terça-feira, 25 de dezembro de 2012

EU TE DAREI A LUA, MARY, PORQUE EU TE AMO: o amor verdadeiro em "A Felicidade Não Se Compra", de Frank Capra.


What is it you want, Mary? What do you want?
You want the moon?
Just say the word and I'll throw a lasso around it and pull it down.
Hey. That's a pretty good idea.
I'll give you the moon, Mary.
George Bailey in: "It's a Wondeful Life" (1946).
 
Um Natal solitário

O Natal é um dos períodos mais encantadores do ano. É nele que o ocidente externa vários dos seus rituais oriundos da mais longeva tradição cultural. Trata-se de uma festa cristã por excelência, mas nem por isso os que não se deixam guiar por nenhuma espécie de credo religioso deixam de comemorá-la. Afinal, a celebração do Natal é símbolo de uma determinada cultura - e todos estamos imersos num dado contexto cultural. Ignorar a cultura é ignorar um dos elementos mais importantes da vida. E o Natal é isto: é uma tradição cultural que não só estimula a convivência em famílias - uma das instituições principais em que se encontra nucleada a sociedade -, como também, ainda que nem sempre de maneira genuinamente sincera, alimenta algum grau de esperança nas pessoas, de que a vida possa ter algum sentido. E esse sentimento (de esperança na humanidade), seja qual for seu móvel, religioso ou não, é sobretudo relevante, para falar com Norman Mailer, no grande vazio em que vivemos absortos.   

Eu gosto muito do Natal. É a minha época favorita do ano. Mas, ao contrário, do que possa parecer, não pelas razões óbvias que animam a maioria das pessoas: a tradicional "troca de presentes", algo que satisfaça o desejo consumista de ganhar um presente legal, algo de que possa jactar-se ao longo do ano. Isso porque fui criado numa família atípica (sei-o bem disso hoje), para a qual o ritual de "troca de presentes" nunca teve muito significado. Se existiu, durou durante breve momentos da tenra infância. Depois, cessou. Tampouco vivi o tradicional ritual das "reuniões em família", onde é comum a parentela reencontrar-se, na tentativa de avivar laços de amizade e companheirismo que (presume-se) a cotidianidade dos muitos afazeres não permite. O motivo é que meus parentes moravam (como ainda moram) em outras cidades, em outros Estados. Era impossível reunir-se, portanto. No Natal, eu estava só.

Concertos de Natal

A atriz Donna Reed (1921-1986), intérprete de Mary Hatch Bailey, uma das personages femininas mais famosas da história do cinema.
Essas circunstâncias peculiares da minha biografia, que poderiam afigurar-se como causas desencadeadoras de trauma infantil, tiveram, entretanto, o condão de impulsionar o meu amadurecimento intelectual precoce. Eu me sentia cindido entre dois mundos, tal qual o jovem Sinclair, protagonista de um dos romances mais importantes da minha vida, Demian (1919), do alemão Herman Hesse:

Es wurde num alles anders. Die Kindheit fiel um mich her in Trümmer. (...) Eine Ernüchterung verfälschte und verblaβte mir die gewohnten Gefühle und Freuden, der Garten war ohne Duft, der Wald lockte nicht, die Welt stand um mich her wie ein Ausverkauft alter Sachen, fad und reizlos, die Bücher waren Papier, die Musik war ein Geräusch. So fällt um einen herbstlichen Baum her das Laub, er fühlt es nicht, Regen rinnt an ihm herab, oder Sonne, oder Frost, und in ihm zieht das Leben sich langsam ins Engste und Innerste zurück. Er stirbt nicht. Er wartet. [1]  

Como eu não tinha assunto para tratar com os outros garotos da minha idade, os quais normalmente estavam a chafurdar na conhecida barbárie futebolística brasileira, onde o torcedor fanático projeta-se como um guerreiro  de um ente mítico chamado "clube de futebol", para o qual a vitória do time autoriza toda sorte de achincalhe vulgar, nos meus "natais solitários" eu me refugiava nos livros. No fundo, eu sempre senti que, quem tem como amigos Herman Hesse, Thomas Mann, Fiódor M. Dostoiévski, Machado de Assis, William Faulkner, Paul Celan, Honoré de Balzac, Georg Trakl, Antero de Quental etc., não precisava de mais ninguém (hoje, mais maduro, vejo que isso não é de todo saudável). Pois a leitura sempre foi para mim antes de tudo um exercício de diálogo. Eu não leio; converso com o autor. A cada livro, eis um novo conselho. E ter como tutores alguns dos homens mais inteligentes e sensíveis que já pisaram sobre a face da terra é um privilégio para poucos (os poucos que se aventuram a ler).

Mas no meu "Natal solitário" o que eu mais gostava mesmo de fazer era tocar. Com a casa vazia, os parentes distantes o suficiente para não ter de presenciar aquelas típicas reuniões familiares cheias de diálogos constrangedores, onde estranhos emulam alguma afinidade que não seja meramente sanguínea, o silêncio imperava. Aí eu intuia que se formava o cenário perfeito para a depurada audição do músico. Pegava, então, meu violão, minhas partituras e tocava. Tocava muito. Muito mesmo. Horas e horas, com todo o coração. Não via o tempo passar durante os meus "concertos". Gostava de tocar especialmente a música erudita antiga, já que, no estudo do meu instrumento no conservatório, sempre me inclinei para a formação de um repertório fundado no renascentismo inglês (não sem razão Julian Bream é meu violonista favorito). Mas também me agradava tocar peças barrocas, pois Bach sempre foi meu compositor favorito, além de, no fundo, ser o grande "pai" de todo apaixonado por música erudita (meu caso). E assim eram os meus natais mais felizes. Porque a música sempre foi uma das minhas principais fontes de felicidade.
    
Um Natal inesquecível no cineclube

Mary Hatch na cena em que reencontra George, seu amor de infância: paixão à primeira vista.

Esse meu ritual idiossincrático de celebração natalina durou até aos meus dezesseis anos. Foi quando, então, entusiasmado pela descoberta do "cinema de arte", passei a frequentar um cineclube da cidade. À época, eu era sobretudo influenciado pelo meu professor de filosofia no colégio, um crítico de cinema que dizia que na "sétima arte" havia muito que um filósofo poderia descobrir como campo em potencial de elucubrações. Como eu sempre fui curioso, decidi averiguar a pista que o professor lançava. E o cineclube foi o rastro que segui. 

Cuidava-se de um projeto de alto nível, realizado num auditório confortável de um grande prédio da cidade. Era mantido por uma operadora de telefonia móvel, que mui provavelmente queria estimular a cultura como parte da "função social da empresa" no mercado capitalista. O cineclube funcionava assim: exibia-se um filme, ao final do qual se seguia uma discussão entre os presentes sobre as interpretações multifárias da película, tudo sob a coordenação de um mediador - um conhecido crítico de cinema da cidade. Eu me recordo que, dentre os que frequentavam o cineclube regularmente, eu era o mais novo. Graças a esse espaço, eu pude conhecer o cinema de Krzysztof Kieslowki, Ingmar Bargman, Stanley Kubrick, Andrei Tarkovski, John Cassavetes, Akira Kurosawa, entre tantos outros grandes nomes. Foi um período muito rico da minha vida, de grande crescimento espiritual. É verdade que eu nunca falava nada nos debates que ocorriam no auditório do cineclube (conhecia muito pouco sobre cinema, não tinha gabarito), mas ouvia com atenção todas as análises, de ângulos de câmeras a reflexões filosóficas sobre as tramas. Nada passava despercebido. E "saber ouvir" o que gente de alto nível cultural diz ou escreve foi (e continua sendo!) uma das minhas maiores virtudes.

Pois foi esse cineclube que mudou para sempre a minha rotina natalina de concertos musicais. Foi graças a ele que, próximo ao Natal de 2001, num dos últimos debates ocorridos no cineclube (o projeto seria cancelado tempos depois, sob avaliação da empresa de que não valia a pena manter uma iniciativa que atraía tão pouco público, sendo mais rentável para a marca investir em trios elétricos no carnaval), assisti a um dos filmes mais lindos de toda a minha vida: "A Felicidade Não Se Compra", de Frank Capra. Ainda hoje, num suspiro, de chofre, ponho-me a recordar o quão grande foi a minha sensação de felicidade ao ver aquela película. Aquele mês de dezembro foi inesquecível. Tudo graças ao filme de Capra.

O céu são os outros

Mary Hatch e George Bailey.

Naquela época eu não sabia, mas aprendi com os críticos do cineclube que "A Felicidade Não Se Compra" é um dos baluartes do cinema nos Estados Unidos, onde é considerado de exibição obrigatória na época natalina. A história gira em torno de George Bailey (James Stewart, em atuação memorável!), um homem nascido e criado numa cidadezinha do interior dos Estados Unidos chamada Bedford Falls, que, desde a infância, acalenta o sonho de viajar pelo mundo, mas, por uma série de vicissitudes, acaba nunca deixando a cidade. Na véspera do Natal, pressionado pelo fracasso nos negócios, ameaçado de ir para a cadeia pelo ganancioso sr. Henry Potter (Lionel Barrymore), o homem mais rico de toda a cidade, Bailey vê-se desesperado e deprimido, inclinando-se ao suicídio. É quando Deus envia seu anjo da guarda, o atrapalhado Clarence Odbody (Henry Travelers), para dissuadi-lo da ideia fatal. Clarence, então, mostra a George Bailey uma realidade alternativa, onde ele não existe, e como a sua inexistência afetaria a vida das pessoas em Bedford Falls.

O filme, cujo título original It's a Wonderful Life (É uma vida maravilhosa, em tradução livre) é por certo inferior ao recebido no Brasil ("A Felicidade Não Se Compra" é expressão de muito mais elegância poética), revela bem o otimismo com que seu diretor, Frank Capra, buscou conduzir a película. Esse otimismo era próprio do período, já que o filme foi rodado em 1946, num momento em que os Estados Unidos acabavam de sair vitoriosos do esforço de guerra. Curiosamente, o filme, que é hoje reconhecidamente uma obra-prima, foi um fracasso de bilheteria à época do seu lançamento, o que só corrobora a tese de que, muita vez, o grande público demora a aperceber-se das qualidade artísticas de uma obra cinematográfica.

Debruçando-me sobre uma possível interpretação do filme, noto quão bela é a mensagem dessa tocante fábula natalina, de sua declaração de amor à vida, onde mesmo o mais, aparentemente, insignificante dos homens serve a um propósito maior, que é o de tocar tantas outras vidas - vidas estas que não seriam decerto as mesmas acaso tivessem sido privadas do convívio com o próximo. O filósofo francês Jean-Paul Sartre, em frase famosa, repetida à exaustão, ainda que a maioria não a compreenda no contexto do existencialismo em que foi proposta, sentenciou que "O inferno são os outros". Pois bem. Guardadas as devidas proporções, não me parece incorreto dizer que, na visão otimista do pós-Guerra do diretor Frank Capra, "o céu são os outros". E essa talvez seja a mais bela das mensagens que alguém poderia compreender como parte da essência do Natal: longe de ímpetos consumistas por presentes, vaidades tolas, egoísmos vãos, precisamos mesmo é de afeto genuíno, de carinho sincero; precisamos uns dos outros. No Natal, precisamos amarmo-nos uns aos outros, pois devemos lembrar que "quem tem amigos nunca é um fracasso".

Em busca do amor de Mary Hatch

 
Disse acima que "A Felicidade Não Se Compra" mudou minha rotina natalina. Pois bem. De modo a retomar essa raciocínio, penso que o dizer não é exagero, já que, se antes eu me dedicava ao violão, hoje, mais importante até do que a música, é cumprir meu "eterno ritual" de assistir ao filme. No dia de Natal, rever "A Felicidade Não Se Compra" é a minha mais adorável obrigação. Mesmo quando estou a passar o Natal fora da cidade (às vezes até do País!), eu sempre procuro, de alguma maneira, assistir à obra-prima de Capra. Não somente porque é um dos "filmes da minha vida", mas sobretudo porque é o tipo de filme que só faz sentido assistir quando do período natalino. Isto é, quando, como que por mágica, a vida parece diminuir seu ritmo, acalmando nossos corações acelerados pela azáfama cotidiana, levando-nos a parar, nem que seja um pouquinho, e refletir sobre nós mesmos, sobre nosso egoísmo, sobre o que temos feito para ajudar outras pessoas. Momento raro. E extremamente importante.

No entanto, de todas as influências que "A Felicidade Não Se Compra" poderia ter exercido sobre mim, a mais curiosa delas diz respeito à Mary Hatch (interpretada pela lindíssima Donna Reed) - a esposa de George Bailey na trama. É de uma sensibilidade única a maneira habilidosa com que Capra conduz a direção dos seus atores, de modo a enaltecer no enredo o amor, nascido ainda na infância, entre George e Mary. O amor que existe entre eles é de uma ternura especial, de uma inocência muito rara hoje em dia, como fica evidente na cena em que eles dançam na festa de formatura do irmão de George. É, acima de tudo, um sentimento sincero - sincero como o amor que todos nós gostaríamos de ter um dia na vida.

 O amor não se compra

 
O papel de Mary Hatch na trama não costuma ser muito debatido, até porque a fábula de Capra é sobre a vida em geral, não necessariamente sobre o casamento. No entanto, a cada Natal, a cada vez, portanto, que revejo o filme, mais me emociona a beleza poética da força do amor de George por Mary, como fica evidente na cena em que ele promete dar a lua para ela. Ou, ainda, na constatação derradeira de George de que o amor de Mary e de seus filhos era motivo mais do que suficiente para que ele não viesse a dar ouvidos ao vilão Potter, quando afirmou que ele "valia mais morto do que vivo". Talvez Mary Hatch represente uma nova dimensão do otimismo de uma vida conjugal feliz, otimismo tão bem retratado nesse filme por Capra.

O fato é que, neste Natal, assisti mais uma vez ao filme (desta vez em alta definição, numa cópia em blu ray que trouxe dos Estados Unidos, totalmente em inglês!) e quis escrever sobre "A Felicidade Não Se Compra", para enaltecer a personagem Mary Hatch. Certa vez, li num jornal, num artigo de um crítico de cinema tão apaixonado pelo filme quanto eu, que Mary Hatch era a "esposa que todo homem gostaria de ter". Nunca me esqueci disso. E desde a adolescência, quando assisti ao filme pela primeira vez, ainda que inconscientemente, a verdade é que eu sempre procurei ver nas mulheres pelas quais me apaixonei alguma das (muitas) qualidades que encontro na esposa de George Bailey (como é doce o olhar de Mary...). Parafraseando o título de um dos livros do escritor bengali Buddhadeva Bose, a Mary Hatch é o "meu tipo de garota". Porque quando penso no amor dela por George, um dos mais lindos de toda a história do cinema, sobre como ela resistiu bravamente às oscilações intempéricas do marido nos negócios, sempre estando ao seu lado, vencendo o desânimo, não desistindo de George mesmo quando ele se deixara abater a tal ponto que caminhava, amargurado, para o suicídio, penso que tais atitudes constituem o que se pode esperar, no mais lídimo significado da expressão, de um amor verdadeiro. Porque amor, assim como a arte, é resistência. E porque Mary Hatch resistiu a tudo por amor a George, por saber que o amor verdadeiro, tal qual a felicidade, não se compra.               

Notas:
[1] A tradução é de Ivo Barroso: "Depois tudo mudou. A infância se desfez em ruínas. (...) Uma vaga desilusão foi debilitando e esfumando meus sentimentos e minhas alegrias habituais; o jardim já não tinha perfume, o bosque não mais me atraia, o mundo se estendia a meu redor como um saldo de trastes velhos, insípido e desencantado; os livros eram papel; a música, ruído. Exatamente como a árvore do outono ao perder suas folhas que lhe caem ao redor, sem senti-lo e quando a chuva, a geada e o sol lhe resvalam pelo tronco, a medida que a vida se retira para o mais íntimo e recôndito de si mesma. Não morre. Espera." 

REFERÊNCIAS

HESSE, Herman. Demian: Die Geschichte von Emil Sinclairs Jugend. Text und Kommentar. Heribert Kuhn Kommentator. Taschenbuch. Auflage 7. Berlin: Suhrkamp Verlag. 2000, 240 p. (Suhrkamp BasisBibliothek).
HESSE, Herman. Demian - Livro vira-vira 2. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010. 154 p. (Coleção Saraiva Vira-Vira 2 livros em 1).

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

JESUS NÃO LÊ NO PAÍS DOS ANALFABETOS


Brasil: um país de banguelas

Nenhuma nação se afirma fora dessa louca paixão pelo conhecimento, sem que se aventure, plena de emoção, na reinvenção constante de si mesma,
sem que se arrisque criadoramente.
Nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisa, da tecnologia, do ensino. E tudo isso começa com a pré-escola.  
Paulo Freire, pedagogo brasileiro,
in: "Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar" (1997).
 
O ano era 1987. O movimento pela redemocratização do Brasil, especialmente acentuado a partir de 1985, convulsionava boa parte das cidades paralelamente ao ocaso da ditatura militar então imperante. Falava-se em uma nova Constituição - uma que fosse "cidadã", que trouxesse novas leis, novas instituições, mas também novos direitos. Aspirava-se à dignidade. Havia o desejo de renovação das esperanças. Democracia era a palavra da vez. 

Nesse mesmo ano de 1987, prelúdio de tantas mudanças políticas, o grupo de rock paulista "Titãs" lançou seu quarto álbum de estúdio intitulado de "Jesus não tem dentes no país dos banguelas". O sugestivo título também reproduzia o nome dado à sétima faixa do disco - uma canção tipicamente punk, com um som cru a encimar uma letra que se resumia a repetir isto: "Jesus não tem dentes no país dos banguelas, Jesus não tem dentes no país dos banguelas, Jesus não tem dentes no país dos banguelas..."

Essa  canção de verso único hoje se encontra praticamente esquecida. Não toca nas rádios. A própria banda raramente a executa nos seus shows (o que significa dizer que os fãs pedem outros hits). Fim injusto para um dos versos mais criativos já compostos no cancioneiro nacional.  

De fato, considero "Jesus não tem dentes no país dos banguelas" uma sentença riquíssima em interpretações. Indo da poesia à filosofia, da sociologia à história, creio seja possível dela extrair um retrato autêntico do Brasil - um "país de banguelas". Com uma única frase, os Titãs conseguiram sintetizar, de forma genial, toda a alma de um povo.

A banguelice no mercado de consumidores-mercadorias

A escritora e jornalista Danuza Leão: ser especial é ser exclusivo, é "ter o que ninguém tem". (Foto: Rafael Andrade/Folhapress). 

Compreender o Brasil como "um país de banguelas" pressupõe uma leitura crítica da expressão - para além da simples literalidade. "Banguela" não é apenas o desdentado, o canhanha - embora o adjetivo possa a ele referir-se também. O que se quer significar é mais do que um problema generalizado nas arcadas dentárias, onde epidemias de gengivite e periodontite grassam, a corroer a raiz dos dentes, a gerar a perda progressiva das "peças da boca". A "banguelice" é de outra ordem. De uma natureza muito mais difícil de curar. 

"Banguela" é o país onde prolifera a cultura do "homem medíocre". Aqueles cujos dentes estão a cair são os mesmos que, paradoxalmente, exibem belos sorrisos nos programas de televisão, nos anúncios em outdoor, nas colunas sociais dos jornais. É a mesma "gente diferenciada" que deseja expor a própria riqueza, ridiculamente, nas páginas das revistas de "celebridades", numa autoafirmação de proeminência social tão patética quanto falaciosa. É a high society das colunistas endinheiradas, que reclamam da injusta "isonomia" da vida financeira, que faz porteiros de prédios viajarem até Nova York, retirando o glamour exclusivista da charmosa "Big Apple" estadunidense.    
 
Afinal, qual a graça de ter dinheiro? Quanto mais coisas se tem, mais se quer ter e os desejos e anseios vão mudando - e aumentando - a cada dia, só que a coisa não é assim tão simples. Bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que só nós temos acesso; se todo mundo fosse rico, a vida seria um tédio.
(...)
Queremos todas as brincadeirinhas eletrônicas, que acabaram de ser lançadas, mas qual a graça, se até o vizinho tiver as mesmas? O problema é: como se diferenciar do resto da humanidade, se todos têm acesso a absolutamente tudo, pagando módicas prestações mensais? (LEÃO, 2012).

O excerto acima, escrito por Danuza Leão, colunista do jornal Folha de São Paulo, é um autêntico representante do pensamento "banguela". É banguela no sentido histórico, pois quer ressucitar o status da França feudal pré-revolucionária, quando a sociedade dividia-se em estamentos (naturalmente, Danuza Leão ocupando posto honorífico junto à nobreza). Mas é sobretudo "banguela" ao confundir "exclusividade  na sociedade de consumo" com "significado ontológico do ser-no-mundo". A prevalecer o raciocínio da autora, a filosofia ontológica e a existencialista torna-se-iam despiciendas. Para quem acha que a existência humana pode ser sumarizada no anelo exclusivista-consumista de "ter o que ninguém tem", qualquer "guarda-chuva-smartphone-musical-que-faz-café-e-se-transforma-em-esqui-para-deslizar-sobre-a-neve-dos-Alpes-suíços" é suficiente para resolver todas crises de identidade do mundo. Isso porque

Na sociedade de consumidores, a dualidade sujeito-objeto tende a ser incluída sob a dualidade consumidor-mercadoria. Nas relações humanas, a soberania do sujeito é, portanto, reclassificada e representada como a soberania do consumidor - enquanto a resistência ao objeto, derivada de sua soberania não inteiramente suprimida, embora rudimentar, é oferecida à percepção como a inadequação, inconsistência ou imperfeição de uma mercadoria mal escolhida. (BAUMAN, 2008, p. 30-31).

Dessa forma, na sociedade de massas, das massas de consumidores, a subjetividade fica presa ao objeto de consumo. A condição da existência humana é reduzida a uma relação dialética sujeito-objeto centralizada  no fetichismo do consumo, onde o consumidor compra impulsionado não pela sua necessidade, mas sim por um hábito descomedido que associa, o mais das vezes irrefletidamente, realização pessoal com a posse de mercadorias (um carro importado, um terno italiano, uma bolsa de couro de avestruz, uma casa de verão na praia, um tênis "de marca", um aparelho de telefone celular etc.). Mas o que o consumidor não percebe é que ele próprio, ao participar desse jogo, deixa-se manipular por um projeto de sociedade cujo fim é convertê-lo também numa mercadoria. O estratagema mercadológico é substituir o defasado pelo novo, o antigo pelo moderno, dando a falsa impressão de que a existência humana renova-se pari passu ao lançamento que se adquire no caixa de uma loja. Mas, como mercadoria que é, o consumidor também precisa ser renovado, tanto quanto o objeto de consumo. No final das contas, nesse tipo de sociedade, a existência de ambos - sujeito e objeto, metamorfoseados sob a forma de "consumidor e mercadoria" - vão para o mesmo lugar: a lata do lixo. 

A educação no país dos banguelas

Estudantes do ensino médio da rede estadual de Vila Velha (ES) protestam em frente ao Ministério Público local contra a falta de infraestrutura das escolas. Em destaque, a faixa exibe erros grosseiros de português: "aumentar" escrito com "L", "Porque" (junto) e "horaria" (sem acento). Não fossem penalmente inimputáveis, algum promotor poderia ter-lhes decretado ali mesmo a prisão em flagrante pelo assassinato da gramática. (Foto: Guido/Gazeta Online/2009).

Porém, o dilema do Brasil ignorante não se resume ao ideário de superioridade pessoal pelo poder de consumo. Ele avança no único dos campos da atividade humana que permite ao homem diferenciar-se da rusticidade do reino animal: a educação. Temas como civilidade, respeito ao próximo, preservação do patrimônio público, consciência ambiental etc. só fazem sentido para quem tenha recebido um mínimo de instrução, ampliando sua leitura de mundo para além dos instintos decorrentes da animalidade. 

A afirmação que acabo de fazer sequer se pode considerar uma ideia recente no Brasil. De longa data se sabe da relevância da educação para o desenvolvimento das potencialidades humanas, assim como para que haja um mínimo de respeito e solidariedade no convívio social. Exemplo disso é o pensamento do filósofo brasileiro Matias Aires (desafio o leitor a encontrar alguém, mesmo entre as pessoas mais cultas e estudiosas, que já tenha ouvido falar dele). No século XVIII, ao publicar o seu Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1752), o pensador admoestava, com indiscutível pessimismo, para a necessidade do aprendizado de regras que assegurassem um modo de viver aceitável perante a natural propensão da natureza humana para o mal. Estas são as suas palavras: 
 
A nossa natureza propende para o mal, e por isso foi preciso prescrever-lhe um certo modo de viver; vivemos por regras. No exercício do mal achamos uma espécie de doçura, e de naturalidade, as virtudes praticam-se por ensino, o vício sabe-se, a virtude aprende-se. Miserável condição do homem! O que devia saber, ignora, e o que devia ignorar, sabe: para o que nos é útil, necessitamos de estudo, e para o que nos é pernicioso não; para o bem necessitamos de lembrança, e para o mal de esquecimento. (AIRES, [18-], p. 24).

Nesse sentido, é coerente a educação do "país dos banguelas" não ter muito do que se orgulhar. Em 2011, ficou em 88º lugar no ranking de educação da Unesco, atrás de "potências mundiais" do porte do Cazaquistão (4º), Azerbaijão (23º), Tonga (41º), Belize (75º). E agora, em 2012, novamente volta a surpreender seu povo, logrando um honroso penúltimo lugar no índice comparativo de desempenho educacional, desenvolvido pela Economist Intelligence Unit (EIU) e publicado pela Pearson como parte do projeto The Learning Curve, tendo por base dados de 40 países. Perdemos de lavada para a Finlândia e a Coreia do Sul. Mas vencemos a Indonésia. Não ficamos em último, portanto. Ufa! Saber que há no mundo sistema educacional em situação pior do que o nosso já é uma vitória!    

A podridão dos nossos dentes


Mencionei o "problema da educação" brasileira propositalmente. Penso seja aí que se revela, em toda sua inteireza, a podridão dos nossos dentes. É quando o sorriso plástico das propagandas de final de ano toma a forma do semblante casmurral dos que não sabem ler nem escrever e, portanto, estão presos fatalmente a uma "leitura de mundo" pauperizada. Como escreveu Paulo Freire (1989, p. 9), 
 
Me parece indispensável (....) uma  compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. (FREIRE, 1989, p. 9). 

E não estou a falar aqui apenas do campônio que passou a vida toda trabalhando na lavoura, submetido de sol a sol ao peso de uma coluna vergada pelo bracejo da sua enxada, arrimo de uma prole tão extensa quanto a de um coelho. Falo da gente "culta" da cidade, onde há shopping center, restaurantes de comidas refinadas, academias para a prática da calistenia, salões de beleza. Falo da "badalação" de corpos esbeltos na praia, dos agitos nas boates, das roupas de grife, dos desfiles de moda, dos carros de luxo. Mas não falo da escola. Sim, há escolas no Brasil. Mas não importa. Elas não ocupam um papel central no "país dos banguelas".


Escola literalmente caindo aos pedaços em Itaporanga (SP). Em um local de trabalho macabro como esse, que mais parece cenário da série de TV "The Walking Dead", não há teoria pedagógica que resista. Foto tirada em 2012. 

No Brasil, quando alguém se lembra da educação é para criticá-la. O ciclo do insucesso escolar todos conhecem: professores com salários ultrajantemente baixos, a ensinar alunos desmotivados em escolas literalmente "caindo aos pedaços".  Nas universidades, os cursos de licenciatura e de pedagogia tornam-se campos de franco desprestígio social, submetidos ao preconceito corrente que afirma que, para essas faculdades, vão apenas os alunos "menos inteligentes", que "não conseguiram passar em nada melhor, como medicina ou direito". As teorias pedagógicas passam a ser estigmatizadas pela inutilidade, haja vista qualquer um se dispor a lecionar no mais absoluto improviso, na total falta de precisão técnica e reflexão ética sobre a missão do educador. Finalmente, a profissão de professor é convertida em símbolo redivivo do calvário cristão: lecionar é uma função tanto mais indigna quanto mais associada a um ambiente de trabalho hostil e degradande, onde as escolas são sujas, mal organizadas, tomadas por alunos violentos, patrulhadas pela criminalidade. Acrescente-se ainda que, em geral, os agentes do processo de ensino-aprendizagem têm péssima formação. Por isso, é comum o professor ensinar sem o saber, e o aluno aprender sem a mínima vontade - eis o celebérrimo "pacto de mediocridade" da educação brasileira! Essa última constatação é crítica, pois

O fato, porém, de que ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não deve significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. A responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua prática. (FREIRE, 1997, p. 19).   

No "país dos banguelas", o imaginário social sobre a educação é simples: a carreira de professor (educador) é sintoma de pobreza. Pobreza significa perda de poder (de consumo). Como na sociedade das massas dos consumidores-mercadorias o ser humano vale pelo que pode comprar (exclusividade custa caro), é forçoso concluir que, no léxico do "país dos banguelas", magistério é sinônimo de martírio, sofrimento.

Atento ao contexto brasileiro prenhe de políticas públicas ineficientes na área da educação, Paulo Freire (1997, p. 38) curiosamente incluía, no rol de qualidades indispensáveis ao melhor desempenho de professoras e professores progressistas, a virtude da "amorosidade". Eis a lição do pedagogo:

Mas é preciso juntar à humildade com que a professora atua e se relaciona com seus alunos uma outra qualidade, a amorosidade, sem a qual seu trabalho perde o significado. E amorosidade não apenas aos alunos, mas ao próprio processo de ensinar. Devo confessar que, sem nenhuma cavilação, não acredito que, sem uma espécie de "amor amado", como diria o poeta Tiago de Melo, educadora e educador possam sobre-viver às negatividades de seu que-fazer. Às injustiças, ao descaso do poder público, expresso na sem-vergonhice dos salários, no arbítrio com que professoras e não tias que se rebelam e participam de manifestações de protesto através de seu sindicato, são punidas mas apesar disso continuam entregues ao trabalho com seus alunos.
 
É preciso contudo que esse amor seja, na verdade, um "amor amado", um amor brigão de quem se afirma no direito ou no dever de ter o direito de lutar, de denunciar, de anunciar. É essa a forma de amar indispensável ao educador progressista e que precisa de ser aprendida e vivida por nós. (FREIRE, 1997, p. 38).  

E é assim que a profissão de professor, no Brasil, só se sustenta enquanto uma paixão abnegada, uma renúncia aos bens materiais, um desprendimento diante do desprezo da sociedade e do descaso do Poder Público, um devotamento quase santo ao ofício de ensinar, de difundir o conhecimento.

Cultura inútil no país dos banguelas

Mãe brasileira ensina desde cedo ao filho a "arte" de fazer compras em shopping center. É a nova geração de "banguelas" do país.
Quando as estatísticas anunciam o fiasco nacional em prover o ideário da "pátria mãe gentil" no processo educativo, logo são eleitos os culpados: o governo, o Estado, as autoridades. Mas o problema da educação no "país dos banguelas" é ainda mais grave. Não se restringe a uma gestão ineficiente ou à corrupção no desvio dos recursos públicos; tampouco a profissionais mal formados ou ao inegável desprestígio social da carreira do  magistério. Ele é um problema de cultura de uma sociedade inculta que insiste em não admitir sua própria vergonha. Não admite, porque sequer possui juízo crítico suficiente para reconhecer a própria ignorância.

Vejamos: quantos pais se preocupam com a educação de seus filhos? Todos, será a resposta padrão. Mas será que isso é mesmo verdade? Será que em algum momento de suas vidas os tutores refletiram seriamente sobre o desenvolvimento intelectual das crianças? Ou apenas as criam no esteio da tradição avoenga que herdaram? Quantos pais, desde cedo, levam seus filhos aos estádios de futebol, estimulando-os a torcer por tal ou qual time, a vestir a camisa com as cores do clube? Mas quantos, desses mesmos pais, algum dia levaram seus filhos a uma biblioteca, explicando-lhes a serventia dos livros empilhados em cada uma das muitas prateleiras? Quantos desses pais têm o hábito de fazer um passeio com seus filhos por uma livraria, presenteando-os com o "brinquedo" livro? Quantos desses pais foram capazes de escrever algo mais do que um SMS em toda sua vida e dedicar aos seus filhos? Mudando o prisma: quantos desses filhos algum dia viram seus pais a ler livros? Quantos desses filhos ouviram histórias contadas por seus pais? Mas quantos desses mesmos filhos não passam horas refestelados numa poltrona, absorvendo a cultura inútil da televisão, a seguir o exemplo paterno e materno? Ainda, quantos desses filhos não terão seus próprios filhos e os levarão ao shopping center neste final de ano, movidos pelo desespero consumista de vencer a famigerada "corrida das compras" do Natal, competição da qual participam desde a mais tenra idade, tradição cultural passada de geração em geração?  Os pais matriculam seus filhos em cursos de inglês, porque o domínio do idioma é necessário para "aumentar as chances de conseguir um emprego numa sociedade globalizada". Mas ninguém diz ao garoto que o aprendizado de uma língua pode abrir-lhe as portas, por exemplo, da literatura em língua inglesa, lida agora sem a intermediação dos tradutores, estimulando-o a gostar de uma balada, não a vulgar, mas a poética, como em The Rime Of The Ancient Mariner de Samuel Taylor Coleridge. A impressão que fica é que, daqui a pouco, se o mercado passar a exigir o aprendizado do mandarim, iremos aprendê-lo não para ler Yu Hua ou Mo Yan no original, mas para conseguir um lugar ao sol na fábrica de iniquidades do socialismo de mercado da China.

Ainda com relação à educação no "país dos banguelas", outro aspecto a preocupar-me diz respeito à total falta de propósito no projeto educativo. Afinal, que espécie de sociedade queremos? Eis a pergunta fundamental, mas que ninguém se propõe a responder. Pelo menos, não seriamente. Queremos uma sociedade inclusiva, tolerante, como sói acontecer em países democráticos? Ou aceitamos um pluralismo de fachada, no qual os grupos minoritários estão a ser esmagados pela ojeriza social? Se é a democracia que nos move, então por que, desde cedo, somos ensinados a discriminar o diferente, a condenar ao ostracismo quem não se adequa ao arquétipo do que entendemos por uma "pessoa normal"? Quantos cidadãos religiosos não tratam o ateu como um inimigo, o ímpio a ser ostracizado, visto que condenado inexoravelmente ao inferno? Quantos não estão a ser vilipendiados por sua orientação sexual (alguns até espancados ou submetidos a tratamentos lobotômicos baseados na "cura de Deus")? Quantos não estão a ser excluídos pela cor de sua pele, quando não injuriados por ofensas sub-reptícias, veladas na vergonha sempre recôndita de nossos mais terríveis males? Por que somos tão arrogantes ao ponto de pensar que dominamos a "fórmula da felicidade", distante da qual nenhum outro ser humano pode ser feliz? Quem já teve a humildade de reconhecer os próprios vícios, parar por um instante e questionar-se: é isto mesmo o que eu quero ser? Esse cara sou eu? 

Em terra de banguelas, quem tem um dente é rei


Mas Jesus não tem dentes no país dos banguelas. Ele não os tem porque, se os tivesse, não seria o messias da irmandade, o mensageiro da boa-nova de quem anseia por igualdade, por justiça social. Na catástrofe da "banguelice" brasileira, um dente vale tanto quanto um olho em terra de cego. Tivesse dentes, Jesus seria "rei". E do alto da sua realeza divina olharia um ser superior, um super-homem, uma ídolo a ser amado cegamente, e não um cara qualquer, com defeitos e fraquezas humanas, cuja gengiva sangrasse ao mastigar, com dificuldade, o pão nosso de cada dia sem os dentes. E um ser superior, exatamente por ser dotado de qualidades sobre-humanas, não poderia servir de exemplo a mortais defeituosos, falhos, limitados. Porque, na sociedade dos desdentados culturais, uma dentadura é objeto exclusivo; é o que traz a "graça" da vida, é o que torna alguém especial, o que delimita "o seu sorriso proeminente e diferenciado" no mundo.

Por todos esses motivos, no Brasil, numa sociedade com péssima educação, de reduzido número de leitores, lobotomizada pela incultura, a padecer ante o descaso com que são tratados a educação e seus respectivos profissionais, isto é, os professores, sou levado a concluir que, houvesse um messias, ele não leria. Porque o mesmo "país dos banguelas" é também o "país dos analfabetos". E, no país dos analfabetos, quem quiser ser um igual, e dar o exemplo de superação das limitações e fraquezas humanas, não pode ler. Com certeza, Jesus não lê no país dos analfabetos.     

REFERÊNCIAS

AIRES, Matias. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso em 06 de dez. 2012.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. 199 p. 

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados; São Paulo: Cortez, 1989. 49 p. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo).

______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho D'Água, 1997. 84 p.

LEÃO, Danuza. Ser especial. Disponível em: www1.folhauol.com.br, seção colunistas, São Paulo, 2012. Acesso em 05 de dez. 2012.



domingo, 18 de novembro de 2012

TRISTE FIM DE LIMA BARRETO: racismo e esquecimento na história da literatura brasileira


O escritor Lima Barreto, em 1919, em foto do prontuário médico
por ocasião de sua segunda internação no Hospício Nacional dos Alienados.
 
Escritores negros no Brasil: por que há tão poucos?

(...) os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que falta de recursos e proteção atira naquela geena social.
Lima Barreto, "Cemitério dos Vivos".
 
No próximo dia 20 de novembro, comemorar-se-á mais um Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Trata-se de uma das mais significativas datas para todos os militantes que lutam, nos mais diversos movimentos sociais, contra o preconceito social. Nesse caso,  especialmente o de origem étnica, tal qual se dá em relação ao negro brasileiro.

Desnecessário dizer que o Brasil é racista (admito, não gosto do termo, porque remete a um conceito antropologicamente equivocado de "raça"). O preconceito contra o negro ainda é forte, embora invisível. Disfarça-se em fatos, como aquele que dá conta de que, no Brasil, pobreza tem cor - e ela é escura. A maioria dos pobres no Brasil é da cor preta (brancos pobres existem, mas não tão pobres quanto os negros). Avança pelo campo das instituições republicanas, mediante ações policiais arbitrárias que prendem "preventivamente" lastreados na tez escura da pele. Vai depois à vida privada de uma sociedade violenta e violentada, na qual, sob a tentativa de autodefesa ideológica contra insegurança, é costume estereotipar o homem negro como presumivelmente perigoso ator do mundo criminoso.  

Nos termos descritos acima, posso afirmar que o panorama do preconceito contra o negro no Brasil já está bastante identificado - incluindo as suas raízes históricas e sociológicas. E, felizmente, a crença estúpida de que alguém possa ser considerado "superior" ou "inferior" com base na quantidade de melanina em sua pele está a ser paulatinamente debelada em iniciativas que partem ora do Estado, ora da sociedade civil organizada. Parece-me, no entanto, que ainda pouco se discute quanto ao fato de que o Brasil possui poucos escritores negros. 

Antes de avançar na explanação do meu pensamento, quero deixar claro o seguinte: sou veementemente contrário a toda e qualquer forma de avaliação do mérito literário pelo fato de o escritor pertencer a tal ou qual cor (o mesmo raciocínio vale para procedência nacional, classe social, sexo etc). A qualidade do trabalho de um autor deve ser avaliada independentemente de sua origem étnica. Não importa se ele é branco ou negro ou pardo ou qualquer outra designação que o valha. Um escritor deve ser julgado de acordo com as suas habilidades literárias tanto quanto um pensador o é pela qualidade de suas ideias. Pois nada há de mais preconceituoso do que premiar o talento de alguém pela cor de pele. No fundo, não é o talento que se premia, mas a conjuntura de pertencer a um determinado grupo social que, por razões as mais variegadas, quer-se prestigiar. É isso o que faz, por exemplo, com que o Nobel de literatura de 1993, dado a Toni Morrisson, seja tão criticado. Muitos críticos entendem-no imerecido do ponto de vista literário, atribuindo-o tão somente ao desejo "politicamente correto" da Academia Sueca em premiar uma "escritora negra".

O fato, no entanto, é que o Brasil possui poucos escritores negros de destaque na literatura nacional. Se olharmos apenas as fotos dos maiores autores brasileiros, seja na prosa ou na poesia, à exceção talvez de Machado de Assis e Cruz e Sousa, chegaremos facilmente à conclusão de que o Brasil é um país majoritariamente formado por brancos. Essa contradição aparente, porém, torna-se explicável à luz da história, cujos olhos atentos não cansam de dardejar mortalmente as ignóbeis teorias racistas.

Assim, ao estudar a historiografia brasileira, aprendemos que os negros, que aqui foram vergonhosamente seviciados durante séculos de escravatura, quase sempre eram analfabetos (por que se haveria de ensinar a ler quem não era "gente", mas mero "objeto" do direito de propriedade alheio?). Mesmo após o fim da escravidão, com a famosa Lei Áurea de 1888, o negro dificilmente podia dedicar-se ao nobre ofício da literatura, em parte porque o acesso à educação não era um direito garantido universalmente, em parte porque, na mais absoluta ausência de direitos trabalhistas, era obrigado a vender sua força de trabalho em condições de labor precarizadas. Esse é um aspecto histórico relevante, na medida em que escrever é uma espécie peculiar de arte cujo desenvolvimento dá-se muito lentamente, a demandar anos e anos de leituras e estudos de idioma. Ou seja, para ser escritor, é preciso dedicar tempo, muito tempo, o mais das vezes sozinho, em bibliotecas, livrarias etc. O negro recém-libertado da escravidão hedionda com certeza não dispunha desse tempo. É algo substancialmente diverso do talento musical. Aí a história é pródiga em exemplos de artistas que, mesmo sem muito estudo "formal" dos seus instrumentos, foram capazes de produzir grandes composições. Que o diga João Pernambuco, imigrante nordestino que, mesmo trabalhando em longas jornadas como ferreiro no Rio de Janeiro, legou uma das mais importantes obras do violão no Brasil, da qual se destaca a lindíssima "Sons de Carrilhões", obra-prima violonística imortalizada na interpretação do inesquecível Dilermando Reis. 

O escritor negro esquecido que desafiou o preconceito do seu tempo

Nesse contexto, em que a presença do negro na literatura brasileira aparece timidamente, é que vejo com pesar o esquecimento em que ainda se encontra mergulhado um dos maiores autores do nosso País: o escritor fluminense  Afonso Henriques de Lima Barreto.

De fato, o ano de 2012  foi prolífero em efemérides importantes no calendário de comemorações da literatura nacional. Tivemos as justas homenagens ao centenário de nascimento do escritor baiano Jorge Amado, bem como aos 110 anos do natalício do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Mas houve injustiças também. A começar pelo falecimento, quase que totalmente ignorado, de Autran Dourado, passando pelo centenário (não lembrado) de Lúcio Cardoso, chegamos, finalmente, no dia 1 de novembro de 2012, às comemorações dos 90 anos de esquecimento em que se encontra a data da morte de Lima Barreto. E são noventa anos mesmo, a considerar que, quando ele morreu tristemente no dia 1 de novembro de 1922, já estava praticamente esquecido no hospital psiquiátrico em que fora internado para tratar do seu alcoolismo - à época catalogado como uma "doença mental".

Gosto muito de Lima Barreto. Sua obra dialoga com meu espírito de resiliência aos problemas sociais. Nos livros desse autor encontramos uma literatura "militante", digna de um literato que acredita na sua função social. Estamos diante do contista brilhante que não poupa as convenções da República Velha, desatarraxando mordazmente as peças das engrenagens estatais republicanas, já àquela época afundadas na corrupção, no nepotismo, na venalidade do público como se privado fosse e, claro, no racismo velado. Definitivamente, não poderia haver escritor mais atual no nosso País.

Na obra de Lima Barreto, encontramos a descrição irônica do "troca-troca" de favores com que, no início do século XX, buscava-se mascarar a falsa erudição - temática do primoroso conto O homem que sabia javanês (1911).  Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), há o ataque ao nacionalismo exacerbado, típico da primeira República. Nesse romance, assistimos à construção de uma personagem (Quaresma) hilária, autor de proezas impagáveis (assembleia para falar Tupi?), autêntico gênio da erudição levada ao extremo ufanista, que chega a beirar o ridículo, como na passagem em que buscava delinear a expressão da "alma nacional":
De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza de que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte. (LIMA BARRETO, 2011, p. 92).
Nas Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), encontramos a ousadia de um romance de estreia que se propunha a desnudar a mesquinhez imperante nos bastidores de um jornal. Lima Barreto optara por inaugurar, desse modo, sua carreira de romancista com uma crítica corajosa à imprensa mediocrizada pelos propósitos venais da notícia nas redações, o mais das vezes subjugada por interesses econômicos e vaidades inúteis. Obviamente, um escritor de tamanha petulância não poderia ficar impune. O jornal Correio da Manhã tratou de cominar a pena: a "ditadura do silêncio".
Marginalizado, banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima daquilo que ele próprio designou como "ditadura do silêncio".
Graças a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a "lista negra", o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos ou mortos.
[...]
Lima Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.
Fecharam-se na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras. Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este aos delírios. (DINES, 2010).  

Lima Barreto é um escritor de muita qualidade. Isso é indiscutível. Mas por que ele permanece, na literatura brasileira, esquecido como o retrato apoplético de um parente bêbado do qual ninguém deseja recordar?

O intelectual negro na República Velha: racismo e alcoolismo na vida de Lima Barreto

Inicialmente, lembro a vida difícil que Lima Barreto levou. Ele era um intelectual negro em uma época em que os negros não costumavam ocupar lugares de destaque no campo da intelectualidade (será que isso mudou muito hoje?). Some-se a isso que era extraordinariamente inteligente e dono de uma erudição genuína, o que devia despertar a inveja de muitos contemporâneos seus "não tão brilhantes" e que, portanto, precisam impor ares de falsos eruditos (isso foi no começo do século XX, repito, quando erudição ainda tinha algum valor social; hodiernamente, todavia, a estultícia foi alçada à condição de "virtude") .

A esse respeito, Lima Barreto escreveu nas Recordações do escrivão Isaías Caminha aquela que é, até hoje, uma das mais belas demonstrações literárias de amor ao conhecimento: 
A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...
O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.
Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente. (LIMA BARRETO, 2010).
No plano de uma República ideal, o merecimento de Lima Barreto deveria tê-lo feito galgar posições respeitáveis na sociedade. Seu intelecto privilegiado, associado a um talento literário perspícuo, credenciavam-no a tal. Pois o "ethos" republicano é a isonomia - e nisso se inclui o critério meritório, posto que este esteja cada vez mais esquecido, especialmente no serviço público. Mas Lima não viveu numa República ideal - como as que estão descritas nos livros lidos nas faculdades de direito até hoje; ele viveu na República Velha brasileira, com todos os seus vícios nascentes. E aqui quero destacar sua coragem: entre silenciar, acovardado e dócil, diante das injustiças republicanas, deixando-se guiar pelos falsos discursos isonômicos, Lima Barreto preferiu posicionar-se corajosamente como um observador arguto de todos os maus vezos que maculavam (e ainda maculam) o Estado no Brasil.

Também temos de considerar as dificuldades financeiras que sustaram precocemente sua formação acadêmica: com o diagnóstico da demência do pai, teve de abandonar a Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Cedo se tornou arrimo de família. Para piorar, era um boêmio - e alcoólatra. Por mais de uma vez, foi internado em hospitais psiquiátricos, a fim de tratar sua "doença mental" (diagnóstico da época para o alcoolismo). É desse período que advém o seu Diário do Hospício, só publicado postumamente em 1953, que conta a experiência desesperada de um escritor doente - e já caminhando para a morte - internado no Hospício Nacional dos Alienados, no período compreendido entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920, na cidade do Rio de Janeiro. Essas mesmas experiências de sua vivência no hospital renderiam também um romance inacabado (Cemitério dos Vivos), onde o escritor procurou traduzir sua tragédia pessoal de internamento numa versão ficcionalizada e terrivelmente tocante :
Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia.
Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não.
[...]
Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.
[...]
Além dessa primeira vez que estive  no hospício, fui atingido por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para  a Santa Casa de lá, em 1916; em 1917, recolheram-me ao Hospital Central do Exército, pela mesma razão; agora, volto ao hospício.
Estou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é próximo. Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus parentes. Não é justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho. (LIMA BARRETO, 2010).
Recordo ainda que Lima Barreto viveu na sociedade carioca da passagem do século XIX para o século XX, quando o preconceito contra o negro existia abertamente (sequer existia censura social a tal conduta!). Imagine-se, então, o nível de discriminação que devia experimentar o negro que se colocasse na condição de um intelectual, de um literato destacado. Imagine-se, ainda, se ele optasse em usar da literatura para denunciar as injustiças sociais que o circundavam, promovendo a esfoladura dos tão caros baluartes republicanos, incensados ao modo dos europeus, mas praticados de um "jeitinho" bem brasileiro, isto é, na base dos conchavos, dos acordos miúdos de corredores, dos ranços nepóticos dos "excelentíssimos senhores doutores", dos títulos nobiliárquicos herdados por gente incompetente que se apropria da máquina pública como um bebê recém-nascido da sua ama de leite. Imaginemos isso e concluiremos que Lima Barreto foi - e continua a ser - um dos mais corajorosos escritores brasileiros. 

A repetição da farsa 90 anos depois: a injusta condenação de Lima Barreto ao esquecimento

Todos esses detalhes biográficos prestam-se a um mesmo propósito: demonstrar que, na história da literatura brasileira, Lima Barreto experimentou como poucos o gosto amargo da discriminação. Arrisco-me a dizer que ninguém sofreu tanto preconceito quanto ele - por ser negro, por ser pobre, por ser dono de uma erudição verdadeira, por ser crítico da República, por ser inimigo do jornalismo venal dos lobistas encastelados nas redações. Acima de tudo, Lima Barreto fez da literatura uma profissão de fé no combate às injustiças sociais do seu tempo. E pagou um preço caro por isso.

Após toda essa exposição, fica fácil entender o quão injusto é deixar um escritor tão importante, em pleno século XXI, condenado a ser um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Mesmo com toda sua obra em domínio público, é um autor muito pouco lido e estudado. Há até quem o considere "chato", "resmungão"! Mais triste ainda é pensar que, parafraseando o filósofo alemão Karl Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a história de vida do escritor fluminense aconteceu como tragédia e está a repetir-se desta vez como farsa: vitimizado duplamente, ora pelo racismo epocal, ora pelo esquecimento hodierno de sua morte trágica, ocorrida no dia 1 de novembro.

Sendo assim, no Dia da Consciência Negra, os 90 anos da morte de Lima Barreto, por tudo o que o escritor representou, seja na história da literatura brasileira, seja na história do preconceito racial no Brasil, é uma data que, indubitavelmente, merecia ser lembrada por todos nós. Quem sabe assim possamos evitar este triste fim de Lima Barreto...  

REFERÊNCIA
DINES, Alberto. Da ditadura do silêncio à "lista negra". Disponível em: www.observatóriodeimprensa.com.br, ed. 606, São Paulo, 2010. Acesso em 18 de nov. 2012.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Diário do Hospício e o Cemitério dos Vivos. Organização e notas Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Prefácio Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 352 p.
______. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Introdução de Alfred Bosi. Notas de Isabel Lustosa. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2010. 312 p. 
______. Triste Fim de Policarmo Quaresma. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. Prefácio de Oliveira Lima. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2011. 367 p.