sexta-feira, 19 de julho de 2013

JESUS CRISTO ANABOLIZADO: o proselitismo religioso cristão-estadunidense em "O Homem de Aço" de Zack Snyder


Lara Lor-Van: - He will be an outcast, a freak.
They'll kill him.
Jor-El: - How? He'll be a god to them.
Man of Steel, directed by Zack Snyder (2013).
 
A associação alegórica entre a história de Superman e a de Jesus Cristo não é nova. Em ambas, há a figura do predestinado, o ser especial que é enviado pelo pai à Terra em prol de um sacrifício heroico: salvar a humanidade. Quando jovens, tanto Jesus quanto Clark Kent/Kal-El têm dificuldade de compreender sua missão grandiosa e a excepcionalidade dos seus poderes, o que os leva a uma jornada pessoal, e muita vez solitária, em busca do autoconhecimento. A diferença é que, enquanto a personagem bíblica anda sobre as águas e lança mão de um chicote furibundo para expulsar vendilhões do templo, a dos quadrinhos voa pelos ares e distribui socos em vilões megalomaníacos.

Pois é fundado na exploração descarada dessa alegoria que O Homem de Aço (Man of Steel, Estados Unidos, 2013) tenta justificar seu fraco roteiro em mais de duas horas arrastadas de efeitos especiais e muita pancadaria. Várias são as cenas em que o "primeiro dos super-heróis" é tratado como um Jesus Cristo redivivo. Por exemplo: ao enviar o filho numa nave rumo à Terra, o pai Jor-El anuncia em tom categórico à esposa Lara: "Ele será um deus para eles". Noutro momento, em uma espécie de diálogo shakespeariano com o filho Kal-El, o mesmo Jor-El afirmará: "Quando a hora certa chegar, você poderá ser a ponte entre dois povos." Numa cena adiante, vê-se um Clark Kent confuso e hesitante quanto a aceitar sua missão heroica, por não saber se pode confiar no "povo da terra". Sua solução será buscar aconselhamento numa igreja, onde se confessa diante de um jovem padre, como que temeroso de morrer em pecado ao refugar a glória eterna de seu bravo heroísmo. Para despersuadi-lo da dúvida, o confessor exorta o projeto de herói penitente; diz-lhe que às vezes o crente precisa primeiro agarrar-se à sua fé, já que a parte da confiança vem depois. Não poderia haver mensagem mais cristã.
 
Blockbuster catequético

O ator britânico Henry Cavill como Superman: frequentou a academia, mas se esqueceu da escola de teatro. 
 
E assim o filme vai se arrastando, cena a cena, num proselitismo religioso flagrante. A sensação é a de estarmos diante de uma nova modalidade de aula de catequese: o instrutor agora veste a capa vermelha do super-herói, pregando a palavra de cristo com o apoio de uma trilha sonora épica (assinada pelo compositor Hans Zimmer) e centenas de milhões de dólares investidos pesadamente em efeitos especiais. Talvez estejamos mesmo diante da abertura de um novíssimo nicho de mercado - o do blockbuster catequético.

A contrição que advém do heroísmo cristão do protagonista é tanta que se torna absolutamente patética na cena em que ele deixa Jonathan Kent (Kevin Coster) morrer no olho de um furacão. A omissão de Clark respeita o desejo do seu pai adotivo, que prefere sacrificar sua própria vida a permitir que a humanidade descubra precocemente os poderes extraordinários de seu rebento alienígena. Difícil acreditar que o herói mais forte e mais rápido do planeta não dispusesse de ânimo para agir numa hora dessas. Mas se salvasse Jonathan ele seria humano, não seria divino. E o homem de aço de Zack Snyder não é apenas um super-herói assombrado pelo dilema hamletiano da vingança do pai extraterreno; ele é Jesus Cristo repaginado - o messias do século XXI disposto a todo e qualquer sacrifício em nome de uma humanidade que "não sabe o que faz". Até a idade do super-homem no filme é a mesma do Jesus crucificado: 33 anos.        
    
Músculos de sobra e furos no roteiro

Michael Shannon encarna o vilão Zod: sua interpretação salva o filme.
 
Entretanto, o que já era uma associação hilária de proselitismo religioso cristão e história em quadrinhos torna-se ainda mais caricata pelas mãos do diretor Zack Snyder. Nota-se uma preocupação permanente da câmera com o peitoral, bíceps e ombros do britânico Henry Cavill, que, quando não aparece sem a camisa, passa boa parte da película vestindo um uniforme coladíssimo ao corpo. Por sinal, a preocupação de Henry Cavill com a esbelteza olímpica de seus músculos foi tanta que o fez esquecer-se de atuar: ele entrega um Superman sem carisma, inexpressivo, incapaz de transmitir as pesadas emoções que seriam de se esperar de um homem cristão em conflito sartriano com seus superpoderes alienígenas. Sem dúvida, Cavill é o mais recente exemplo hollywoodiano de ator que frequentou mais a academia de musculação do que a escola de teatro.        

O resultado dessa mixórdia de cultura pop de histórias em quadrinhos com proselitismo cristão descarado é o que vemos no écran: um Superman supermusculoso e super-religioso, quase um Jesus Cristo anabolizado, dividido entre assumir seu fardo messiânico de salvador da Terra e a necessidade permanente de distribuir socos nos inimigos heréticos (e igualmente musculosos) que vêm de Krypton. Aliás, que sistema de justiça kryptoniano é este que, para punir uma tentativa de golpe de Estado, envia os golpistas para o degredo numa nave equipada com armas letais? Por aí já se percebe que O Homem de Aço não se importa com furos no roteiro. Nem me darei ao trabalho de mencionar as incompreensíveis cenas de luta, pois filmar megablockbusters de mais de duas horas com o ritmo de um videoclipe se tornou obrigatório nos filmes do gênero depois do sucesso estrondoso que o rei da baboseira adolescente Michael Bay obteve com a sua descerebrada trilogia Transformers.

Porém, por medida de justiça, devo reconhecer que nem tudo é ruim no filme. Seus principais méritos são técnicos: efeitos especiais e de som foram muito bem feitos. Entre as atuações, se Henry Cavill decepciona como um Superman inexpressivo, Russell Crowe está ótimo no papel de Jor-El. Amy Adams se sai bem com sua Lois Lane, mas é prejudicada pela insistência do diretor em fazer dela "arroz de festa" da trama. Chega a ser ridícula a onipresença de Lane, já que é inexplicável que uma humana jornalista sem a supervelocidade possa participar de quase todas as cenas importantes (o seu súbito aparecimento no clímax da luta final é risível; pior que isso só mesmo o inexplicável convite para sua subida à nave inimiga). Maior destaque merece Michael Shannon, que salva o filme com sua interpretação do general Zod, a emprestar um tom bastante digno às motivações do vilão. Eu ainda destacaria a desconhecida Antje Traue, que, nos seus poucos diálogos durante a película, consegue fazer da sua Faora uma vilã convincente (ajudada, é claro, por sua beleza insofismável).        

Jesus Cristo do século XXI


De certa maneira, todos os elementos que descrevi acima já seriam suficientes para que O Homem de Aço pudesse ser considerado mais um desses blockbusters de verão totalmente descartáveis - com o agravante de ainda se prestar a um proselitismo religioso pueril e superficial. Contudo, penso que o que há de mais curioso no Superman de Zack Snyder é o seu tom ufanista exacerbado. Com efeito, em sua nova versão de Jesus Cristo com anabolizantes, Superman  abandona de vez a perspectiva de herói que veio salvar a humanidade. Apesar de os diálogos (e algumas poucas tomadas) esforçarem-se por retratar uma visão global, o que se vê na tela é um super-herói tipicamente estadunidense, a exaltar o nacionalismo orgulhoso de um povo que simboliza o ideal maior de liberdade  e justiça da Terra (na visão do diretor, evidentemente). Guiado por esse propósito, Snyder filma o seu homem de aço com a bandeira dos Estados Unidos da América como pano de fundo por mais de uma vez. Além disso, o exército desse país surge como "polícia do mundo", compreensiva e justa, tão nobre quanto o próprio super-herói no desiderato de "salvar a humanidade". Vendo a película, fiquei a perguntar-me se Snyder ambiciona algum prêmio, pois já vimos que Hollywood adora premiar com um Oscar obras fracas, contanto que exaltem o mito do heroísmo estadunidense (exemplo recente disso é o Argo de Ben Affleck).  

Nas bilheterias, O Homem de Aço desponta como grande sucesso do verão. Já arrecadou mais de meio bilhão em todo o mundo. Os produtores não perderam tempo. Vem aí uma sequência. O que significa dizer que a fórmula ator-musculoso-em-uniforme-colado-tentando-ser-Jesus-Cristo-do-século-XXI é um sucesso. Um sucesso duplo, eu diria. Além do público, que com seus ingressos pagou o investimento multimilionário feito no filme, também as igrejas cristãs podem celebrar o Superman de Zack Snyder: ele enfrenta vilões, salva a humanidade e, de quebra, ainda traz novos prosélitos. Agora só falta trazer bom cinema.