sexta-feira, 20 de julho de 2012

QUANDO HIGGS CHOROU: a ciência e a fé invencível na própria missão


O físico britânico Peter Ware Higgs

Introdução à filosofia subatômica



We believe in a man with great faith, no matter whether he agrees with us or not, because faith represents force, stability, character. We believe in a man in proportion to his immovableness from principle, the fixity of his faith in his mission.
Orion Swett Marden (1850-1924), "The Miracle of Right Thought". 



O dia 04 de julho de 2012 entrou para a história da Física moderna. Nessa data, cientistas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (European Organization for Nuclear Research - CERN) anunciaram, em tom efusivo, a descoberta de uma partícula nova – possivelmente, o “bóson de Higgs” ou, como é vulgarmente conhecida, a “partícula de Deus”.  
A descoberta seria o primeiro grande resultado para a ciência do investimento bilionário que foi feito, por um condomínio de países europeus, na construção do LHC (Large Hadron Collider), o gigantesco acelerador de partículas construído na fronteira da Suíça com a França, próximo à Genebra. Nas dependências do LHC, os cientistas aceleram ao máximo as partículas dos átomos, submetendo-as, em seguida, a colisões frontais. Desses “choques” violentos em velocidades elevadíssimas, resultam explosões, que se supõe sejam capazes de reproduzir, ainda que minimamente, a intensidade com que a energia foi gerada nas colisões de partículas ocasionadas pelo Big-Bang – a teoria cosmológica proposta pelo físico belga Georges Lemaître que, fundada nas equações do matemático russo Alexandre Friedmann, voltadas à descrição do fenômeno da expansão do Universo, atribui a uma “grande explosão” o surgimento de tudo aquilo que classificamos de “mundo”. 

Simulação de uma colisão de dois prótons no LHC
Compreender cientificamente o bóson de Higgs não é tarefa fácil. Trata-se de uma partícula subatômica cujo entendimento remete a alguns dos mais complexos conceitos da “Física das Partículas”, terreno fértil para pesquisadores desejosos de atingir a compreensão acerca do surgimento e do funcionamento do universo.
Do ponto de vista científico, o bóson de Higgs insere-se no rol das chamadas “partículas elementares” do Universo – as pedras fundamentais da matéria. Aí surgem nomes complexos, que vão de “quarks” (relacionados a prótons e nêutrons), passam pelos “léptons” (relativos aos elétrons e neutrinos), até culminar nos “bósons”. Estes últimos são designados pelos cientistas de “partículas elementares bosônicas” e representam, por assim dizer, a “pura energia”, visto que, em regra, destituídas de peso. Por “bóson”, nos termos da Física moderna, portanto, tem-se um gênero a abranger as “partículas sem massa”: “fóton”, “glúon” e bósons de W e de Z (os chamados “bósons da força nuclear fraca”).
A mais famosa das partículas bosônicas é, sem dúvida, o bóson de Higgs. Trata-se, na verdade, não de uma, mas de várias partículas que, uma vez unidas, formaram um campo - o “campo de Higgs” (Higgs field). Cada unidade desse campo constitui-se num bóson específico – o bóson de Higgs.

Simulação do Campo de Higgs
Vamos agora imaginar que as partículas subatômicas estão a viajar pelo Universo. São partículas sem massa, que viajam de maneira velocíssima (na velocidade da luz, para ser mais exato). Pois bem. No curso dessa eterna travessia, os bósons de Higgs, inicialmente espalhados pelo mesmo Universo, uniram-se e formaram um campo de partículas bosônicas – o campo de Higgs. Esse campo, então, a depender da partícula, pode ou não funcionar como uma “torre de controle” da viagem. Para os fótons, por exemplo, nada muda: eles passam ao largo da “torre” e mantêm, ininterrupto, seu itinerário pelo Universo; por isso, sustentam a condição de unidade básica da luz (continuam como “pura energia”). Mas há partículas, como os quarks e os elétrons, que sofrem um efeito diferente ao atravessar o campo: a “torre de controle” as alcança e elas são forçadas a reduzir a velocidade da viagem que faziam. Assim, no esforço que fazem para seguir seu rumo, “descolando” do campo, essas partículas mudam: deixam de ser “pura energia”, para transformar-se em matéria. A interação com o campo de Higgs confere massa a algumas partículas subatômicas, portanto.          

Celebrando a aberração de toda a nossa falta de bom senso

A complexidade notória do tema já seria suficiente para afastar os leigos do assunto. Reza mesmo uma das leis do bom senso que “não se deve emitir opinião sobre temas a respeito dos quais o opinante não tenha conhecimento” (sim, admito que acabo de inventar essa norma). Bom senso, todavia, anda a cada dia mais em falta em nossa sociedade.
Como estou convicto na falta generalizada do bom senso humano, não recebi com surpresa as reações precipitadas de alguns grupos religiosos xiitas, manifestadas amplamente nas redes sociais e em fóruns da internet, inquinando de falsa a descoberta científica levada a efeito pela equipe de pesquisadores do CERN. O que se pôs em realce, nessas críticas, não foi a necessidade, de fato reconhecida pelo próprio CERN, de que novos testes ainda hão de ser feitos para corroborar a teoria de Higgs e, só então, abrir caminho para mais uma revolução na Física moderna. Nada disso. O que observei foram grupos que, desconhecendo por completo os fundamentos científicos do que criticam, julgam-se capazes, num brado autoritário e retumbante, de jogar na lata do lixo décadas e décadas de estudos da parte de homens que dedicaram suas vidas ao progresso da ciência.

Para falar no campo da pesquisa subatômica, basta recordar que o Modelo Padrão da Física de Partículas foi o resultado de longos estudos de grandes nomes da ciência, como Sheldon Lee Glashow, Steven Weinberg e Abdus Salam – o trio galardoado com o Prêmio Nobel de Física de 1979. Mas é indiscutível que, dos cientistas que dedicaram suas pesquisas à Física subatômica, a teoria proposta pelo britânico Peter Higgs é a mais polêmica no eterno conflito travado entre ciência, de um lado, e crença religiosa, de outro. E por quê?
Talvez a gênese de todo o mal-estar causado pelo recente anúncio da descoberta do “bóson de Higgs” inexistisse, caso ele não tivesse sido alcunhado de “a partícula de Deus”. Pois foi assim que a imprensa mundial referiu-se à novidade: “Descoberta a ‘partícula de Deus' ”.
Diante de tal descoberta, notei que, nos debates filosóficos, dois grupos rapidamente se formaram entre os religiosos: de um lado, os leigos absolutamente acríticos, que interpretaram o anúncio qual um acinte à crença num ser divino, respondendo com a já conhecida “negação da verdade científica”, cujo mote categórico pode ser sintetizado na máxima, dita com a profundidade de uma piscina infantil, “não acredito nisso”; de outro lado, os leigos relativamente acríticos, que, menos intolerantes, aperceberam-se da necessidade de responder à altura da ciência, sabedores de que ignorar o avanço do conhecimento científico é abrir espaço para as teorizações que fragilizam os postulados dogmáticos da crença em Deus. Estes últimos, então, com notável engenhosidade, lançaram mão do que chamo de “doutrina subsidiária da fé”: as lacunas da ciência preencher-se-ão com a crença divina. É quando a criação do Universo deixa de ser atribuída a uma partícula (rectius: ao movimento de partículas colidentes que geram energia numa intensão tal que é capaz até mesmo de ensejar a formação da matéria), retomando-se a autoridade de Deus sobre a gênese do fenômeno – agora inteligentemente aduzido como “o Criador de todas as partículas”. São debatedores respeitáveis, porquanto reconhecem a impossibilidade, no mundo contemporâneo, de sustentar seriamente a própria fé ao fechar os olhos para o progresso da ciência – esforçando-se, também por isso, para conciliar a ideia do design inteligente na criação do cosmos com os inextirpáveis avanços científicos.

A piada de Lederman e a "torre de Babel" das partículas

Todo esse debate, deflagrado par a par com a divulgação do “bóson de Higgs” pela imprensa, no entanto, só se deu por força desta nomenclatura folclórica: “partícula de Deus”. Não fosse essa expressão infeliz e creio que a descoberta da partícula subatômica passaria despercebida, como em geral ocorre no grande noticiário brasileiro. Arrisco a dizer que, no máximo, ter-se-ia uma nota de pouquíssimos segundos, numa ênfase bem menor do que aquela que é cotidianamente dada às novidades do mundo esportivo (no Brasil, caso o leitor seja estrangeiro, “mundo esportivo” é expressão restrita a uma única modalidade, o futebol).    
O mais curioso é observar que o cientista Peter Higgs nada tem a ver com a nomenclatura vulgar que foi dada ao bóson componente do modelo de campo que ele propôs já em 1964. “Partícula de Deus”, a alcunha polemista, surgiu por força da intervenção oportunista de editores de livros. A obra em questão havia sido escrita pelo físico estadunidense Leon Max Lederman com propósito didáticos: esclarecer ao grande público o significado das complexas teorizações de Higgs. Seu título original, segundo a conhecida piada narrada por Lederman, seria “The Goddamn Particle”, classificando a partícula de Higgs de “maldita” justamente porque só encontrável nos cálculos da Física puramente teórica. Aí teriam intervindo os seus editores, sugerindo o título “The God Particle” pela óbvia razão de que tudo aquilo que envolve o nome de Deus gera, rapidamente, comoção popular e ajuda a vender livros. O nome “partícula de Deus”, assim, teria sido um genial “golpe de marketing” livreiro. No Brasil, com a agravante de se ter traduzido incorretamente a expressão (correto seria trasladar do inglês para o português como "A Partícula Deus"). 

Capa do livro didático de Lederman, publicado em 1993, nos Estados Unidos, pela editora Dell Publishing
O próprio Lederman, porém, abandonando o tom piadista, apresenta versão bem mais plausível do título de seu livro didático: o nome “The God Particle” ter-se-ia inspirado no episódio bíblico da “Torre de Babel” (Gênesis 11: 1-9). Como é consabido, nesse capítulo do Velho Testamento, Deus, irritado com a arrogância dos homens que construíam uma torre “tão alta que pudesse alcançar o céu”, decidiu punir os descendentes de Noé, impondo-lhes, como castigo, que não falassem mais a mesma língua e que se espalhassem por toda a Terra. Lederman, então, teria designado o “bóson de Higgs” como “a partícula Deus” em analogia à narrativa bíblica, pois, da mesma forma que em Babel Deus fez com que os homens falassem línguas variegadas, o bóson de Higgs imporia fatores de massa variados quando em interação com outras partículas.   

A profissão de fé no próprio talento
Peter Higgs em uma das fotos do ensaio fotográfico do qual ele participou, em junho de 2009, a convite da Universidade de Edimburgo, instituição onde se tornou professor emérito (Créditos: Peter Tuffy)
Parece mesmo paradoxal afirmar que o “espírito científico” possa, em alguma medida, valer-se da fé. Mas a verdade é que, não raro, a história registra exemplos de grandes contribuições - seja da parte de cientistas, seja da parte de artistas -, cujo engenho só se sustentou, ao fim e ao cabo, na fé que essas pessoas tinham no próprio talento.
Como esquecer, por exemplo, do escritor Edgar Allan Poe (1809-1849)? O estadunidense viveu boa parte da vida em extrema pobreza e, não obstante essa penúria, a fé no seu próprio talento fê-lo escrever contos, poesias, ensaios de crítica literária etc., gerando uma das mais seminais obras da literatura universal.
O mesmo se pode dizer de outro grande literato nascido nos Estados Unidos: Howard Phillips Lovecraft (1890-1937). Tal qual Poe, Lovecraft nunca houve de experimentar em vida o sucesso merecido pela qualidade literária de suas obras. Colecionou fracassos editoriais e recusas, mas persistiu na crença no próprio talento e produziu, como contista, uma das mais importantes obras do horror do século XX. Ao final, morreu de câncer sem ver o próprio talento reconhecido.

Há ainda a história trágica do também estadunidense John Kennedy Toole (1937-1969), escritor cuja obra principal é o livro: A Confederacy of Dunces ("Uma Confraria de Tolos", na tradução brasileira de Alice Xavier). O livro foi escrito por Toole no início da década de 1960, mas seu autor nunca conseguiu publicá-lo em vida. O manuscrito original foi seguidamente recusado pelos editores. O autor, então, que sofria de problemas mentais que iam da paranoia à depressão, em parte agravadas pelo fracasso experimentado enquanto escritor, cometeu suicídio quando contava apenas 32 anos de idade. Seu lugar na história da Literatura, entretanto, deve ser creditado à sua mãe, Thelma Toole, a qual, inconformada com a não publicação do romance escrito por seu filho suicida, insistiu duramente numa campanha, que incluiu telefonemas e redação de cartas, a fim de que Walker Percy, conhecido professor de Literatura da Universidade de Nova Orleans (Loyola University New Orleans), viesse a ler os manuscritos originais do livro. Incomodado com a insistência daquela senhora, foi um Percy nada mais que vacilante - talvez muito mais motivado pela ideia de se ver livre do assédio - que concordou em ler o livro. "Mas a senhora era persistente e, não sei como, acabou conseguindo chegar ao meu escritório para entregar o volumoso manuscrito", escreveu Percy, prefaciando uma das edições de "Uma Confraria de Tolos" (2012). Isso bastou, contudo, para que o acadêmico logo notasse estar diante de uma obra-prima da Literatura.

Lamentavelmente, somente após sua morte trágica, John Kennedy Toole viu seu gênio reconhecido: A Confederacy of Dunces foi agraciado com o celebérrimo prêmio Pulitzer de ficção de 1981, entrando, assim, para a história como uma das mais importantes obras da Literatura Moderna dos Estados Unidos da América (verdadeiro cânone da Southern literature daquele país). Tudo graças, é claro, à fé que a mãe depositou no talento do filho falecido.  

Impossível esquecer também do exemplo desgraçado de Vincent Van Gogh (1853-1890). O pintor holandês, hoje reconhecidamente um dos maiores gênios das artes plásticas que o mundo das artes já conheceu, vivenciou uma existência trágica, marcadas por crises pessoais e fracassos como artista. Produziu várias obras, mas ficou conhecido o episódio de sua biografia, dando conta de que vendeu um único quadro em sua vida - Die Rooi Wingerd ("A Vinha Encarnada"), de 1888. Ao final, sucumbiu à própria genialidade: cometeu suicídio aos 37 anos.    
Na Filosofia, o exemplo mais categórico de fé no próprio talento vem indiscutivelmente de Friedrich Nietzsche (1844-1900). O alemão viveu boa parte da vida no ostracismo intelectual, após sua obra inicial, Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik (“O Nascimento da Tragédia”), de 1872, ter sido recebida com frieza pelos filólogos que eram seus contemporâneos na academia. A iconoclastia de suas ideias, indo de encontro à moral cristã e à cultura europeia conservadora, fê-lo desagradar o pensamento corrente do período, condenando-o a uma vida tanto mais solitária quanto mais incompreendido era o filósofo no seu desiderato de “transvaloração dos valores”. Experimentou problemas intensos de saúde, que lhe impunham dores lancinantes, muitas das quais conviviam com o empenho com que se dedicava na redação de sua obra filosófica. Nietzsche resistiu bravamente a tudo e, visionário, cravou na sua autobiografia Ecce homo. Wie man wird, was man ist (1908) aquela que talvez se possa considerar a mais bela declaração de fé no gênio humano:

Dass ein wohlgerathner Mensch unsern Sinnen wohlthut: dass er aus einem Holze geschnitzt ist, das hart, zart und wohlriechend zugleich ist. Ihm schmeckt nur, was ihm zuträglich ist; sein Gefallen, seine Lust hört auf, wo das Maass des Zuträglichen überschritten wird. Er erräth Heilmittel gegen Schädigungen, er nützt schlimme Zufälle zu seinem Vortheil aus; was ihn nicht umbringt, macht ihn stärker. Er sammelt instinktiv aus Allem, was er sieht, hört, erlebt, seine Summe: er ist ein auswählendes Princip, er lässt Viel durchfallen. Er ist immer in seiner Gesellschaft, ob er mit Büchern, Menschen oder Landschaften verkehrt: er ehrt, indem er wählt, indem er zulässt, indem er vertraut. Er reagirt auf alle Art Reize langsam, mit jener Langsamkeit, die eine lange Vorsicht und ein gewollter Stolz ihm angezüchtet haben, – er prüft den Reiz, der herankommt, er ist fern davon, ihm entgegenzugehn. Er glaubt weder an "Unglück", noch an "Schuld": er wird fertig, mit sich, mit Anderen, er weiss zu vergessen, – er ist stark genug, dass ihm Alles zum Besten gereichen muss. (1)

O choro que todos deveríamos chorar
Momento em que Higgs não conteve as lágrimas após o anúncio, pelo CERN, da descoberta do bóson que ele propusera em 1964. 
Pois é nesse toada, da fé no próprio talento, que se insere o exemplo formidável de Peter Higgs. Sua teoria sobre a existência de um campo no qual se daria a interação das partículas subatômicas foi proposta em 1964. De lá para cá, ninguém jamais poderá precisar as provações que Higgs teve de suportar quanto à incerteza científica de sua teoria. Ele sabia que a comprovação demandaria um investimento de tal monta que talvez jamais alguém se interessasse em fazê-lo (o LHC custou bilhões de dólares). Sabia também que, ainda que fosse empregada essa quantidade volumosa de recursos na construção do acelerador de partículas, não havia garantias de que ele pudesse reproduzir em laboratório o ambiente original da colisão atômica, a partir da qual se poderia pensar na possibilidade de que o bóson, batizado hoje com seu nome, viesse a ser identificado e, em consequência, atestar a veracidade do campo de Higgs – o “oceano” subatômico.
O bóson de Higgs permaneceu sob o “manto eterno da suspeita especulativa”, junto ao meio acadêmico, por quase 50 anos. Tomada a descoberta sob esse ponto de vista, o leitor pode intuir, então, a emoção experimentada pelo físico britânico quando do anúncio da descoberta da partícula. Foi quando Higgs chorou...

É certo, no entanto, que, para Higgs, a carência da imprescindível comprovação científica não lhe abalou a fé no próprio trabalho, no próprio talento. Ele recalcitrou na sua “profissão de fé” em prol da ciência. E, felizmente, ainda em vida, viu-se recompensado por isso.           
Nesse longo interregno, que vai de 1964 a 2012, Higgs não só envelheceu: ele envelheceu achando que, muito provavelmente, não estaria vivo para ver sua tese ser confirmada. E tal circunstância, para alguém que elegeu a ciência como o destino de sua vida, é uma pena tão terrível quanto a do pintor que não consegue vender um quadro ou do escritor cujo romance nenhuma editora se interessa em publicar. Por isso, o choro de Higgs, aos 83 anos de idade, concomitante ao anúncio da descoberta da partícula, é tão bonito e significativo. As lágrimas que o físico não pôde conter não eram apenas as de um pesquisador que, satisfeito, via a si próprio galgar um honroso lugar no panteão dos maiores cientistas da história; eram, sobretudo, as lágrimas de alguém que a vida toda se deixou guiar pela fé – a fé no conhecimento científico, a fé invencível na própria missão. 

O choro de Higgs é, portanto, o choro que todos deveríamos chorar um dia em nossas vidas. Porque é o choro do vencedor, mas é, também, o choro daquele que ousou desafiar a incredulidade alheia, a pilhéria e a incompreensão; é o choro daquele que não esmoreceu diante da misérável pequenez humana, que se avizinha sempre diante das grandes realizações. O choro de Higgs é, acima de tudo, o choro daquele que tem fé invencível na sua própria missão. E isso é virtude dos gênios! 

NOTAS
(1) Eis a tradução de Paulo César de Souza (1995): "Um homem que vingou faz bem a nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma — ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida em que elege, concede, confia. Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga previdência e um orgulho conquistado nele cultivaram — interroga o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro. Descrê de ‘infortúnio’ como de ‘culpa’: acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer — é forte o bastante para que tudo tenha de resultar no melhor para ele."
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Wie man wird, was man ist. 4. Auflage 2007. München: Deutscher Taschenbuch Verlag GmbH & Co. KG, 2005. 144 Seiten.
______. Ecce homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 176 f.
PERCY, Walker. Prefácio. In: TOOLE, John Kennedy. Uma Confraria de Tolos. Tradução de Alice Xavier. 1ª ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012. 430 p.