compromisso. Sabe como é, né? Vida de ministro não é fácil. Depois a gente conversa. Além disso, não quero que tu percas este jogão do Flamengo com o Olaria que está a passar na TV.    

- Ministro, o senhor não pagou a cerveja ainda. Vai sair sem pagar? – perguntou Clecivaldo, empalidecido diante do caradurismo do cliente ilustre.  

- Não. O problema é que estou sem dinheiro agora.

- Mas então vai pagar como?

- Faz o seguinte: põe na conta. Depois, quando eu voltar para o Supremo Tribunal em Brasília, eu dou uma decisão liminar qualquer por lá e crio algum auxílio.

- Ah! Já sei até o nome: auxílio-bar!

- É isso aí, Clecivaldo! Tu já estás a pegar o espírito da coisa!