domingo, 19 de agosto de 2012

OS SIMONTES DE ANTANHO: a República das Bananas dos homens que sabiam javanês

 
O javanês no imaginário cultural brasileiro

Imagina tu que até aí eu nada sabia de javanês. Mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios. 
Lima Barreto (1881-1922), "O homem que sabia javanês".

Poucas vezes na história da Literatura pôde-se creditar tão veementemente a uma obra (e a um autor, por consequência) a popularização de uma língua no imaginário cultural de um povo. No Brasil, a façanha pertence ao escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). E a obra em referência é o conto “O homem que sabia javanês”.

Publicado pela primeira vez em livro em 1916, o tom cáustico e satírico empregado pelo autor em “O homem que sabia javanês” fê-lo repercutir para além dos limites da “alta literatura” pré-moderna. Foi graças ao texto de Lima Barreto que o público leitor brasileiro se deu conta da existência do tronco das línguas malaio-polinésicas, especialmente da língua falada pelos habitantes da Ilha de Java e, para usar uma expressão do próprio escritor, “lá pelas bandas do Timor”, isto é, o javanês.   
É ainda mais curioso que um conto – isto é, um escrito de narrativa curta – tenha causado tanto impacto na vida cultural brasileira. Mesmo quem não leu o texto, de alguma maneira, já ouviu falar do tal “javanês”, o que se pode atribuir às justas homenagens que o texto de Lima Barreto tem recebido em campos que vão dos estudos acadêmicos da Sociologia aos enredos de entretenimento humorístico da teledramaturgia. 
A crítica ao inculto bacharelismo brasileiro

Castelo e Castro conversam na confeitaria
O javanês, por si só, nada significaria não tivesse servido de mote ao conto escrito por Lima Barreto em tom crítico ao bacharelismo e à sociedade dos conchavos e apadrinhamentos na República brasileira do início do século XX.
No conto, o leitor é levado a conhecer Castelo, o protagonista que narra a aventura. Castelo é assumidamente um malandro, como bem evidencia a personagem, no início da narração, durante uma conversa casual com seu amigo Castro numa confeitaria, onde se põe a contar “as partidas que havia pregado às convicções e às respeitabilidades, para poder viver".
“Poder viver” não é força de expressão. Lima Barreto (2010) descreve Castelo qual um sujeito pobríssimo, recém-chegado ao Rio de Janeiro, foragido de casas de pensão.
— Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte: "Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas, etc. 
Mas Castelo, não obstante sua miséria, não era pessoa maldotada. Pelo contrário. Era esperto. Ante o anúncio do jornal, logo reconheceu ali a oportunidade do estelionato: “Ora, disse cá comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me.”
A expressividade de quatro palavras num idioma dificílimo como o javanês demonstra bem a disposição do golpe. Quatro palavras e já seria professor. Afinal, como reza o velho adágio popular: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei.”

E lá se vai Castelo. Segue para a Biblioteca Nacional, ainda um tanto desnorteado, mas já convicto da sua ação ardilosa. Eis, então, que lhe acode a ideia perspicaz: consultar a enciclopédia, letra J, mais precisamente o artigo sobre Java e a língua javanesa.
Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando letras. (LIMA BARRETO, 2010).   
Essa passagem do conto denota uma ostensiva crítica ao bacharelismo brasileiro. Os bacharéis, na Primeira República, eram os representantes dos coronéis. Estes, os mandantes ignaros, valiam-se dos primeiros, seus mandatários letrados, para bem representar seus interesses junto aos órgãos de Estado.
Nem todos os bacharéis, todavia, eram verdadeiramente homens cultos (dir-se-ia eruditos). Muitos, com efeito, eram bufões da intelectualidade. Cultivavam um saber enciclopédico, não sustentado em bases culturais sólidas, senão na leitura de uns poucos artigos sobre tal ou qual assunto em voga. Era o suficiente, no entanto, para, numa República inculta e patrimonialista, fazer-lhes ascender socialmente.
E é exatamente esse o tipo de bacharel, estelionatário da intelectualidade, que se encontra representado em Castelo. Este, um reles golpista miserável, vai galgar postos no Estado menos por seu mérito do que por sua astúcia.
A crítica à farsa dos falsos "doutores"


Castelo "estuda" javanês na Biblioteca Nacional.
 
E assim Lima Barreto prossegue sua narrativa. Concita o leitor a acompanhar a jornada histriônica do professor de Javanês que nada sabia de javanês a não ser uns poucos informes enciclopédicos superficiais sobre a língua malaia.   

Entusiasmado com a ideia de concretizar o golpe brilhante, Castelo candidata-se ao professorado do idioma oceânico. Mas não pense o leitor que se cuidasse de um sujeito relapso. Como todo bom estelionatário, Castelo sabia que o sucesso da sua farsa estaria em fazer-se convencer no ensino da língua da Ilha de Java. Por isso, Lima Barreto apresenta-o empenhado nos seus estudos de javanês na biblioteca. 
Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do idioma que ia ensinar. (LIMA BARRETO, 2010).
Nessa passagem do conto nota-se mais uma crítica do autor ao saber enciclopédico dos bacharéis da Primeira República: o fato de não ter feito grandes progressos no aprendizado da língua que pretendia ensinar era, de certa forma, indiferente. Castelo sabia que o conhecimento de verbetes sobre o idioma, associado a umas lições alfabéticas primevas, já lhe dariam todo o cabedal necessário para o ardil de “professor” que tencionava executar.
É preciso não te esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico. (LIMA BARRETO, 2010).
Esse ponto merece destaque. Pois remete aos “falsos doutores” da nossa sociedade. Nesse sentido, impossível não lembrar as “profissões tradicionais” de médico e advogado. Ambos são “doutores”, mas quase sempre falsos doutores. Doutorado é título oriundo de mérito acadêmico que, no Brasil, ainda é restrito a uma casta percentualmente insignificante da nossa sociedade iletrada. Mas é deveras comum no meio jurídico, só para citar um exemplo, encontrar de juízes a promotores assinando peças como um “Dr.” imerecido, porquanto oriundo de uma titulação formalmente inexistente e que só lhes é devida enquanto alcunha respeitosa por força da tradição. Mas na ciência, como na filosofia, não pode haver espaço para benemerências: o conhecimento precisa ser provado, demonstrado, julgado pela crítica. Um intelectual se faz respeitável pela sua obra, pelas ideias que externa quanto escreve, e não pelo cargo ou profissão que exerce. Não se faz caridade com doutorado.
É claro que a tradição deferente de alcunhar os profissionais da área jurídica e da saúde de “doutores” não seria um problema tivessem esses profissionais a humildade de reconhecer exatamente isto: não são merecedores desse título. E, por isso mesmo, se alguém lhos imputa por convenção, é preciso receber a honraria com a sensatez de quem ouve uma forma de tratamento prescindível e nada mais. Por óbvio, nada mais distante da realidade. Experimente o leitor adentrar as cancelas de um tribunal e chamar um juiz de “senhor”, preterindo o “doutor”, e mui provavelmente será ralhado ou, se tiver o azar de deparar com um desses loucos ditadores de toga, pode mesmo receber voz de prisão por desacato. E qual a razão de tamanho vilipêndio? É que vivemos numa “República das Bananas”, onde é preciso emular títulos nobiliárquicos para sair da condição de “cidadão de segunda classe”, adentrando o círculo elitizado da “nobreza social”. Nesse contexto das estroinices do Estado brasileiro, “senhor”, embora seja forma de tratamento igualmente respeitosa, não permite ascender à condição de superioridade social que só o vocativo de “doutor” suscita. E eis a razão pela qual ser “doutor” numa Banana Republic é algo tão importante.      
Lima Barreto sabia muito bem disso e quis fazer de Castelo - o malandro simpático que narra sua carreira no serviço público no conto "O homem que sabia javanês" - o emissário da sua crítica bem-humorada às mazelas de uma sociedade de apadrinhados.
De malandro miserável a culto diplomata: o poder de "quem indica" no Brasil 


Castelo "ensina" javanês ao Barão de Jacuecanga

Assim é que, no conto, encontramos um Castelo estudioso do malaio, já indo bater às portas do rico doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, de quem recebera uma carta para ir falar. “- Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.” 
De maneira a justificar ao ancião, sua vítima em potencial, a origem de seu conhecimento em uma língua tão insólita, o narrador, criativamente, arquiteta uma mentira. Diz-se filho de pai javanês, que fora tripulante de navio mercante e que viera ter à Bahia, onde prosperara como pescador nas bandas de Canavieiras.
O engodo caiu bem, considerando a aparência de Castelo, que lhe podia dar muito bem a aparência de um “mestiço de malaio”, bem como o fato de que a miscigenação no Brasil gerou “uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.”
E assim Castelo apresenta seus serviços na docência do javanês. Contrata as condições de preço e de hora com o velho barão, de quem fica sabendo que sua missão é fazê-lo ler o alfarrábio herdado junto a sei pai, escrito em idioma oceânico. O livro era um autêntico “tesouro de família”: fora dado ao Conselheiro Albernaz, avô do aluno, por um hindu ou siamês agradecido. Segundo disse o avô do barão, tinha o condão de evitar desgraças e trazer felicidades para quem o tivesse guardado. “(...) se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz.”      
Como o cartapácio estava escrito em javanês, o barão, se quisesse lê-lo e cumprir a sorte herdada geração após geração, precisaria aprender a língua malaia. E é aí que entra Castelo com toda sua astúcia. 
Tomando em mãos o inquarto diante de sua vítima, logo notou que apresentava algumas páginas de prefácio escritas em inglês. Leu-as e descobriu que o calhamaço “tratava das histórias do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito”.
Essa esperteza singela, em ler no inglês o que não saberia decifrar no malaio, deu verossimilhança ao golpe: logo o barão tinha o saber de Castelo em alta conta. Estava diante de um raríssimo professor de javanês.   
Mais uma vez aqui Lima Barreto mostra como é fácil enganar os ignorantes: um simples detalhe que passara despercebido e ele se convertera no “professor” do idioma. Castelo estava habilitado a lecionar javanês, um idioma no qual toda sua formação resumia-se a uns poucos verbetes enciclopédicos.
Porém, não pense o leitor que Lima Barreto reduziu a pecha de ignaro ao ancião vitimado pela astúcia de Castelo. O Barão de Jacuecanga era homem de parentes importantes. Seu genro era desembargador, homem relacionado e poderoso. E, ao saber do estudo do velho, ficou entusiasmadíssimo com a potestade advinda de um conhecimento linguístico tão incomum. Era apenas o início da fama que catapultaria Castelo do pensionato miserável aos altos escalões do serviço público brasileiro.
Ao fim de dois meses de “ensino”, o barão, contentíssimo com o “professor”, já lhe dava toda uma vida de regalos. E a mentira seguia incólume, embora Castelo confessasse temer que a farsa nalgum momento viesse a ser descoberta.
O temor se acentuou, sobremaneira, quando fora enviado à presença do Visconde de Caruru, com uma carta de recomendação redigida pelo barão, incentivando-o a ingressar na diplomacia. O visconde conduziu Castelo, então, para a Secretaria dos Estrangeiros, onde, despistando os amanuenses, foi levado à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou: "Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. "Bem, disse-me o ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e outros!" (LIMA BARRETO, 2010).
Nessa cena, Lima Barreto, com a genialidade precisa que só um grande artista é capaz de ter, sintetiza o funcionamento do serviço público na Primeira República. Sem absolutamente nenhum mérito, sem absolutamente nenhum conhecimento, Castelo, um malandro miserável que vivia a perambular fugido de pensões, ascendia, num golpe brilhante, à condição de representante brasileiro em congresso internacional! “Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em um congresso de sábios."

A moribunda república brasileira 
 
Lima Barreto escrevia no primeiro quartel do século XX, na então capital da República, a cidade do Rio de Janeiro. Estava, neste conto sobre o qual ora me debruço, a denunciar que o tão propalado mérito republicano inexistia no Brasil, soçobrando ante o apadrinhamento dos poderosos e influentes. É daí que surge a ideia da “carta” com que o barão mandara o professor de javanês ao encontro do visconde. A carta é a demonstração de força do apadrinhador que, com sua influência, “senta praça” nos órgãos de Estado. 
A situação é cômica e, lamentavelmente, atual. O falso professor de javanês é a alegoria literária dos apaniguados do serviço público brasileiro. O Estado, com seus cargos, é loteado como um feudo, onde prevalece antes a vassalagem que o mérito esperado numa República.
Aqui é preciso esclarecer ao leitor algumas noções sobre o conceito de “República”.
Nas Faculdades de Direito, há uma disciplina chamada Teoria do Estado (mas que poderia, acertadamente, ser substituída por outra, denominada Ciência Política), onde, em tese, o republicanismo é estudado. Na formação do bacharel em direito, dever-se-ia ponderar, a pretexto do estudo dessa matéria, os elementos basilares à formação de burocratas estatais, como o serão os futuros “doutores” em “ciências jurídicas e sociais”. É nesse ponto do curso que os professores (seriam falsos também?) deveriam ensinar aos seus alunos a origem histórica das estruturas da organização política de um país. Tivesse o sistema educacional brasileiro um pouco mais de qualidade e os acadêmicos de direito sairiam da Academia sabendo que, teoricamente, em uma república, tomada enquanto forma de governo, o poder soberano pertence ao povo. A república surge como ideia antitética à monarquia, cujo governo é, por excelência, conduzido de maneira individualista e, o mais das vezes, ilimitada. O governo republicano, portanto, surgiu pari passu com a aspiração popular de limitação do poder, mas também de participação. Não há republicanismo onde o povo não pode ascender ao poder. Por isso, numa república, os mandatos são eletivos e temporários. É preciso que o governante submeta a si próprio periodicamente ao escrutínio popular por meio das eleições. Com isso, enfatiza-se a ideia de soberania popular, de que o poder é do povo.    
Se o poder pertence ao povo, o Estado também. E é aqui que começam as mazelas do republicanismo brasileiro.
O patrimonialismo nacional, historicamente, sempre privilegiou a República dos Coronéis em detrimento da República dos Cidadãos. Na primeira, mandavam os grandes proprietários de terras, assessorados por um guilda de bacharéis, que saíam dos bancos das Faculdades para dirigir o Estado, instruídos na manutenção do status quo. Esses bacharéis, embora pudessem, só estudavam se quisessem. Não precisavam. Numa República dos Coronéis, não prevalecia a competência do profissional, mas sim o grau de penetração de suas relações interpessoais no escambo de lotações no Estado. Numa palavra, valia o peso do ouro no anel do dedo de quem indicava. Quanto mais poderosa a figura do padrinho, tanto mais espaço teria o apadrinhado nos “negócios” estatais. Fosse ele um completo imbecil, não importava: tivesse sido apadrinhado por alguém influente e poderoso e as portas do Estado ser-lhe-iam generosamente abertas.
Era essa a realidade criticada, no início do século XX, pelo escritor Lima Barreto. Estudante negro e pobre, ele vivenciou na pele a dura realidade do intelectual nascido em uma família pauperizada: em 1904, foi forçado a abandonar os estudos na Escola Politécnica, no Rio de Janeiro, para sustentar a família, quando o pai foi acometido de demência. Embora escritor talentosíssimo, cuja prova mor é a perenidade de sua obra, mofou a vida inteira na condição de um medíocre funcionário público subalterno do Ministério da Guerra, onde não teve seu gênio reconhecido, o que se constata pelo fato de que nunca ganhou sequer uma promoção. Viveu com salário modesto, premido pela obrigação de ser arrimo de família, além de crises constantes de depressão severa, em parte agravadas pela dipsomania, fatores que culminaram com sua morte prematura, em 1922, quando o escritor contava apenas 41 anos.
A biografia de Lima Barreto merece ser recordada. Por meio dela, percebemos que o escritor, crítico da Primeira República, sofreu com as injustiças sociais que o estigmatizavam, ora por ser pobre, ora por ser negro, descendente de escravos. Em uma sociedade verdadeiramente republicana, barreiras sociais dessa ordem não se poderiam admitir. É que a república assenta no princípio da isonomia dos cidadãos. Num plano teorético ideal, todos são iguais perante a lei. Semelhante contexto, em consequência, não admite discrime plutocrático, tampouco apadrinhamentos.
Lima Barreto criticava a República Velha brasileira, cuja forma fora adotada em 1889, porque nela não via senão a retórica dos seus postulados. A isonomia, o princípio lapidar, era sempre solapada pela pessoalidade e pelo compadrio entre poderosos. Não importava o quão competente ou incompetente fosse alguém. Seu sobrenome sobrepujava tudo, quando não o dedo indicador de um barão.
O conto de Lima Barreto, no século XXI, deveria ser lido apenas como objeto de análise histórica da prisca República brasileira em formação. Lamentavelmente, a crítica professada pelo escritor brasileiro permanece mais atual do que nunca.
Brasil: campeão mundial na formação de professores de javanês 

Exemplo de caracteres da língua javanesa
 
Por mais que tenham havido avanços ao longo das últimas décadas, a verdade é que o Brasil está longe do que se pode chamar de “república”. Falta isonomia ao País. Tal é de fácil constatação ante a prática, sobejamente difundida, de “loteamento de cargos” nos serviços públicos. São os famosos DAS – direção e assessoramento superiores. Em época de eleições, os DAS consubstanciam a moeda de troca da influência política, guerreando os partidos pela ocupação de tal ou qual secretaria, além da indicação de todo um corpo de apaniguados a ocupar cargos subalternos de toda a ordem. E o motivo não é nem um pouco patriótico: quem ocupa uma dessas famigeradas assessorias na esteira de acordo político sabe que irá, de mais a mais, ganhar um ótimo salário do Estado, trabalhando muito pouco. Às vezes, dada a incompetência do indicado, é melhor mesmo que não trabalhe, sob pena de prestar um desserviço ao País. 

Do ponto de vista jurídico, o sistema do concurso público surge para fazer frente a esses vícios antirrepublicanos, de maneira a privilegiar o mérito do candidato, submetido a um certame em igualdade de condições, abstraindo-se toda sorte de ingerências pessoais. O concurso público, portanto, presta-se a concretizar o princípio da isonomia, garantindo que os cargos do Estado sejam ocupados pelo critério meritório, e não pelos conchavos e picuinhas político-partidárias. Por isso, a Constituição brasileira, a lei fundamental do País, é enfática em determinar que só se pode ingressar no serviço público por meio de concurso. E ponto final.
Logicamente, a afirmação acima só vale em repúblicas sérias. Não parece ser esse o caso do Brasil. Aqui por estas bandas, é comum observar toda sorte de “jeitinhos” para “elastecer” o mandamento constitucional. Há desde chefes do Poder Executivo evitando ao máximo organizar concursos públicos, sabedores de que os “indicados” são de fácil pressão e manipulação na hora do cômputo dos “votos por interesse”, a órgãos que se constituem em verdadeiros “cabides de emprego” de militantes, caso das assembleias legislativas espalhadas pelo País.
Esse cenário já seria suficientemente grave não fosse o Poder Judiciário conivente com esses desmandos. Basta observar que demorou vinte anos para que o principal tribunal do País, o Supremo Tribunal Federal, editasse uma súmula vinculante, no ano de 2008, proibindo o nepotismo no Poder Público. Repito: vinte anos foram necessários para que os “excelentíssimos senhores doutores ministros” reconhecessem algo que mesmo o mais neófito dos estudantes poderia intuir a partir da leitura da Constituição de 1988, nos termos da qual o Brasil constitui-se em uma “República Federativa”.
Citei a mais alta Corte do País, por ser emblemático demais o exemplo. Porém, friso existirem exemplos ainda piores dentro da República das Bananas brasileira. Basta olhar para os órgãos do Poder Judiciário, especialmente os Tribunais estaduais, e notar toda sorte de violações à isonomia. Há casos flagrantes de não concursados ganhando mais que o dobro dos concursados, para além de contarem com o beneplácito da “confiança” dos “doutos” magistrados. A confiança a que aludem esses juízes não se reporta ao trabalho, pois não há forma de aferição mais segura de capacidade técnica que a impessoalidade das provas. A confiança é usada para pretextar o apadrinhamento oriundo das relações pessoais mais comezinhas, travadas na ordem das “trocas de favores político-partidários”, dos sobrenomes de famílias tradicionais que “dominam a cidade”, dos filhos dos coronéis contemporâneos. Isso para não falar de desembargadores, homens relacionados e poderosos, responsáveis por lotear essas mesmas assessorias, de remoções do interior “a pedido”, fraudando o polo de lotação em concurso, a nepotismos cruzados às escâncaras.
Espero que o leitor confie em mim quando afirmo: o serviço público está cheio de ASPONES. E, para a desgraçada realidade republicana brasileira, a situação talvez seja ainda mais grave em se tratando do Poder Judiciário, justamente aquela parcela do poder de Estado a que se reserva a pecha de “última trincheira” da justiça humana, tendo a incumbência de zelar pela observância das leis e da Constituição do País. Afinal, se o observador está cego, quem observará o observador?
 
 
Doutorando-se em javanês na República das Bananas 

Texto em português com a respectiva tradução ao javanês.
O leitor já pode notar, portanto, que o apadrinhamento criticado por Lima Barreto estende-se aos dias atuais. “O homem que sabia javanês” é a narrativa heroica do sucesso imerecido, de como alguém pode vir a se tornar um influente agente público pelo engodo, em terra de sábios incultos, de bacharéis iletrados e à revelia dos preceitos mais básicos que, ao menos em princípio, deveriam governar o Estado. Um Estado, repito, que se propõe a ser republicano; e que, por conseguinte, deveria priorizar a igualdade entre os cidadãos.
É nesse sentido que se conota a pecha de “República das Bananas” para o Brasil. Não me pejo em afirmá-la diante da realidade circundante do serviço público. E me preocupa, sobretudo, saber que não é nova. Já no primeiro quartel do século XX, Lima Barreto denunciava-a nas suas obras.
Sobre o assunto, o crítico Francisco de Assis Barbosa (2003, p. 16) nota similitudes na leitura pré-moderna que se faz das obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha, observando que:
(...) ambos possuíam a consciência de que alguma coisa tinha de ser feita pelos escritores a serviço do povo brasileiro, para retirá-lo da situação de miséria e ignorância em que vivia, abandonado pelos governos, consequência da própria organização social e política do país, quer sob o império, quer sob a república.  
Lima Barreto bateu-se por uma literatura militante, o que de resto já não era novidade na época. Só o era talvez para o Brasil. Euclides da Cunha, embora parecendo desconhecer a expressão, não faria outra coisa, ao longo de sua obra, e toda a sua ação intelectual o conduziria ao mesmo objetivo, de vez que, para ele, um homem de letras devia ser o contrário de um beletrista ou afeito exclusivamente ao belo, isto é, apenas interessado pelo papel da literatura, sem qualquer base política ou social.
O conto sobre o falso professor de javanês, de Lima Barreto, deve ser lido como um conto sobre a forma como, no início do século XX, dava-se a constituição do capital intelectual dos bacharéis da República Velha brasileira. Este era menos produto do esforço pessoal, alicerçado em sólida formação cultural, que das “cartas de recomendação” de figuras bem relacionadas e poderosas, de barões a desembargadores. Numa sociedade desse jaez, numa “República das Bananas”, qualquer um com um mínimo de criatividade pode desempenhar falsamente o papel do intelectual e ocupar uma cadeira nos órgãos do Estado. Pode mesmo vir a ser representante do Brasil em congresso de sábios, a concluir-se que, numa sociedade de titulações e ascensões sociais iméritas, qualquer bacharel pode vir a ser um sábio, um “respeitável homem das letras”. E mesmo um estelionatário pode ser reconhecido pelo portento do seu “conhecimento”, galgar os postos mais elevados, usufruindo vida regalada à custa do Estado, mesmo sem merecimento algum.

Por isso defendo que, no Brasil antirrepublicano em que vivemos ainda hoje, o apadrinhamento e a apropriação privada que se faz na condução dos negócios do Estado é como o simonte de antanho que o Barão de Jacuecanga tragava quando recebeu o professor de javanês em seu casarão. É um velho vício, terrivelmente grave para a saúde de um ancião, mas do qual o doente não consegue se afastar. Ele prefere morrer lentamente a largar o fumo. O prazer imediato é tudo. Nem o lenço de alcobaça pode fazê-lo sossegar.    
A crítica implícita no enredo de "O homem que sabia janavês" de Lima Barreto vai de encontro a uma sociedade de falsos republicanismos, de falsos cabedais, de diplomas fabricados, de títulos imerecidos. O autor se insurge contra a subserviência do Estado ao compadrio, ao apadrinhamento, ao “toma lá dá cá” no trato da res publica. Mas creio que, de todas as lições primorosas que seu conto pode deixar ao leitor, talvez a mais relevante seja precisamente esta: na República das Bananas, só quem fala javanês é doutor.  
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Francisco de Assis. Prefácio. In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 420 p.
LIMA BARRETO, Afonso Henriques. Contos completos. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Coleção Listrada). 712 p.






2 comentários:

  1. Rafael,espetacular suas informações,principalmente pela qualidade como explicou o conto e também com intercalou as tramas.Outro ponto importante foram os ensinamentos relacionados com a nossa História e as consequências atuais para nosso povo.Parabéns!

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