quarta-feira, 23 de maio de 2012

SOLILÓQUIOS DE UM VISIONÁRIO OU O CORAÇÃO INDOMÁVEL DO POETA DO HEDIONDO?: o paradoxo da coragem e da esperança na poesia pessimista supersensível de Augusto dos Anjos


O herdeiro brasileiro da poesia do horror



Oh! trabalho sagrado e magnífico dos poetas.
Tu arrancas todas as coisas ao destino, tu dás
imortalidade aos povos mortais.
Lucano 

         
          Edgar Allan Poe (1809-1849) foi um escritor estadunidense cuja obra literária grandiosa fê-lo espraiar-se pelos mais diversos continentes. Congruente nos seus ataques à literatura vitoriana, teorizou sobre a arte, propugnando pelo fim do moralismo das "verdades" na literatura. Para ele, como anota José Paulo Paes, "verdade e beleza eram coisas distintas, e não deviam ser misturadas, sob pena de abastardamento."

          Poe fez da provocação de sentimentos atemorizantes o segredo maior do seu ofício. Era um literato visionário;  adivinhava as sensações febris de um novo tempo que ele, antes do que qualquer outro, via na aflição, na solidão, no redemunho das areias pesadas do convencionalismo estético do rigor, na generatriz daquilo que parte da crítica denominou de "literatura da decadência" - expressão que, como apontava Baudelaire, afigurava-se qual um repositório de "Palavras sem sentido que frequentemente ou­vimos cair, com o som enfático de um bocejo, da boca daquelas esfinges sem segredo que velam às santas portas da Estética clássica." 

          Edgar Allan Poe, no entanto, como artista genial que era, houve-se com bravura também na poesia. É famoso, por exemplo, o seu poema "O Corvo", cujos versos revelam a face do poeta da imagética do soturno, do gótico, daquele a quem é dado sonhar os sonhos amendrontadoramente que ninguém mais ousou sonhar - numa palavra, o mestre do mistério na literatura.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror enxuto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
              Depois, o silêncio e nada mais.

          Essa maneira de pensar a literatura e, em particular, a poesia, atacando moralismos ante a evocação de emoções que flertam com a angústia e com a solidão, tem na obra de Augusto do Anjos (1884-1914) uma das mais significativas contribuições brasileiras ao arcabouço literário da "poesia de horror". Por "horror" na poesia, refiro-me à capacidade do artista de laborar com sentimentos funestos, fundado em imagens que vão do desespero ao medo, da desesperança ao mundo atormentado do poeta confrontando a perfídia de uma existência desgraçada.


O olhar enviesado do poeta solitário mais morto do que vivo

           Nascido na Paraíba, Augusto dos Anjos colocou seu nome na história da literatura brasileira como o poeta crítico das agruras da existência humana. É fato que muitos outros artistas também usaram do verso para expressar um tom criticante da realidade nacional (Castro Alves, por exemplo). Mas o que torna a obra de Augusto dos Anjos tão relevante é a maneira peculiar com que se manifesta sua genialidade. Nos seus poemas, encontramo-nos constantemente diante de um artista que não teme adentrar o abjeto, o vil, o ignóbil do humano. 

          No poema "O Lázaro da Pátria", temos uma boa demonstração de como Dos Anjos, buscando dar a exata dimensão do "sujo", do "corroído", do "feio" no homem, vale-se de remissões a doenças (úlcera, antraz, elefantíase).

                                     O LÁZARO DA PÁTRIA
                                                         
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunsferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Cassino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!

           Com isso, quer o poeta denotar a fragilidade do corpo, capaz de propiciar dores torturantes ("Sente no tóraz a pressão medonha/Do bruto embate férreo das tenazes"). Também a indiferença dos que se divertem diante do padecimento alheio é recordada ("Riem as meretrizes no Cassino").

          Considerando o tom sempre angustioso de seus versos, construídos com o recurso ao uso de uma linguagem que muita vez se reporta à morte e às suas circunstâncias em temas lutosos, parte da crítica afirma que ele produzia a chamada "poesia de necrotério". No seu "Apóstrofe à carne", essa tendência poética para o funesto fica bem delineada ("necrófago", "mortalha", "o fim da orgânica batalha", "podridão", "herança horrenda").

                                       APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes do meu rosto
Pressinto o fim da orgânica batalha:
- Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...

E o Homem - negro e heteróclito composto
Onde a alva flama psíquica trabalha.
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas.
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos.

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda 
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!


          Outra característica de seus poemas - comumente apontada pela crítica literária como sendo das mais marcantes em sua obra - é a visão pessimista da vida. Augusto dos Anjos tem um pendor indisfarçável para a descrença em tudo e todos. Trata-se de uma disposição de espírito que leva o poeta a esperar sempre o pior e que foi perenizada genialmente naquele que considero um dos mais belos poemas já escritos em língua portuguesa: "Versos Íntimos".

                                       VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mao que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

          Conquanto não tão incensada pela crítica literária, também podemos encontrar na poética pessimista de Dos Anjos características como o uso da linguagem científica, a exemplo do que ocorre em "Poema Negro" ("É o caos da avita víscera avarenta/- Mucosa nojentíssima de pus,/A nutrir diariamente os fetos nus/ Pelas vilosidades da placenta? (...) - Zooplasma pequeníssimo e plebeu (...)"), bem como da linguagem filosófica, mediante o questionamento metafísico a que se submete o poeta açambarcado por uma existência agônica.

                                    AGONIA DE UM FILÓSOFO
                            
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierárquico aerópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

          Augusto dos Anjos é, portanto, um poeta que caminha corajosamente pelo terreno perigoso da supersensibilidade, arrostando fantasmas, homiziando-se em túmulos, trajando mortalhas, qual um morto e vivo andarilho solitário  - um artista a usar da palavra para evocar lindamente as sensações da maior repugnância.    

A voz que vem do túmulo também traz a esperança

 
          Todos os característicos supracitados revelam a morte como tema permanente da poesia de Augustos dos Anjos. É da ideia de morte que decorre o emprego em sua poesia das imagens de vermes, defuntos, tumbas, caixões, amoníaco. Ademais, ao fletar com a "poesia filosófica" de índole metafísica, Dos Anjos se propunha a desvendar os labirintos do mistério da morte - na visão artística do poeta, sempre carregada pela desgraça, pela dor, pelo sofrimento. Disso decorre o seu monólogo metafísico-poético, bem exemplificado no poema abaixo: 

                                SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões. visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de Hidrogenio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez ás máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que ainda eu suba mais!

          É natural o leitor de sua obra supor, então, que o ato de morrer, a desventura, o infausto, a ruína, matizados pelo pessimismo, dão a tônica da estética de sua poesia supersensível. Não se trata de conclusão equivocada, registro. Mas decerto se poderia acusá-la de incompleta. 

          Explico o porquê.

          Quando perscrutamos a parca obra de Augusto dos Anjos, logo deparamos com o seu conhecido soneto "Psicologia de um vencido". Reproduzo-o:

                                 PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
                           
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgância da terra!

          Nesse soneto, que também reputo dos mais belos que o gênio artístico do poeta produziu, estão presentes as marcas indeléveis de sua ars poetica, a saber: o pessimismo ("Sofro, desde a epigênese da infância,/A influência má dos signos do zodíaco" [...] "Profundissimamente hipocondríaco [...]"), o culto ao horrendo e ao terrificante ("Eu, filho do carbono e do amoníaco,/Monstro de escuridão e rutilância" [...]), a lembrança das doenças que fragilizam o corpo do homem, infligindo-lhe dor ("Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia/ Que se escapa da boca de um cardíaco"), a linguagem dotada de palavras que evocam uma putredinosidade nada subtil ("verme", "sangue podre das carnificinas").
 
          Entretanto, a "psicologia do vencido" não exaure definitivamente o norte poético do poeta brasileiro. Investigando-o, é possível descobrir um lado pouco conhecido de sua obra. Um lado, digamos, da psicologia do "vencedor" em oposição diametral a do "vencido". Um lado esperançoso. Ei-lo escancaradamente no soneto "Esperança":

                                            ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam-se sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!

          Augusto dos Anjos revela-se, assim, não somente um poeta pessimista, como em geral todos tendem a pensar. Ombreando-se com outros grandes nomes da poesia, que fugiram às próprias limitações de seus temas, o soneto "Esperança" é ilustrativo de que o poeta brasileiro também guardava em seu coração sentimentos, por assim dizer, "positivos", isto é, que instigavam a luta pelos sonhos "nas asas da Esperança" - esta glória do futuro que não murcha, não cansa. É claro que um verso em que se lê que "o mundo é uma ilusão completa" denota um certo grau de desânimo - o próprio poeta o confirma ao escrever, no décimo segundo verso,  "vivo atrelado ao desalento." Mas nem por isso deixa de exortar a juventude a reconhecer na Crença o farol que lhe guiará pelas sendas da vida (este "fanal bendito") em direção à glória do futuro. Avança!  

O coração indomável do poeta do hediondo: ode à coragem 

           Além do elogio à esperança, outra constatação que surpreende o leitor, dada a maneira com que sobrepuja aquilo que denomino de "psicologia do vencido", isto é, o conjunto de características comumente associadas à poesia de Augusto dos Anjos, dá-se por meio do belíssimo soneto "Vencedor". Ei-lo:

                                              VENCEDOR
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e de qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro?

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem... 
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
 
          Nos versos de "Vencedor", vemos, em toda sua inteireza, um Augustos dos Anjos engajado na defesa de sua própria arte. É como se fosse um brado, mercê do qual o poeta põe-se, destemido, na presença dos seus inimigos, desafiando-os a uma peleja. Aqui sobra coragem  ao artista a que se costuma vincular a ideia de desilusão e desencantamento. 

          O título do soneto é demasiado coerente com o destemor do eu lírico: prisioneiro que não se prende, corajoso guerreiro a enfrentar os mais poderosos gladiadores; um coração triunfante, mas não em qualquer lugar, senão nas arenas, por meio dos combates, com espadas, adagas, gládios de aço; uma coragem tal que nem atletas, tampouco domadores, nem mesmo cem contendores seria capaz de debelar. Nesse soneto, Augusto dos Anjos mostra-se qual um poeta de espírito altanado, que se faz presente na batalha contra os que tentam sepultar seu talento poético. Talento que se não pode sepultar porque "ninguém doma um coração de poeta!"  

Furta-cores da "psicologia do vencedor" contra a "psicologia do vencido": o obituário da finalidade do poeta do hediondo

          Na obra de Augusto dos Anjos, portanto, à sua conhecida "psicologia do vencido" opõe-se uma "psicologia do vencedor". É patente que se cuida de faceta minoritária de sua curtíssima produção poética, abreviada pela doença pneumônica que o vitimou. Mas nem por isso menos importante.   

          Nesse sentido, não surpreende o tom polemista com que se apresenta a crítica literária ao tentar enquadrá-lo numa das "escolas" da literatura: seria ele um simbolista como Cruz e Sousa? Seria ele um parnasiano como Olavo Bilac? Ou, dada a maneira com que sua linguagem cientificista mórbida rompia com os convencionalismos estéticos do passado, estaria mais apropriadamente situado ao lado dos literatos pré-modernistas cujas obras desenvolveram-se naquele interregno transicional da história da literatura brasileira que se deu entre a publicação de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e "Canaã", de Graça Aranha - ambos em 1902 -, e que se estendeu até a Semana de Arte Moderna de 1922, marco inaugural do modernismo no Brasil? 
 
          Independentemente da classificação que os teóricos da literatura lhe possam dar, Augusto dos Anjos apresenta pelo menos uma característica pré-moderna, qual seja, a denúncia da realidade. Mas a denúncia que o poeta faz não é de cunho sociológico, aproximando-o a regionalismos ou ao cultivo de personagens ligadas ao campônio brasileiro. Na poesia de Dos Anjos a denúncia da realidade toma a forma de denúncia da realidade da existência humana, colorindo-a com um tom negro-amargurado, a cor, ao que tudo indica, favorita do eu lírico adoentado e escarninho de "Poema Negro": 
                                               
               POEMA NEGRO

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, á meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
É a Morte - esta carnívora assanhada -
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajes pretos e amarelos.
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilinio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes,
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte
Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha Idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos.
Desperto. E tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos

          Já não bastasse profanar a religião nos pesadelos experimentados pelo eu lírico de "Poema Negro", Augusto dos Anjos, no seu soneto "Poeta do Hediondo", dá amostras de que tinha exata consciência do papel que desejava ocupar no panteão da literatura: o poeta que cantava a "poesia dos mortos".
 
                                   O POETA DO HEDIONDO
                                                     
Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
          Todas essas minhas anotações sobre a poesia de Augusto dos Anjos convergem para a ideia de que sua produção literária é dotada daquilo que chamo de "furta-cores" poético. Há como que uma cor cambiante na obra do poeta, que não está adstrita ao negrume que, com demasiado constância, atribui-se-lhe. Tomada nessa perspectiva, a cor negra da "poesia de necrotério" surpreende ao cambiar para um tom "branco" pela beleza de versos corajosos e esperançosos, como aqueles que analisei, respectivamente, nos sonetos "Vencedor" e "Esperança". Não se pode rotular Augusto dos Anjos, tal como de costume se faz, como o poeta pré-moderno do obscuro, do pessimismo, da "psicologia de um vencido", sem considerar que esse mesmo autor pôde produzir textos contraditórios ao direcionamento artístico do conjunto de sua obra literária - naquilo que denomino como sendo sua "psicologia do vencedor".      
 
          Desse modo, Augusto dos Anjos é um poeta brasileiro trágico, que tem particular facilidade em observar e versificar a hediondez da natureza humana. Mas não se resume a isto, havendo aspectos em sua obra poética surpreendentes, como quando o poeta canta sua ode à coragem na luta contra os guerreiros de espadas rutilantes que tentam domar seu coração ("Vencedor") ou enaltece a missão gloriosa da mocidade, ao erguer seu grito em prol do laço a que nos encontramos manietados ao mundo ("A Esperança").        
 
          O que me importa em Augusto dos Anjos é precisamente isto: notar como um artista tão terrivelmente pessimista foi capaz de produzir versos paradoxalmente brandos, de incentivo à esperança e à coragem de amar a palavra e dela fazer seu ofício na arena de gladiadores da vida tão infensa à poesia. 
 
          O autor de "Versos Íntimos" é, assim, mais do que um cultor da morbidade da "literatura da decadência" - rótulo com que acusavam Poe, na crítica à crítica de Baudelaire que introduziu este ensaio. É mais do que o apologista do horrendo, da fealdade, o "louco" soliloquista visionário da literatura brasileira pré-moderna. Augusto dos Anjos é um autêntico "tanatólogo da poesia"; uma poesia de "poemas negros" mas cuja escuridade da psicologia de um vencido tem também os seus furta-cores de um vencedor. Em grande medida, isso se deve ao filósofo que habitava em Augusto dos Anjos, na agonia que lhe dava desvendar o "metafísico Mistério", na sua languidez existencial infeliz condenada a digerir "manjares funéreos".
 
           No fim, independentemente do pensamento da crítica literária, talvez a melhor das definições já dadas à obra poética de Augusto dos Anjos tenha sido cunhada por ele mesmo ao anunciar, num soneto, a sua "finalidade".
 
                                         MINHA FINALIDADE
 
Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!
          Em "Minha Finalidade" estamos, então, diante do poeta flagrado em toda a extensão do seu talento. Em cada um dos catorze versos do soneto, encontro um filósofo desnudado e incorrigível, a perscrutar os recônditos de sua alma sofrida, sistematizando o inferno existencial daquele que tem o dom maravilhoso de trazer em si a fórmula sincrônica de todos os destinos por meio de sua arte de coração indomável - a poesia! 
 
REFERÊNCIAS 
 
ANJOS, Augusto dos. EU (poesias completas). Apresentação de Órris Soares. Paraíba, PB: [s.n.], 1920. 232 p. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/augusto_dos_anjos. Acesso em: 22 mai. 2012.
BAUDELAIRE, Charles. Prefácio. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. 
PAES, José Paulo. Apresentação. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Seleção, apresentação e tradução José Paulo Paes. 7º reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 269 p.   
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado~; revisão técnica e notas Carmen Vera Cirne Lima; posfácio Charles Baudelaire. 4ª ed. rev. São Paulo: Globo, 2009. 350 p.
                              

terça-feira, 1 de maio de 2012

DE CORSOS A CORLEONE: o poder e seus duelos internos contra a solidão


Prologando meu tesouro particular de tatuagens invisíveis



Behind every great fortune there is a crime.
Balzac (1799-1850)

- ... Il y a plus d'assassinats chez nous que partout ailleurs: mais jamais vous ne trouverez une cause ignoble à ces crimes. Nous avons, il est vrai, beaucoup de meurtriers. Mais pas un voleur. [...] 
Prosper Mérimée, Colomba


          Nos últimos meses, estive a dedicar-me a uma tarefa grandiosa: pus-me a organizar a biblioteca do meu home office. Fi-lo pessoalmente, menos por vontade, mais por necessidade. Eu simplesmente não confio em ninguém quando o assunto são os livros de minha biblioteca. Da mesma forma que a maioria dos homens trata seu carro como a um filho, em geral motivados pela aura de poder que os veículos exercem sobre certas mulheres, os livros recebem uma atenção especial de mim - embora seja notório que não se impressiona uma mulher afirmando-se dono de edições de luxo de obras de grandes autores (o leitor quer mesmo que eu acredite que uma garota envolver-se-ia amorosamente com alguém só para emprestar os livros?). Mas essa atenção distinta que dedico aos livros não é idêntica àquela comumente encontrável na relação cousa e seu dono, objeto e titular do respectivo direito de propriedade sobre o bem móvel. A relação que tenho com meus livros é de afeto. Sim, um afeto tão sincero que me arrisco a dizer que há poucas pessoas neste mundo às quais dedico um sentimento de amor tão grande quanto às obras constantes do acervo que possuo.  

          Os livros da minha biblioteca particular são o meu tesouro.

          Ocorre que esse sentimento não tem sua generatriz num capricho intelectual estereotípico. Qual o homem de letras que não se sente apegado a seus livros? Houvesse um arquétipo de escritor e ele, decerto, seria descrito como alguém mais apegado aos livros que às armas ou à enxada. Também por isso sua tez não seria morena, mas lívida; uma palidez própria de quem vive escondido na penumbra das bibliotecas.

          No meu caso, a paixão pelos livros nasce, em alguma medida, do senso fotográfico que eles suscitam. Lê-los é reavivar algum rincão perdido na biografia da minha memória. Por algum motivo, a leitura de um livro me permite captar não só a narrativa urdida pelo seu autor, mas também minha própria história, desencadeando lembranças que se perenizam em mim como uma tatuagem invisível. 

A vendetta córsica de uma ferida literária

          Foi assim que, revirando caixas de papelão, prateleiras de ferro não trabalhado, gavetas de mobiliário acastanhado, antigo, ao qual em outra época de maior requinte se poderia ter acrescentado um acolchoado de damasco, encontrei um verdadeiro álbum fotográfico da minha infância como leitor. Vários livros para crianças. Muitos deles oriundos de imposições da escola – esta incansável fábrica de operários da leitura. Um desses livros prendeu minha atenção: “Os Irmãos Corsos”, do escritor francês Alexandre Dumas (1802-1870). Uma edição, datada de 1997, publicada pela editora Ediouro e integrante da sua coleção “Clássicos para o jovem leitor”. Não é, portanto, um livro propriamente para infantes. É uma edição feita para adolescentes. E foi dessa maneira que ele chegou às minhas mãos: como um livro de aventura pensado para o público adolescente e imposto qual “leitura obrigatória” na escola. A tradução em português, a cargo de Aguiar Macedo, foi, evidentemente, adaptada para o leitor jovem. Não se cuida da história integral, tal como se encontra em “Les frères corses” – título em francês do livro de Dumas, publicado em 1844. O enredo foi cortado, os nomes originais traduzidos do francês (por exemplo, Louis virou Luís e Lucien virou Luciano), a linha do tempo dos acontecimentos até alterada – tudo para tornar a narrativa ainda mais ágil e acessível ao “jovem leitor”.

          E por que razão esse opúsculo me tomou de assalto a atenção? É simples. Ele representa uma tarefa escolar descumprida. Isto mesmo: eu não li esse livro. Por mais que se tratasse de uma “leitura obrigatória”, desprezei-o e não o li. Nem recordo muito bem os motivos pelos quais não o fiz. Talvez, à época, então contando apenas 13 anos de idade, os jogos de videogame me tivessem sido mais estimulantes que a leitura de Dumas. O fato é que, tão logo pus as mãos no livro, veio-me uma compunção inexplicavelmente forte. Havia uma lacuna no meu passado que eu deixara aberta: uma ferida literária daquelas que insistem em não sarar com o tempo.
          Como um pecador que deseja expiar seu pecadilho, tomei o opúsculo em mãos e li-o num estalo. A história gira em torno dos irmãos gêmeos Louis e Lucien de Franchi. Parecidos em aparência (ce sont des jumeaux), mas diametralmente opostos no caráter. Um (Louis), mais apegado aos livros, viajara para Paris, a fim de estudar e se tornar advogado (Celui qui est à Paris sera avocat); o outro (Lucien) decidira ficar na Córsega, onde permanecia a morar com sua mãe e cultivava hábitos mais rústicos, como a caça em mataria (L'autre sera Corse). Apesar da distância física que separa a capital francesa da ilha do Mar Mediterrâneo, no entanto, os irmãos corsos permanecem unidos por uma estranha percepção extrassensorial: Louis e Lucien conseguem notar tudo o que se passa com o outro, de tal maneira que o mal-estar que afeta um é imediatamente experimentado pelo outro. Essa capacidade cognitiva excepcional, como esclarece o livro, decorre de uma antiga tradição familiar, inaugurada pelos antepassados dos irmãos corsos – os varões da família Savilia:

- E qual a razão desse privilégio?
- Não sei - respondeu Luciano. - Só posso lhe dizer que Savília, ao morrer, deixou dois filhos varões que cresceram juntos e eram muito amigos. Tão amigos que, já adultos, juraram que nem mesmo a morte os separaria, e para selar o juramento escreveram-no com o próprio sangue num pergaminho: o que primeiro morresse apareceria ao sobrevivente não só na hora da morte com em todos os grandes momentos da vida. (DUMAS, 1997, f. 57).

          No decorrer da narrativa, Louis vai bater-se em duelo com o parisiense Château-Renaud, motivado pela suposta desonra de uma dama. Para alguém conhecido como homem letrado e que nunca pegara numa arma, não é difícil prever que, duelando com pistolas, Louis levará a pior, sendo mortalmente alvejado. E é o assassinato de seu irmão que fará com que Lucien desloque-se da sua vida de ilhéu da Córsega até Paris, buscando novo duelo em que possa satisfazer o seu desejo de vingança: matar o assassino de Louis. E eis que estamos diante da conhecida vendeta córsica.

O padrinho do poder e da solidão

          Paralelamente à leitura do livro de Alexandre Dumas, estive a rever a obra-prima do cineasta Francis Ford Coppola: a trilogia “O Poderoso Chefão”. Como sabemos, o filme foi inspirado no livro “The Godfather”, publicado em 1969, pelo escritor Mario Puzo. O enredo do primeiro filme, de 1972, aborda a saga da família Corleone, chefiada por Don Vito (Marlon Brando) – um imigrante da Sicília italiana que desenvolve suas atividades no mundo do crime organizado nova-iorquino da década de 1940 e que é considerado “o padrinho” por todos aqueles que dele se socorrem em busca de “favores” que são respondidos por meio de "propostas irrecusáveis". A película propõe-se a contar a rotina de uma família ítalo-estadunidense, envolvida em negócios espúrios, cujos tentáculos se espalham por uma paisagem urbana altamente corrupta, envolvendo policiais, políticos e juízes. É nesse cenário sombrio, em que ameaças, assassinatos, espancamentos, corrupção e toda sorte de violência que se pode imaginar são meios próprios de um “código” de procedimento mafioso, que o diretor Coppola busca extrair alguma poesia dos laços familiares que unem os membros da família Corleone. É uma visão de cinema audaz, na medida em que foge ao conhecido enredo maniqueísta que divisa, com extrema facilidade, o mundo entre “bons” e “maus”. O mérito de “O Poderoso Chefão” é mostrar que mesmo em um ambiente de altíssima violência pode haver amor familiar. E que o núcleo intangível do modelo de “família ocidental feliz”, tradicionalmente associada a valores virtuosos, como a honestidade e fidelidade, pode assumir outras formas em contextos mais hostis, especialmente de um capitalismo de Estado celerado, sob o comando da máfia siciliana.
          A referência à trilogia “O Poderoso Chefão” não é sem sentido. Penso mesmo haver uma aproximação entre a trama de Dumas e aquela concebida por Puzo. Não de maneira evidente, é claro. Para percebê-la, é preciso perscrutar. E nessa investigação interpretativa, cotejando cinema com literatura, o leitor logo perceberá que a narrativa cinematográfica e a literária tratam, cada qual à sua maneira, de um duelo.          
          Na saga dos irmãos corsos, o leitor é apresentado a um conflito de raiz duelística, entre Louis e seu contendor. Há duelistas resolvendo suas ofensas com pistolas, desafiando um ao outro pela honradez atingida. Esse duelo é de todo evidente na ficção de Dumas: os irmãos corsos, tragicamente unidos por um destino, que é o de bater-se em duelo com Château-Renaud, ora em defesa da honra (para Louis), ora em busca de vendetta (para Lucien). O duelo é, portanto, um dos elementos que circundam as motivações das personagens.

- Vous êtes donc toujours dans cette terrible conviction que le duel vous sera fatal? lui demandai-je.
- J'en suis plus convaincu que jamais; mais vous me rendrez cette justice au moins, n'est-ce pas? que j'ai regardé venir la mort en vrai Corse. (DUMAS, 2006, f. 187). (1) 
 
          Duelar, no romance do escritor francês, é o modus operandi culminante da ação. Um dado patente, portanto.
          Na saga da família Corleone, entretanto, o duelo não é evidente. Ele aparece a todo momento, mas de maneira escamoteada no enredo. Não se cuida de duelo com pistolas, ainda que o filme apresente diversas cenas de violência protagonizadas por sujeitos armados. O que temos em “O Poderoso Chefão” é um duelo de natureza psicológica, concentrado na personagem de Michael Corleone (Al Pacino) – o caçula, dentre os filhos de Don Vito.
          Esse duelo psicológico de Michael Corleone começa a se evidenciar já nas cenas iniciais da película, quando o cineasta apresenta a festa de casamento de Connie (Talia Shire), ocasião em que vemos seus irmãos Sonny (John Caan) e Fredo (John Cazale) perfeitamente integrados ao ambiente de negócios criminosos da família. Michael, ao revés, é apresentado como um sujeito tímido, de fala mansa, visivelmente constrangido em apresentar a família mafiosa à sua namorada Kay Adams (Diane Keaton). A mesa que ocupa no jardim onde se desenrola a festa de bodas à moda italiana é indício indisfarçável desse movimento psicológico incipiente: ele está sentado distante de seus irmãos, isolado num canto, como se quisesse nem estar ali. Michael Corleone observa o cenário com vivo desinteresse. Esse desinteresse, que parece atrair certo fastio, é tão acentuado que não fica evidente se se restringe aos negócios espúrios da família ou aos próprios parentes que o cercam.
          No livro, Mario Puzo descreve bem a sensação de isolamento Michael Corleone, considerado um homem delicado, o único dos filhos que se recusara a ficar sob as ordens do pai, Don Vito, e fazia mesmo questão de alienar-se da família. Essa alienação é coerente com sua atitude, na festa de casamento de sua irmã, de ocupar uma mesa num dos cantos mais afastados do jardim.

The third son, Michael Corleone, did not stand with his father and his two brothers but sat at a table in the most secluded corner of the garden. [...] Michael Corleone was the youngest son of the Don and the only child who had refused yhe great man's direction. [...] Now this youngest son sat at a table in the extreme corner of the garden to proclaim his chosen alienation from father and family.  (PUZO, 1969, f. 8). (2)

          Ocorre que, com o avanço do tráfico de heroína como um dos mais rentáveis instrumentos da “economia bandida” nos Estados Unidos da década de 1940, algumas famílias de mafiosos de Nova Iorque decidem pedir auxílio a Don Vito para atuar no ramo. “O Padrinho”, todavia, fiel a seus princípios criminosos, recusa-se a aceitar a oferta de negócios que lhe é oferecida, entendendo que o comércio de drogas constitui atividade “imoral” que poderia pôr a perder o prestígio que construíra junto aos juízes e políticos da sociedade nova-iorquina.
          Dessa recusa nasce a insatisfação das demais famílias mafiosas que passam, assim, a promover atentados, capitaneados por Virgil Sollozzo (Al Lettieri), contra os Corleone, de modo a forçá-los a reconsiderar a decisão que nega apoio ao tráfico de drogas em Nova Iorque.
          É nesse momento do filme que se instaura, então, o ambiente pérfido, conspirador, típico da máfia siciliana. Aparecem os assassinatos encomendados, a corrupção de Estado (política, jurídica e policial) e as ruas de Nova Iorque adquirem, pelas mãos do diretor, uma conotação urbana funesta, de total desconfiança, em que a violência extrema parece permear cada diálogo nas cenas – um clima proporcionado, em grande medida, por aspectos técnico-cinematográficos primorosos, como a trilha sonora de Nino Rota e a fotografia de Gordon Willis. 
          O grande mérito do filme mui habilmente dirigido por Coppola consiste justamente em demonstrar de que maneira essas circunstâncias de extrema violência que se lançam sobre a aparente tranquilidade da família Corleone transportarão um Michael desinteressado nos negócios da família, e alienado perante seus próprios irmãos, para o posto de principal comandante mafioso – o novo “Don”.
          Há uma passagem psicológica, portanto, no filme. E que se perfaz sub-repticiamente sob a forma de um duelo interno travado pela personagem interpretada por Al Pacino. Inicialmente, como já apontei antes, somos apresentados a um Michael Corleone tímido, de fala pausada, homem bonito e delicado, herói de guerra, avesso às práticas criminosas familiares e cuja masculinidade havia sido até mesmo objeto de suspeita pelo pai (esta última circunstância só é sabida pela leitura do livro de Puzo).


He [Michael Corleone] did not the heavy, Cupid-shaped face of the other children, and his jet black hair was straight rather than curly. His skin was a clear olive-brown that would have been called beautiful in a girl. He was handsome in a delicate way.  Indeed there had been a time whey the Don had worried about his youngest's son's masculinity. A worry that was put to rest when Michael Corleone became seventeen years old. (PUZO, 1969, f. 8). (3)

          Pois é a indiferença de Michael que o diretor Coppola deseja contornar. Assim, o espectador vai, ao longo da película, pari passu com o profundo pesar emocional experimentado pela tentativa de homicídio contra o pai, Don Vito, acompanhando a transformação paulatina de Michael Corleone num homem frio, violento, capaz de cometer assassinatos brutais e planejar outros tantos, tudo para manter a unidade da família.
          Michael vai, assim, ocupando o lugar inicialmente reservado a Sonny no comando dos negócios criminosos da família. Com sua inteligência privilegiada, logo adquire o status de principal mentor intelectual das ações criminosas dos Corleone. Tornar-se-á, dessa maneira, o capo di tutti capi, o “novo Don”.
          Mas isso não se faz sem uma ruptura profunda do ponto de vista psicológico da personagem. É por isso que Michael é constantemente submetido à desconfiança da namorada, Kay, que não é italiana e não pertence ao mundo selvagem do capitalismo mafioso. O diretor enfatiza o papel da personagem Kay como um contraponto permanente ao Michael agressivo e metódico no planejamento de ações delitivas, precisamente porque ela encarna o resquício do Michael Corleone do início da trama - um sujeiro amoroso, delicado, interessado em formar uma família “feliz”, longe do submundo do crime nova-iorquino.
          Essas tendências psicológicas de ruptura, no primeiro filme da trilogia, apenas de maneira incipiente são tratadas proporcionalmente à ascensão de Michael Corleone na sua escalada de respeito e poder para tornar-se o “novo Don”. Tudo, no entanto, fica mais acentuado na segunda parte, “O Poderoso Chefão Parte II” (1974), quando o roteiro centraliza definitivamente a narrativa desde a condição de Michael Corleone como o herdeiro de Don Vito na condução dos negócios criminosos da família. É aqui que os conflitos entre Michael e sua (agora esposa) Kay tomam forma ainda mais significativa na trama, num permanente desencontro entre o Don Michael Corleone e o marido amoroso por quem Kay Adams um dia se apaixonara.
          É verdadeiramente notável que o diretor Coppola tenha tido, no segundo filme da trilogia, a sensibilidade de caracterizar Don Michael Corleone como um líder mafioso inteligente, seguro, autoconfiante, ao passo que contrasta com essa frialdade sua permanente disposição em manter a família sob seu controle, como na cena em que oferece asilo para Connie, ou quando promete dar mais atenção à esposa, de modo a salvar seu casamento, destruído ainda pela culpa de sentir-se o responsável pelo abortamento experimentado por Kay e, dessa maneira, pela perda de seu “outro filho homem”.
          Por todos esses motivos é que, quarenta anos após o lançamento do primeiro filme da trilogia, “O Poderoso Chefão” continuar a ser uma referência de arte cinematográfica. Mas não são apenas aspectos técnicos que contribuem para a eternidade da película - de per si elogiáveis, como no plano de enquadramento inicial, em que o diretor enfatiza o rosto de Bonasera (Salvatore Corsitto), para logo em seguida focalizar as costas da personagem interpretada por Marlon Brando, dando ao espectador a exata sensação de poder que a figura de Don Vito impunha ao seu interlocutor. Há também uma história que conseguiu, com rara competência, fundir a dinâmica do capitalismo selvagem, da disputa atroz pelo controle da economia bandida, aos valores familiares universais, tradicionalmente pensados como infensos a um ambiente terrivelmente violento como o vivido pela família Corleone.
A solidão do poder

          A maior das virtudes de uma obra de arte é conduzir o intérprete à reflexão - nem que seja para tão somente deleitar-se com o belo. Mas não falo de uma reflexão que se esgota. Penso na reflexão que se multiplica. No caso dos filmes da trilogia "O Poderoso Chefão", especialmente as duas primeiras partes (considero o terceiro longa-metragem um erro totalmente dispensável), a perspectiva que me anima é aquela que versa sobre as imbricadas conexões a ligar o poder e a solidão. É, em meu entender, disto que "The Godfather" trata: poder e solidão. É assim que vejo a personagem principal, Michael Corleone, como um homem poderoso e solitário.

           Na trivialidade da vida, não são muitos os que se apercebem desse elo. Mas poder e solidão, não raro, andam abraçados. Quantos de nós não desejaríamos ter poder ao extremo? O poder ilimitado do dinheiro, da riqueza, da fortuna? Qual de nós não desejaria ser assediado, ter a mão beijada, ser temido, ser senhor da vida e da morte? Mas será que estáríamos dispostos a fazer as concessões que acompanham a escolha pela potestade? Seríamos capazes de abandonar tudo aquilo em que sempre acreditamos, subtraindo valores radicais, em prol do poder absoluto? A esse respeito, o escritor colombiano Gabriel García Márquez (apud NEPOMUCENO, 2012) certa vez afirmou: "O poder absoluto é a realização mais alta e mais completa do ser humano, e por isso resume, ao mesmo tempo, toda a sua grandeza e toda a sua miséria."

          A alegoria da família mafiosa no filme, segundo entendo, é mais do que a representação da economia bandida e de suas relações marcadamente violentas. Ela se  presta a uma reflexão importante quanto aos limites morais do poder absoluto e o preço que por ele se paga. No caso de Michael Corleone, da desfiguração completa de sua personalidade à solidão. Solidão esta que é ainda mais acentuada pela maneira com que o diretor apresenta sua personagem na película: em nenhum momento vemos Michael colocando em risco os negócios da família por amores súbitos ou apaixonado por uma mulher dominadora (como ocorre com seu irmão Fredo, objeto amiúde de escárnio). Michael é frio e assexuado. Ele sempre está no controle da situação. Tudo o que sabemos sobre sua vida íntima diz respeito a isto: sua esposa e seus dois filhos. Tudo o mais para ele são negócios e a "família".

          Coerente com meu ponto de vista neste artigo, isto é, que aprecia notar a transformação psicológica das personagens, desfazendo maniqueísmos, considero o “Poderoso Chefão Parte II” um filme ainda mais genial que o primeiro. É nele que se percebe o auge do “duelo interior” vivenciado, de maneira dramática, por Michael Corleone, quando, ao final da película, encontramos uma cena em formato de flashback, por meio da qual o diretor recupera uma cena dialogal ambientada num jantar típico de família. Ali Sonny Corleone, reconhecido por sua agressividade, discute com seu irmão mais novo, Michael, a quem apelida de “o universitário”, chegando ao ponto de quase o agredir ao saber de seu alistamento nas Forças Armadas. É nesse momento que o diretor demonstra que as desavenças entre os irmãos tinham origem justamente na discrepância de propósitos de um (Sonny) em assumir os negócios da família e outro (Michael) em pretender levar uma vida distante da máfia nova-iorquina. A cena termina lindamente com todos os irmãos indo ao encontro do pai, Don Vito, que acabara de chegar para uma festa familiar. Sentado à mesa, todavia, permanece Michael, sozinho, isolado, alienado de tudo e de todos, situação ironicamente repetida quando, anos após, ele, já ocupando o posto de novo “Don”, o novo “padrinho”, a quem todos beijam a mão e temem, novamente se vê sozinho, alienado, sem família, sem esposa, sem amigos e com um fratricídio nas costas.

          Ao final do segundo filme, portanto, o diretor nos mostra um Michael Corleone poderoso, austero, temido, mas igualmente solitário – embora agora não por uma alienação da família, mas por uma alienação pela família, pela qual foi capaz de transgredir princípios que, outrora, lhe haviam sido muito caros. E assim permanece Michael Corleone - sentado em sua cadeira, poderoso, porém solitário e desfigurado. É a imagem do poder absoluto - um resumo da grandeza e da miséria humanas.    
Notas:
(1) Traduzo:
"- Você tem mesmo esta terrível convicção de que o duelo lhe será fatal? - interrogou-lhe.
 - Estou mais convenvido do que nunca. Mas ao menos vou render-me a esta justiça, não é? A de que pude ver a morte chegar como uma verdadeira morte da Córsega."
(2) Traduzo: "O terceiro filho, Michael Corleone, não estava com seu pai e seus dois irmãos, mas sim sentado junto a uma mesa no canto mais afastado do jardim. [...] Michael Corleone era o mais novo dos filhos de Don e a único que se recusara a ficar sob as ordens daquele homem poderoso. [...] Agora o caçula estava sentado em uma mesa no extremo do jardim para demonstrar sua alienação voluntária perante seu pai e o restante da família."
(3) Traduzo: "Ele não tinha o rosto, em forma de cupido, carregado como o das outras crianças, e seu cabelo preto era mais liso que ondulado. Sua pele era moreno claro, da cor da oliva, e seria certamente considerada bonita em uma garota. Ele era bonito de uma maneira delicada. Houve na verdade um tempo em que Don se preocupara com a masculinidade do seu filho caçula. Uma preocupação que só cessou quando Michael Corleone fez 17 anos de idade."
REFERÊNCIAS
DUMAS, Alexandre. Les frères corses. Québec: La Bibliothèque électronique du Québec, volume 581: version 1.0, 2006. 225 f. (Collection À tous les vents).
______. Os irmãos Corsos. São Paulo: Ediouro, 1997. (Coleção Clássicos para o jovem leitor).94 f.
NEPOMUCENO, Eric. Os 85 anos de Gabo. EU & Fim de Semana (suplemento). InJornal Valor Econômico, São Paulo, 09/03/2012.
PUZO, Mario. The Godfather. New York: G. P. Putnam's Sons, 1969.