sábado, 23 de março de 2013

A LITERATURA SE DESPEDAÇA: uma homenagem a Chinua Achebe (1930-2013)

 

Na semana em que o mundo literário comemorou, com absoluta justeza, o aniversário de 80 anos do escritor estadunidense Philip Roth - indiscutivelmente um dos maiores gênios da literatura no século XX e mais do que merecedor do Nobel -, o dia 22 de março de 2013 ficará marcado pela tristeza de um leitor que vê outro gênio (igualmente merecedor do Nobel) morrer. Refiro-me ao escritor nigeriano Chinua Achebe, que morreu na sexta-feira, nos Estados Unidos, aos 82 anos.

Chinua Achebe ficou mundialmente conhecido como o autor do maravilhoso Things fall apart (1958), que eu li em inglês faz alguns anos. Não foi opção ler o romance em idioma estranngeiro, mas sim necessidade, já que, à época, após ler "O Africano", de Le Clézio, eu me interessara pela riqueza cultural da África e, por indicação de uma ex-namorada (a vantagem de namorar mulheres inteligentes e de alto nível cultural é esta: mesmo quando a relação acaba, a influência intelectual positiva fica), chegara até Achebe, cujo romance principal só encontrei disponível em inglês.     

Comecei a ler Achebe mais por curiosidade (talvez a maior virtude que a cachaça da Filosofia pode inocular em alguém) do que por qualquer outra coisa. Preconceituoso, nem esperava muito da prosa de um escritor "africano". Afinal, eu também estava contaminado pela concepção corrente, e absolutamente equivocada, que reduz o continente africano às cenas de desgraça, fome, miséria, genocídios etc. Como um jovem leitor latino-americano, criado nas bases da cultura ocidental "branca", era-me impossível afastar os antolhos que não me permitiam ver uma África que não fosse "coração das trevas" - para falar com a obra-prima de Joseph Conrad.      

Foi graças à literatura de Achebe - e também, em alguma medida, a Le Clézio - que pude superar essa visão correntia, limitada e preconceituosa, sobre a África e a necessidade de uma ocidentalização (europeização) dos seus costumes como condição sine qua non para a "civilidade". Com Achebe, com sua arte, aprendemos, na mesma linha da dramaturgia de Soyinka, a ver a África com os olhos do povo africano, cuja cultura - aí incluídas suas tradições tribais - é merecedora de respeito tanto quanto quaisquer outras manifestações culturais pelo mundo.     

Assim, a leitura de Achebe permitiu-me não apenas suprir uma lacuna vergonhosa na minha formação enquanto leitor e crítico - acostumado ao frio da Alemanha e da Rússia, mas completamente ignorante na cultura dos países de clima tórrido -, não apenas "matou" minha curiosidade; mais do que qualquer outra coisa, lê-lo fez-me perceber a riqueza da cultura e da literatura africanas (no caso de Achebe, para ser mais preciso, da moderna literatura nigeriana). 

A propósito, em tempos de crescente retomada da "Idade das Trevas" no pensamento brasileiro, quando se observa a ascensão de fundamentalistas religiosos, travestidos de líderes políticos de um Estado laico (!!!), que se arvoram a presidir comissões de direitos humanos, a insinuar que os negros africanos são "amaldiçoados por Deus", a leitura de Achebe parece mais importante do que nunca no Brasil. Penso que os romances do escritor nigeriano podem lançar luzes sobre o obscurantismo preconceituoso de alguns apedeutas em História e em Filosofia, especialmente os que insistem em interpretar o pluralismo da vida sob o cabrestão de exegeses bíblicas dogmáticas e anacrônicas - verdadeiros anteolhos da razão.   

Em 2009, a editora Companhia das Letras lançou no País O mundo se despedaça, versão em português de Things fall apart. Nessa edição, além da ótima introdução de Alberto da Costa e Silva, lê-se a tradução dos versos iniciais do poema The Second Coming, de William Butler Yeats:  

O falcão, a voar num giro que se amplia,
Não pode mais ouvir o falcoeiro; 
O mundo se despedaça; nada mais o sustenta;
A simples anarquia se desata no mundo. 
 
E é com esses lindos versos do poeta irlandês que eu encerro esta minha singela, porém contristada, homenagem ao grande artista que foi Chinua Achebe. Com a notícia de sua morte, creio seja possível dizer que, hoje, de alguma maneira, não só o mundo, mas também a literatura, se despedaça.

domingo, 17 de março de 2013

A CAVERNA DOS ÍDOLOS: o mérito de ser mercadoria em "15 Million Merits" de "Black Mirror"



I just knew I had to get here, to stand here,
and I wanted you to listen.
To really listen, not just pull a face like you're listening,
like you do the rest of the time.
A face that you're feeling instead of processing.
(...) And all you see up here, it's not people,
you don't see people up here, it's all fodder.
And the faker the fodder is the more you love it,
because fake fodder's the only thing that works any more. 
It's all that we can stomach.
Bing Madsen, "15 Millions Merits", in: "Black Mirror" (2011)
 

O mito da caverna na cultura pop

Desde "Matrix" (The Matrix, 1999, EEUU), filme dirigido pelos irmãos Andy e Lana Wachowski, a ideia de um futuro em que os seres humanos entram em conflito com as máquinas adquiriu muita relevância na cultura pop. É verdade que não se trata de proposta original. Ainda no âmbito do cinema, enredo semelhante encontra-se no filme "O Exterminador do Futuro" (The Terminator, 1984, EEUU), do diretor James Cameron, que parte de uma guerra futurista entre seres humanos e máquinas, para justificar a caçada à mãe do líder rebelde John Connor. Mesmo a perfídia do computador HAL em relação aos seus colegas humanos, na viagem de exploração planetária vista em "2001: Uma Odisseia no Espaço" (2001: A Space Odyssey, 1968, EEUU, Reino Unido), de Stanley Kubrick, já antecipava uma tendência, que só se acentuaria com o tempo, de a ficção científica interpretar a realidade a partir do conflito entre humanos e máquinas. E, se voltarmos os olhos aos primórdios da narração cinematográfica, encontraremos seres humanos escravizados pela tecnologia, trabalhando duramente na cidade de um futuro distópico, naquela que é uma das obras mais significativas do movimento expressionista alemão: Metrópolis (Metropolis, 1927, Alemanha), do diretor Fritz Lang.   

No blockbuster dos irmãos Wachowski, no entanto, a novidade ficou por conta da inserção de um componente explicitamente filosófico nas narrativas de ficção científica. Os próprios diretores alegaram ter-se inspirado na obra Simulacros e Simulação (1981), do filósofo francês Jean Baudrillard, para compor o roteiro. Baudrillard foi um pensador que se dedicou a estudar temas como a cultura das massas, o impacto dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas e as consequências que daí derivam, tais como o hiperconformismo, a decadência do político etc. Mas talvez a passagem mais emblemática de Matrix, ao menos sob o prisma filosófico, seja a "cena da escolha da pílula", quando o protagonista Neo (Keanu Reeves) é admoestado por Morpheus (Laurence Fishburne) a escolher entre duas pílulas: uma azul e uma vermelha. A primeira mantém o paciente como sempre esteve: entorpecido, anestesiado por uma irrealidade, a viver uma vida medíocre, feliz à medida que propensa à mais absoluta ignorância. A segunda é a opção pela liberdade de pensamento: tomá-la é sair do estádio de torpor, entrar de cabeça num mundo sujo, feio e perigoso, no qual se trava uma guerra terrivelmente violenta, mas que, apesar disso, é real.           

Boa parte da crítica que se propôs a interpretar a "cena da pílula" em Matrix associou-a ao famoso "mito da caverna" de Platão, traçando um paralelo entre a personagem Neo e o filósofo grego Sócrates. É como pensa, por exemplo, Marilena Chauí (2010, p. 11): 
 
O paralelo entre Neo e Sócrates não se encontra apenas no fato de que ambos são instigados por "espíritos" que os fazem desconfiar das aparências nem apenas pelo encontro com um oráculo e o "Conhece-te a ti mesmo" e nem apenas porque ambos lidam com matrizes. Podem encontrá-lo também ao comparar a trajetória de Neo até o combate final no interior da Matrix e em uma das mais célebres e famosas passagens de um escrito de um discípulo de Sócrates, o filósofo Platão. Essa passagem encontra-se numa obra intitulada A república e chama-se "O mito da caverna".  

Com efeito, o "mito da caverna" é o mais célebre dos diálogos socráticos contidos em A República. Na alegoria narrada por Platão no Livro VII, Sócrates descreve a Glauco a situação dos homens que estão a viver numa morada subterrânea, em forma de caverna, com as pernas e o pescoço acorrentados.

- Depois disto - prossegui eu - imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns homens numa habitação subterrânea em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de iluminação um fogo que se queima ao longe, numa eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos tapumes que os homens dos "robertos" colocam diante do público, para mostrarem suas habilidades por cima deles. (PLATÃO, 428-27/348-47 a.C., 2001, p. 315).   

Por estarem presos desde a mais tenra infância, não podem ver senão uma réstia de luz que escapa por um tabique. Não enxergam alhures a luz. São cegos não porque não podem ver, mas sim porque não sabem que são capazes de enxergar.    

Indiscutivelmente, o "mito da caverna" é a mais popular alegoria da filosofia ocidental, embora quase ninguém a tenha lido na obra-prima platônica. Essa popularidade, em grande parte, deve-se à cultura pop, que, de maneira intermitente, reproduz o mito descrito por Platão, seja no cinema, seja na literatura, seja nas histórias em quadrinhos. Assim, de quando em quando, a alegoria filosófica é ressucitada, ainda que nem sempre com os créditos devidos. Quase sempre o "mito" presta-se a ilustrar a ignorância generalizada em que a maioria das pessoas está a viver, o que, numa abordagem técnica da filosofia de Platão, traduzia a dificuldade de atingir-se o verdadeiro conhecimento - o do mundo inteligível -, saindo da contemplatividade passiva do mundo sensível, condição típica do ignaro, criticada por Sócrates de maneira veementíssima.

O espelho negro de um futuro digital distópico


Nesse contexto, parece-me que a cultura pop volta-se novamente ao texto platônico. Estou a falar de Black Mirror, série de TV criada por Charlie Brooker. Especificamente, refiro-me ao segundo episódio da sua primeira temporada, intitulado 15 Milion Merits. Nele, o espectador é levado a conhecer uma realidade distópica, produto de um futuro não muito distante, onde as pessoas passam o dia inteiro a pedalar bicicletas ergométricas. A intenção não é manter a saúde, mas sim gerar a energia necessária para manter em funcionamento o mundo de entretenimento digital em que vivem: programas de televisão, jogos de videogame, filmes pornôs, apps para celular e toda sorte de gadjets tecnológicos. Confinados a uma espécie de academia, cada qual vive em seu mundo à parte, com um quarto exclusivo, limitado à sua própria tela, pedalando e consumindo, consumindo e pedalando. Como bonûs pelas pedaladas, recebem uma espécie de recompensa pecuniária chamada Merits.         

Nessa realidade futura, os seres humanos não são importantes senão na medida do que pedalam e consomem. A noção de individualidade foi completamente perdida: todos se vestem da mesma forma, com roupas cinzas, verdadeiros uniformes de academia. Embora pedalem todos os dias, uns ao lados dos outros, não há comunicação, não há intimidade. As relações são frias, o diálogo é sucinto. Na tela, cada qual escolhe seu avatar e projeta a si próprio virtualmente: escolhe as roupas, o corte do cabelo. O máximo de aproximação que existe é no horário do almoço, onde as pessoas compram comida com seus créditos em "méritos". A comida lhes permite recuperar a força física, a mesma que lhes auxiliará a pedalar no dia seguinte, gerando a energia necessária para o entretenimento audiovisual.       

Nesse futuro distópico, um detalhe chama a atenção: quem trabalha na limpeza da "academia" são pessoas obesas. Trajando uniformes de trabalho em cores chamativas, elas vivem uma não-existência. Limpam o lugar, mas são invisíveis. Só são percebidas pelos "atletas do entretenimento" quando atrapalham a exibição dos programas na tela, caso em que são obrigadas a suportar toda sorte de humilhações verbais, xingamentos altamente ofensivos, que lhes atacam o corpo gordo, feio, fora dos "padrões". Esse desprezo não é sem razão: os que humilham os funcionários obesos são os mesmos que assistem a um programa em que o apresentador entretém o público pelo vilipêndio de pessoas obesas, ridicularizadas como se porcos fossem, submetidas a brincadeiras ultrajantes. Há, assim, um ciclo de violência, que parte do "espetáculo" televisivo e culmina com o desrespeito à dignidade dos subalternos - os não-consumidores.

Nesse futuro, estar acima do peso, ser excessivamente gordo, das duas uma: ou torna o sujeito objeto da troça em programas de televisão, ou o relega à subcidadania. O curioso é que, quando um dos funcionários atrapalha a concentração na TV de um dos consumidores que pedalam, ele não hesita em reclamar e argumenta: "Eu estou pagando por isso, eu estou pagando por isso!"      

O sonho de ser um "ídolo" 


Entretanto, o que torna genial esse episódio de Black Mirror é o motivo que faz com que as pessoas pedalem dia a dia. Todos estão a pedalar por uma chance. Isto mesmo, uma chance de fazer parte do show, ou melhor, do reality show. Quem acumula 15.000.000,00 de merits pode, eventualmente, comprar um golden ticket, isto é, um bilhete para o estrelato. Assim, de posse da entrada, permite-se ao consumidor que participe do Hot Shot - um reality show em que três jurados avaliam quem tem condições de integrar o elenco de estrelas, torna-se um astro, virar um "ídolo" do mundo do entretenimento televisivo.

É aí que se desenvolve a narrativa em torno de Bing Madsen (Daniel Kaluuya), um dos "atletas-consumidores" dessa "academia do espetáculo". Ele vive, como todos os outros, num quarto, onde segue sua rotina de pedaladas. Sua peculiaridade é ter herdado 15.000.000,00 de merits, o que o torna um consumidor privilegiado. Mas o privilégio não lhe dá satisfação: Bing sente-se frustrado, sua vida é um vazio repetitivo no quarto onde todos os dias dorme e acorda em frente a dezenas de telas de TV. Ele sequer tem a opção de não assistir aos programas: se fecha os olhos, um sinal dispara, obrigando-o a retomar a visualização. Bing é o retrato alegórico do telespectador, a viver numa vida paralítica e cansativa, a consumir diariamente o lixo da grade de programação, produto de uma tecnologia viciante que se sobrepõe ao real, ainda que incapaz de fazer alguém feliz.    

A monotonia persegue Bing até que ele conhece Abi (Jessica Brown Findlay) num banheiro. Encantado com sua voz, e atraído pela beleza da moça, decide patrociná-la. Apaixonado, não vacila em comprar o "bilhete de ouro", oferecendo-o a Abi. Bing, então, leva-a ao Hot Shot, o reality show em que a jovem poderá finalmente revelar ao público o seu talento, a sua bela voz; com isso, tornar-se-á uma estrela, um "ídolo".  

Fazendo parte do show


Abi dirige-se ao Hot Shot, onde terá a grande chance da sua vida: a de tornar-se uma estrela. Antes, uma assistente do programa oferece-lhe um tipo de bebida. Abi ingenuamente aceita e fica drogada. Diante dos jurados, no palco do Hot Shot, Abi canta. Sua voz é maravilhosa. Seu talento é indiscutível. Mas talento apenas não basta. Os jurados do reality show, mais do que uma grande cantoraestão à procura de "ídolos". E, nesse futuro do puro entretenimento televisivo, talento artístico pode ser o que menos importa ao patamar industrial da idolatria.

Nesse sentido, os jurados afirmam que não estão a procurar uma "cantora acima da média". Não é esse o modelo de ídolo que entretém o público. Abi é uma mulher muito bonita. Para esse futuro do entretenimento puro, sua beleza (seu corpo, sua imagem) é mais importante. Nesse sentido, a atitude de um dos jurados é sintomática: grosseiro, vulgar e desbocado, ele pede para ver as "tetas" de Abi. Sim, ele diz abertamente diante do público que quer ver seus peitos, seus belos peitos. A surpresa de Abi é grande, mas o público, que assiste ao programa, aplaude a baixaria.

Os jurados sugerem que Abi torne-se parte do show, mas não como cantora, tal qual sonhava a moça. A proposta é para que Abi trabalhe como atriz pornô, a integrar o elenco do "Wraith Babies", programa de sexo explícito. Chocada, Abi hesita em aceitar a proposta. Porém, é pressionada pelos jurados, que ameaçam retirá-la do show, mandando-a de volta à rotina anônima das pedaladas na bicicleta, caso não aceite tornar-se "ídolo" do canal adulto. Drogada, acuada diante dos gritos ensandecidos e dos aplausos do público, Abi - a doce e tímida moça que sonhava em ser cantora - concorda com a proposta, aceita integrar o elenco do "Wraith Babies". Nos bastidores, Bing, com o coração partido, é expulso.

O entretenimento é tudo


A cena de Abi no palco diz muito sobre o mundo do entretenimento. Abi esperava ser reconhecida como cantora. Mas sua voz, por mais bonita que fosse, não era o que o público deseja idolatrar. O público quer sexo, mulheres lindas transando selvagemente. Aqui não estou a opinar com moralismo reacionário. Definitivamente, a crítica a se fazer não é contra os canais adultos. O que interpreto da proposta feita à Abi é que o "ser um ídolo" é um processo, uma padronagem industrial. Ou o candidato se encaixa no "formato" ou está fora, devendo resignar-se em voltar para a anonimidade. É o preço a se pagar para "fazer parte do show". E foi o que Abi fez, concordou em pagar o preço. No final, o que a tornou um sucesso na televisão não foi sua voz, mas sim seu belo par de seios.   

A venalidade de Abi ao Hot Shot, no fundo, é também a venalidade aos padrões da indústria cultural televisiva, cada vez mais autocentrada. Há fórmulas prontas, que já demonstraram seu êxito de audiência. Portanto, devem ser seguidas, pois tudo deve agradar ao público. Não importa o quão desumano seja o tratamento dado às pessoas, visto que pessoas não existem num mundo onde a grade de programação da TV é um fim em si mesmo. O entretenimento é tudo.

Jean Baudrillard, em Simulacros e simulação (1991, p. 116-117), já chamava a atenção para o fato de que a mensagem publicitária hodierna havia se diluído, deixando de ser meio de comunicação, para tornar-se uma espécie própria de mercadoria:

O aspecto actualmente mais interessante da publicidade é o seu desaparecimento, a sua diluição como forma específica, ou como medium, muito simplesmente. Já não é (alguma vez o foi?) um meio de comunicação ou de informação. Ou então foi tomada por essa loucura específica dos sistemas sobredesenvolvidos de se plebiscitar a cada instante, e logo de se parodiar a si próprio. Se num dado momento a mercadoria era a sua própria publicidade (não havia outra), hoje a publicidade tornou-se a sua própria mercadoria. Confunde-se consigo própria (e o erotismo com que ridiculamente se veste não é mais que o indicador auto-erótico de um sistema que não faz senão designar-se a si próprio - donde o absurdo de ver nele uma "alienação" do corpo da mulher).  

Como a publicidade, o entretenimento televisivo torna-se a própria mercadoria a ser vendida. A dignidade das pessoas é simplesmente colocada de lado. O componente humano não entra no jogo como um valor a ser prestigiado, mas tão só como mais um elemento - um elemento qualquer - que pode servir ao propósito da espetaculosidade.

As perguntas que ninguém quer fazer


Mas, afinal, o que querem os jurados do Hot Shot? Será que não se importam com as pessoas? Será que tudo é mercadoria? Será que todos estão à venda?

Essas são perguntas que ninguém se faz. Primeiro, porque estão todos ocupados demais pedalando e consumindo os programas de TV. Segundo, porque todos sonham em fazer parte do show. Como alguém questionaria um sistema para o qual dedica toda sua vida? Como alguém se revoltaria contra a agressividade dos jurados se essa postura ofensiva, que humilha e achaca os participantes, é o que atrai a atenção da audiência?    

Na verdade, o publico não assiste à televisão. A televisão é que controla o que o público deve assistir. A audiência perdeu seus referenciais de sentido (se algum dia os teve), convertendo-se na massa de telespectadores - um sujeito sem predicado, o resíduo informe de um porta-voz sem história.   

Massa sem palavra que existe para todos os porta-vozes sem história. Admirável conjunção dos que nada têm a dizer e das massas que não falam. Nada que contém todos os discursos. Nada de histeria nem de fascismo potencial, mas simulação por precipitação de todos os referenciais perdidos. Caixa preta de todos os sentidos que não admitiu, da história impossível, dos sistemas de representação inencontráveis, a massa é o que resta quando se esqueceu tudo do social. (BAUDRILLARD, 1985).  

No episódio que estou a comentar, Bing Madsen fará as perguntas que ninguém quer fazer. Respondê-las, contudo, exigirá que tome atitudes drásticas, sob pena de não ser nem mesmo ouvido. Entorpecido por uma rotina massacrante, de consumismo alienado, ele se revolta contra o vazio de seu mundo, de uma busca completamente sem sentido por fama, por sucesso, pelo estrelato, um mundo para o qual os sentimentos humanos não existem, nem mesmo o amor nascente que ele sentia por Abi foi respeitado.   

O "mérito" na caverna do século XXI


O que torna 15 Million Merits interessante é alegoria de uma nova caverna, onde o mito encontra um novo inimigo. Agora não são as máquinas que guerreiam contra os homens; na verdade, a guerra é interna, o inimigo é um demônio pessoal. Tudo é entretenimento, tudo é mercadoria. A disputa que se trava é pelo espaço no palco, pelas luzes dos holofotes, pela idolatria do público. A disputa é pela fama, o hot shot é a própria vida. O preço a se pagar para se tornar um ídolo não importa. Dignidade agora tem preço - e ele é incrivelmente barato.

Os conceitos trabalhados nesse episódio de Black Mirror convergem para a constatação do quão irrelevante e vazia pode ser esta busca pela fama, pelo estrelato. A vida espetaculosa das celebridades nem sempre traz satisfação, nem sempre traz a glória e distinção almejadas. Na caverna dos ídolos do século XXI, o entretimento supera o humano, os sentimentos são ignorados, descartados como lixo. Quem está acima do peso é um cidadão de segunda classe. Quem não vende sua intimidade sexual impudentemente num reality show é um deslocado. Quem não quer expor sua vida pessoal ao público não merece fama e fortuna, não faz jus ao apreço dos fãs. Quem não se encaixa aos padrões dos jurados é condenado a vestir o uniforme cinza e cumprir a pior das penas: o anonimato.

Em 15 Million Merits, portanto, estamos diante de uma nova caverna, um lugar onde "Há uma tirania da massa que é tão detestável quanto a do indivíduo ou a do grupo" (RIBEIRO,  2002). A caverna do século XXI não é o sepulcro intelectual dos que estão acorrentados desde a infância. A caverna do século XXI é o lugar em que o indivíduo deixou-se acorrentar. Divertindo-se com a estupidez alheia, no fundo, o telespectador reflete sua própria existência medíocre - a de ser a massa que flutua passivamente no mais absoluto vazio intelectual.  

No fim, resta a ironia de que no futuro distópico de Black Mirror as pessoas pedalam diariamente para acumular a moeda do mérito. Mas no show que aplaudem, na paixão idolátrica que dedicam às estrelas, não há mérito nenhum no sucesso. Porque tudo não passa de uma farsa, como  o picadeiro armado para a apresentação de um grande circo - com a peculiaridade de ser virtual. E a certeza que fica é: se no futuro tudo está à venda, se tudo pode ser transformado em gadjet e em espetáculo, talvez até mesmo o ato extremo do suicídio possa render um grande programa de televisão.              

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13ª ed. São Paulo: Ática, 2010. 424 p.

BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. Tradução Suely Bastos. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. 88 p.

______. Simulacros e simulação. Tradução Maria João da Costa Pereira. Lisboa: Relógio D'água, 1991. 201 p. (Coleção Antropos).
PLATÃO, 428-27/348-47 a.C. A República. Introdução, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. 9º ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 511 p.

RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus República: a questão do desejo nas lutas sociais. In: BIGNOTTO, Newton (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. 192 p.