sábado, 18 de março de 2017

ANALECTO DO INTELECTO: João Guimarães Rosa (1908-1967), escritor brasileiro


Carne fraca



Era final de semana. A tradicional família brasileira estava reunida num domingo qualquer. O pai, após observar a despensa vazia, sugere almoçar fora. Com um aceno de cabeça, todos consentem.

Dirigem-se, então, a uma churrascaria no centro da cidade. Escolhida a mesa, aproxima-se o garçom:

- Amigo, hoje tem rodízio? – diz o pai da família.

- Sim, senhor. Está R$ 100 por pessoa.

- Meu Deus! Que absurdo! Tá caro demais! – a mãe reage repassada de indignação. Ao seu lado, os filhos já estão a exibir um rosto verde de fome.  

- Tem outra opção de rodízio mais barata – emenda o garçom, temeroso de perder os clientes. - É o nosso "rodízio Friboi".

- E qual o preço? – pergunta o pai.

- Nessa opção, senhor, o rodízio de carnes tem um custo individual de apenas R$ 10,00.

- Nossa! Dez reais! Agora tá barato até demais! – exclamou a mãe, a esboçar um sorriso um tanto irônico. - Qual o motivo desse preço ser assim tão baixo? O rodízio oferece menos carne? Dura menos? É promoção?

- Não, não, senhora. Esse rodízio é mais barato, porque ele oferece ao cliente a carne Friboi, que tem como grande diferencial já vir estragada de fábrica. Friboi é a única carne com 100% de garantia de que está podre.

- Ah, agora sim – diz o pai aliviado. – Comendo a carne podre da Friboi a gente pode ficar tranquilo que não tem chance de estragar, não é mesmo?

- Sem dúvida, senhor – respondeu o garçom com segurança. – O selo Friboi de qualidade impede que a carne corra qualquer risco de perecimento ou apodrecimento. Pois, como eu disse, a carne Friboi já vem podre de fábrica.

- Risco zero de putrefação.

- Exato.

Nesse instante, o garçom arqueou suas sobrancelhas num tom de sabedoria. Em seguida, continuou:

- E quem come Friboi ainda contribui para uma causa social nobre.

- É mesmo? – perguntou a mãe. – Qual é?

- É que parte do dinheiro arrecadado com a venda de carne podre é reinvestido pela Friboi para pagar propinas a políticos e o caixa dois de partidos. Ou seja: tudo o que o brasileiro gosta num só lugar: carne podre da boa e corrupção correndo solta! Se o senhor quiser - empolgou-se o garçom -, ainda podemos lhe oferecer o especial do dia, que é a carne forrada com papelão. Peito de frango, linguiça e picanha forrada com papelão é um dos rodízios preferidos dos nossos clientes aqui na churrascaria.     

- Garçom, então tá decidido - falou o pai, entusiasmado, a bater a palma da sua mão sobre a mesa e a olhar para a mulher e as crianças, que retribuíram com um olhar esfomeado. - Pode trazer o rodízio de carnes Friboi!

- Excelente escolha. O senhor vai querer também a carne com papelão?

           - Sim! Com certeza!

           - Então é pra já! Sai um rodízio Friboi de carne podre e com papelão. Como diz o Tony Ramos na propaganda: “Confiança é Friboi!”

- Confiança é Friboi!! – repetiu em coro aquela família brasileira na churrascaria, a salivar de fome na expectativa de provarem todo o sabor daquelas carnes maravilhosas e do seu delicioso recheio de papelão.

CRESTOMATIA POÉTICA ERUDITA: "Uma grito distante da África", de Derek Walcott (1930-2017), poeta santa-lucense


sábado, 11 de março de 2017

Fundamentação da Metafísica dos Costumes do Corpo Metafísico: prolegômenos da crítica da razão proteica pura



A navegar pelo Facebook, deparo-me com vários amigos naquela rede social a compartilhar, em tom pilheriador, o texto de uma colunista social de Brasília. Na manchete, via-se a expressão curiosa que, para o divertimento geral da nação, seria capaz de arrancar risadas do mais sisudo dos leitores: “Juliana Puppin dá dicas para ter corpo metafísico em meio à rotina”.  

Li a notícia no afã de descobrir o que seria, afinal, o tal do "corpo metafísico". Saí frustrado. Tudo o que encontrei foi o conteúdo previsível dessas notícias de colunas sociais: uma advogada, socialite endinheirada, põe-se a explicar como cuida do seu corpo esbelto no dia a dia terrivelmente sacrificante e penoso de quem acorda todos os dias, obcecado, para exercitar-se e queimar o maior percentual possível de gorduras. Ali a jovem senhora é descrita como adepta de "treinos ondulatórios" - seja lá o que isso for - com o seu personal trainer e que tem curtido ultimamente praticar Muay Thai ao ar livre. Em resumo: um desfile de informações inúteis, típico, por sinal, desse tipo de publicação que visa a exaltar o ego de celebridades e “gente diferenciada” da alta sociedade brasileira.   

Obviamente, eu jamais leio conteúdos desse nível. Fi-lo, todavia, estimulado pela expressão “corpo metafísico”, desejoso de entender esse novíssimo aparato filosófico conceitual. Ao final, não achei explicação satisfatória para qualquer sentido “metafísico” que a autora da matéria quisesse emprestar à rotina de treinos da advogada marombeira.

Apesar disso, flagrei-me a matutar sobre aquela expressão curiosa da filosofia fútil: corpo metafísico. Não me parecia bastante afirmar que o emprego do termo “metafísico”, para referir-se ao “corpo”, era o simples resultado do analfabetismo filosófico da colunista que escreveu aquela matéria. Eu precisava ir além daquela obviedade. Tinha de haver algo mais naquele conceito inovador.        

Foi assim que, ensimesmado, percebi que aquela coluna sobre a rotina banal duma advogada estava, em verdade, a anunciar uma das maiores revoluções da história do pensamento filosófico mundial. Trata-se da "doutrina do corpo metafísico".

Proponho-me o desafio de explicar os prolegômenos dessa filosofia, caro leitor.

Filosoficamente, a "doutrina do corpo metafísico" tem como matriz teórica uma interpretação renovada da Grundlegung zur Metaphysik der Sitten ("Fundamentação da Metafísica dos Costumes"), do filósofo alemão Immanuel Kant.

Em sua obra clássica, Kant propunha o estudo da filosofia moral expurgado de quaisquer influências empíricas, fundadas em princípios da experiência, uma vez que a dimensão da obrigação moral não se situaria na natureza do homem ou de suas condições, mas sim no plano apriorístico da razão pura. Assim, o gênio alemão buscava extrair a base da sua filosofia pura dos costumes, a fonte dos princípios práticos que residem a priori na nossa razão. Kant, com sua filosofia moral pura, queria encontrar diretrizes práticas capazes de evitar a degenerescência dos costumes desapercebidos duma razão apriorística.  

Pois bem. A filosofia moral do "corpo metafísico" segue a da doutrina kantiana: é preciso cultivar um corpo calipígio, bem fornido, ancudo. Para isso, é preciso expurgar toda influência empírica sob a forma de gorduras e carboidratos. Só a pura razão proteica pode levar ao crescimento da musculatura em patamares olímpicos.

Dessa maneira, o sonhado "corpo metafísico" não pode ser atingido em um treino baseado em princípios da experiência – desses que o leitor encontra na academia de musculação da esquina, onde marombeiros ficam a puxar ferro dia e noite e a entupir-se de anabolizantes. Muito pelo contrário. O corpo metafísico é o resultado de um treinamento ondulatório, guiado por suposições apriorísticas de musas "fitness" na internet. Seu fim é levar o malhador (ou malhadora, tanto faz) ao paroxismo da calistenia pura: um estágio em que o marombeiro já não pratica o exercício para ficar sarado, ter um corpo bonito e  saudável. Não basta fazer as séries de exercícios para que o corpo seja considerado metafisicamente bombado. É preciso malhar não pelo corpo em si, mas pelo amor ao exercício! É preciso amar o supino, o voador, o agachamento; é preciso idolatrar cada movimento com o Kettlebel e usar tanto o haltere pintado quanto o emborrachado, pois, em se tratando de instrumentos ginásticos, o corpo metafísico não faz qualquer diferenciação. É necessário, finalmente, declarar sua fidelidade à razão proteica, materializada na marmita de peito de frango e batata doce, que deve acompanhar o marombeiro kantiano em todo e qualquer momento do seu dia ao lado do seu shake de whey protein. Na metafísica dos costumes do corpo metafísico, a disciplina na dieta e nos exercícios é tudo.  

É incontestável que o corpo metafísico está a cobrar um preço elevado, mas não sem recompensa. Quem segue essa doutrina pode aparecer em coluna social, a dar dicas de treinos para os mortais de corpos obesos, prenhes de lipídios. Como bônus, é possível ainda exibir a "boa forma metafísica" no Instagram. Afinal, no mundo físico, a carne pode até perecer com o tempo; mas, no mundo metafísico e idealizado das fotos compartilhadas nas redes sociais, o corpo é puro e etéreo, o sorriso é plástico e a inveja do "corpo metafísico" é imortal - ou, para usar uma expressão bem ao gosto dos causídicos marombeiros, imprescritível.  

Esses são os prolegômenos da crítica da razão proteica pura. Portanto, caro leitor, da próxima que fores a uma academia, lembra-te dos fundamentos da metafísica dos costumes do corpo metafísico. Expurga do teu treinamento todo e qualquer princípio da experiência de comer carboidratos; afasta de ti este cálice que é a vileza da gordura! Lembra-te sempre de que não basta malhar todos os dias para que a maromba seja considerada moralmente boa. É preciso malhar por amor ao exercício. Só assim se pode alcançar o pináculo da existência humana – o corpo metafísico.        

CRESTOMATIA POÉTICA ERUDITA: "Pensar nos rouba o olhar", Roberto Juarroz (1925-1995), poeta argentino


domingo, 5 de março de 2017

ANTOLOGIA RECOMENDADA: "Os Melhores Textos da BULA"


   Ao leitor que está a acompanhar assiduamente este blogue, e que presumivelmente se põe a apreciar meu trabalho como escritor, faço gosto em anunciar que já está à venda a antologia “Os Melhores Textos da BULA”.

Organizada pelo jornalista e poeta Carlos William Leite, a edição está a reunir alguns dos melhores textos publicados na Revista BULA, uma das principais publicações eletrônicas de jornalismo cultural do Brasil. São artigos, ensaios e crônicas de escritores valorosos, cujo trabalho vale a pena conhecer.  

Para meu especial contentamento, a seleta está a contar com um ensaio de minha autoria. Originalmente publicado aqui mesmo no blogue Metamorfose do Mal, o ensaio foi republicado na Revista Bula e ora convertido em texto impresso pelo editor do livro.

Sinto-me particularmente feliz em participar dessa antologia. Explico. Já faz alguns anos que estou a colaborar, ainda que modo intermitente, com uma coluna na Revista BULA. Tal colaboração permitiu que meu trabalho no jornalismo cultural, sobretudo na crítica de arte, originalmente restrito ao pequeno número de leitores que estão a acessar a miúdo meu blogue Metamorfose do Mal, pudesse estender-se a um público infinitamente mais amplo, dada a popularidade extraordinária de que está a gozar o sítio da BULA nas redes sociais, a contabilizar todos os meses milhões e milhões de acessos em todo o Brasil.

Nessa toada, sou muito grato ao incentivo que recebi dos jornalistas Euler Fagundes de França Belém, editor do Jornal Opção, e do já citado Carlos William Leite, editora da BULA, os quais foram os primeiros a abrir espaço nos jornais para minhas colaborações como crítico de arte. Essas oportunidades contribuíram decisivamente para que eu permanecesse motivado a escrever sobre cultura, não obstante não se cuide da minha área de atuação profissional e, portanto, não se constitua na fonte do meu sustento.            

Desse modo, estou a deixar registrado o convite para o leitor: adquira o seu exemplar da antologia “Os Melhores Textos da BULA”.

ANALECTO DO INTELECTO: João Guimarães Rosa (1908-1967), escritor brasileiro