OBS: O texto abaixo foi matéria de capa do caderno Opção Cultural, parte integrante do "Jornal Opção" do Estado de Goiás, na Edição 2039 (03.08.2014). http://www.jornalopcao.com.br/opcao-cultural/prisao-perpetua-de-quem-vive-com-medo-de-amar-11621/
Muitos são os aspectos elogiáveis em “O
Segredo dos Seus Olhos” (El Secreto de
sus ojos, Argentina/Espanha, 2009), filme do diretor argentino Juan José
Campanella. O roteiro complexo, com permanentes digressões entre passado e
presente, a excelente interpretação dos atores, a bela fotografia, a trilha
sonora comovente assinada pelos compositores Federico Jusid e Emilio Kauderer, o antológico
plano-sequência no estádio de futebol etc. São aspectos técnicos, já amplamente
incensados pela crítica, que colocam essa película, com todo o mérito, não só
entre as mais sofisticadas produções do cinema latino-americano como entre o
que de melhor já se fez na história da cinematografia recente em nível mundial.
Assim, a considerar a merecida ovação da crítica, meu estímulo em escrever
sobre esse filme dá-se menos pelas suas indiscutíveis qualidades de técnica
cinematográfica que pelas ricas possibilidades de interpretação da sua narrativa.
Sobretudo me encanta tratar de dois elementos específicos da obra: a defesa da
imutabilidade da paixão e a vida vazia que se segue como consectário ao temor
de amar.
A paixão, este sentimento de intensidade
forte, arrebatadora, surge em “O Segredo dos Seus Olhos” de maneira inicialmente
tímida. De fato, o mote da película argentina, a princípio, aparenta restringir-se
ao gênero policial. Em 1974, a bela e jovem Lilliana Colotto (Carla Quevedo) é
estuprada e assassinada por um homem misterioso. Benjamín Espósito (Ricardo
Darín), servidor público do Fórum Criminal de Buenos Aires, é destacado para
acompanhar as investigações do caso. Seria o início típico de um roteiro de
filme policial não fosse por um detalhe: a trama alterna cenas do passado e do presente.
Agora o ano é de 1999, Espósito já está aposentado. Com o tempo livre que
sobra, planeja escrever um romance. Sua ideia é criar ficção a partir de fatos.
Com esse propósito, debruça-se sobre o caso que mais marcou sua carreira. Ei-lo
então às voltas novamente com o estupro e homicídio qualificado de Lilliana
Colotto. A todo o momento, as lembranças do ano de 1974 voltam à sua memória.
Para sustentar o interesse do público pela investigação,
Campanella, de maneira muito habilidosa, coloca personagens carismáticos no
ambiente solene dos tribunais. É assim que o espectador é apresentado a dois
personagens extremamente relevantes para o desenvolvimento da trama: Irene
Menéndez Hastings (Soledad Villamil) e Pablo Sandoval (Guillhermo Francella). A
primeira é a nova secretária do juízo, funcionária de excelente formação
jurídica, hierarquicamente superior. O segundo é o assistente de Espósito, um
sujeito que sofre com a doença do alcoolismo, mas que, apesar disso, conserva
uma capacidade extraordinária de observar detalhes relevantes para a condução
de um inquérito criminal.
No encalço do assassino, Espósito envolve-se
cada vez mais com a vida da vítima. É assim que vem a saber que ela era
professora e havia se casado no início do ano de 1974 com o bancário Ricardo
Morales (Pablo Rago). Eles formavam um casal apaixonado, a viver um casamento
feliz, interrompido brutalmente pelo crime sob investigação.
Olhos que falam
Los
ojos hablan... hablan al pedo los ojos, mejor que se callen.”
–
Benjamín Espósito.
Esses elementos, uma vez reunidos, compõem a
estrutura básica de um roteiro perspicaz, que parte de um caso policial para
desvendar um mistério previsível (quem é o assassino de Lilliana Colotto), ao
passo que conduz a audiência a envolver-se no jogo de reminiscências que atemorizam
Espósito – e que vão muito além do senso de justiça, do desejo de colocar atrás
das grades o criminoso violento que ceifou a vida da jovem Lilliana e, com
isso, sepultou a felicidade de Ricardo Morales de maneira permanente.
É nesse plano que o filme transcende a
obviedade do gênero policial. Na trama costurada pelo diretor, a descoberta do
assassino é menos importante que o quebra-cabeça psicológico do protagonista. O
romance que Espósito propõe-se a escrever não é uma simples apropriação
ficcional de fatos; é um exercício de recordações dolorosas, de promessas não
cumpridas, de temores que o impediram de amar.
Ao revisitar o caso Morales, Espósito termina
por confrontar os fantasmas que assombram seu passado. Um deles é a paixão que
sempre sentiu por Irene Hastings, um sentimento maldistinto nos trejeitos
polidos com que se porta no tribunal, mas perfeitamente discernível no seu
olhar. O protagonista justifica a sua covardia em declarar o que sente no
respeito devido aos caracteres da moça (ela é rica, vem de família tradicional no
meio jurídico e está noiva, ou seja, jamais daria certo com ele). Todavia, aquilo
que detém Espósito é a insegurança típica de quem se julga incapaz de amar uma
mulher. Não é a paixão contida que nutre por Irene que o amedronta, nem
tampouco as diferenças sociais que os cercam e os separam. Espósito, em
verdade, teme o próprio ato de amar. Por isso, conforma-se em sofrer ante uma
paixão irrealizada, em deixar partir em silêncio o amor da sua vida, condenando
a si próprio a uma vida medíocre e infeliz.
Olhos em estado de amor puro
“Usted no sabe lo que es el amor de ese tipo.
Conmueve. Es como si la muerte de la mujer lo hubiese dejado ahí detenido para
siempre, eterno, ¿Me entiende? Tienes que ver lo que son los ojos de él, Pablo.
Están en estado de amor puro. ¿Usted se imagina lo que debe ser un amor
así? Sin el desgaste de lo cotidiano, de lo obligatorio.”
–
Benjamín Espósito.
Paralelamente, a mesma paixão irrealizada também
se vai apresentar na relação de Ricardo Morales com Lilliana Colotto. A
diferença é que, aqui, o sentimento intenso, porém inconcretizado, é
definitivo. O viúvo não pode recobrar o amor da esposa assassinada. A morte
impediu em absoluto que a paixão que Ricardo consagrava à sua amada pudesse
vicejar no enlace matrimonial. O assassinato de Lilliana não lhes deu essa
chance. Por isso o olhar de Ricardo Morales está sempre a vagar, perdido no
infinito, em “estado de amor puro”. Ele está preso numa viuvez vazia, destruído
pela devoção imorredoura que dedica à esposa – uma paixão da qual não se pode
libertar qual uma eterna promessa não cumprida. A pena de prisão perpétua não
foi dada ao assassino da esposa. Quem está preso perpetuamente é o próprio Ricardo,
consumido pelo desejo de vingança da mesma maneira que pela frustração de saber
que sua paixão seguirá irrealizada, sempre em suspenso, proibida de abrir-se
para as intempéries da vida, não importa o que aconteça.
Por outro lado, se o viúvo Ricardo Morales
atingiu o estágio desesperador de quem ama, mas está impedido de amar por uma
circunstância inarredável, tal não sucede com Espósito. Seu amor por Irene não
encontra obstáculo instransponível. Não é a morte que o impede de amá-la. É
unicamente seu temor. A paixão de Espósito pode concretizar-se. Eis o motivo
pelo qual o personagem se vai identificando paulatinamente com o sofrimento do
bancário. Não se trata apenas de “fazer justiça”, a punir o autor de um crime
hediondo. O que se põe para Espósito é decidir o próprio destino, saber se é
capaz de criar coragem para viver a sua própria paixão – a paixão por Irene, a
paixão que ele não pode mudar mesmo após 25 anos de espera. Não se troca de
paixão.
O segredo de viver uma vida vazia
“Una persona puede cambiar de nombre, de
calle, de cara…pero hay una cosa que no puede cambiar… no puede cambiar de
pasión.”
– Pablo
Sandoval.
"¿Cómo
se hace para vivir una vida vacía?, ¿cómo se hace para vivir una vida llena de
nada?”
–
Benjamín Espósito.
Nesse sentido, à reflexão proposta por
Espósito no diálogo com Irene sobre “Como se faz para viver uma vida vazia?
Como se faz para viver uma vida cheia de nada?”, responder-se-á com dois
importantes detalhes: os olhares e a letra “A”. Tais detalhes não são de fácil
ou imediata percepção. Mas são eles que fixam os elementos discernentes da
resposta, ao menos de acordo com a minha interpretação.
Os olhares revelam aquele segredo que não se
pode ocultar. Não importa o esforço que se faça, os olhos falam. Especialmente
não se calam diante da paixão inconcretizada, daquele sentimento intenso e vivo
que, uma vez não realizado, permanece em aberto, a esperar algo (ou alguém)
capaz de dar-lhe um desfecho digno. O “segredo dos seus olhos” está naquele
elemento imorredouro, perene, infalível: a paixão que não se pode mudar. A
paixão revela-se em plenitude como um segredo a ser descoberto através dos
olhos. É assim que o olhar de Isidoro Gómez (Javier Godino) para Lilliana nas
fotografias denuncia o assassino. É assim que o olhar apaixonado de Ricardo
Morales ao falar da esposa morta revela o seu estado de amor puro. E é assim
que o olhar apaixonado de Espósito ao ver Irene segreda o mal terrível que
acomete quem tem medo de amar.
Como Espósito experimenta uma paixão imortal
por Irene, um sentimento tão intenso que, mesmo após 25 anos, ainda o consome,
ele fracassa como escritor todas as vezes que principia seu romance. Sua
desventura é a linguagem. Porque teme amar, ele nunca encontra a letra “a” que
falta ao verbo. A sua história nunca chega a um final. Ou melhor: ela sequer
teve um início. A porta do escritório (do coração) de Irene está sempre aberta.
O homem que a ama nunca a fecha, porque nunca vai ao seu encontro “para dizer
algo importante”. Por isso Espósito afirma, logo no começo do filme, que
iniciou o seu romance cinquenta vezes, e nunca passou da quinta linha. E a
velha máquina de escrever Olivetti, na qual datilografava os textos dos processos
no tribunal, estava sempre quebrada. Seu defeito era justamente a tecla “A” – a
única que nunca funcionava.
Mas a tecla “A” da máquina não funcionava
para Espósito como nunca funcionará para qualquer um que ainda guarde nos seus
olhos o segredo daquela paixão infinita, do sentimento irrealizado, da chance
de ser feliz que se teve e se perdeu. A paixão pode ser impedida por fatos
irreversíveis (como a morte, no caso de Ricardo e Lilliana), mas pode também
ser obstaculizada pelo medo, pelo simples temor. Quem sofre na covardia, opta
em não correr o risco de amar. Assim agindo, pode-se até obviar os
inconvenientes de quem se apaixona (apaixonar-se é sofrer). Mas a paixão
permanecerá lá, no fundo dos seus olhos, qual um segredo irrespondível, a
esperar o desfecho que nunca vem. Para quem se deixa vencer pelo temor de amar
(“Eu temo”), o “a” do verbo conjugado nunca formará o “te amo”. Para pessoas
assim não é apenas a linguagem que assoma analfabeta; é a paixão que morre nos
seus olhos qual um segredo incontido. Para pessoas assim o amor irrealizado é o
caminho de quem se acovarda e, com isso, evita sofrer. Mas é também a
condenação à prisão perpétua numa vida vazia, uma vida “cheia de nada”.
O que o filme “O Segredo dos Seus Olhos”
mostra-nos é que não se pode abandonar o amor da sua vida impunemente. Não se
pode deixar passar tudo de novo. Não se pode enganar a si próprio, como fez
Espósito durante 25 anos, a dizer que a paixão que sentia já passou, que não
deve perguntar, que não deve pensar mais a respeito. Quem aceita que não fez
nada (não lutou pelo amor da sua vida), não pode ser feliz. Porque “vazia” e
“cheia de nada” não são outras vidas; é esta. É apenas a vida de quem vive sem
amor. É a prisão perpétua de quem vive com medo de amar.