sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Como estragar um concerto com uma tossidela

Não foi desta vez, Hilary. 

No meu tempo livre, desenvolvi o hábito de perscrutar o sítio Youtube, a buscar interpretações ao vivo de grandes obras da música erudita nas principais salas de concerto do mundo. Aquelas pelas quais me deixo enamorar, costumo converter em arquivo de áudio. Ouço-as, pois, no som do meu carro, qual terapia para suportar o trânsito caótico que fustiga duramente a cotidianidade citadina no Brasil.

Hoje, ao ouvir a interpretação da virtuose estadunidense Hilary Hahn para "The Lark Ascending for violin and orchestra" (1914), de Ralph Vaughan Williams, gravada ao vivo com a Camerata Salzburg por ocasião do Festival George Enescu em outubro de 2013, vi-me tomado pelo arroubamento próprio de quem se depara com uma obra de arte de qualidade refinada. Extático, persuadi-me a converter a gravação da peça e ouvi-la sem detença no som do meu veículo.

Entretanto, quando já se aproximava o encerramento da peça, num momento de concentração suprema na sala, em que o silêncio só se permitia quebrar pelas frases que o arco da concertista estava a extrair lindamente do violino, alguém na plateia tosse com brusquidez. "Não!", gritei mentalmente, tomado de assalto pelo inconformação. Justifico meu aborrecimento: no momento em que o sujeito na plateia tossiu, para mim, perdeu-se a gravação.  

Está a parecer exagero. Sei-o bem. Aposto mesmo que boa parte do público sequer se deu conta daquela tossida brevíssima. Mas, para um ouvido treinado e sobretudo acostumado a ouvir as tenuidades que só a música erudita é capaz de proporcionar num nível de linguagem artística aprofundado, a ouvida daquele indesejado aparte tossegoso prejudicou inapelavelmente a qualidade do registro. Uma pena, pois a execução de Hahn dava-se a primor.   

Música erudita é assim mesmo. Nenhum outro público é tão chato, porque ninguém é tão exigente quanto a detalhes. Na música erudita, não se admite nada menos que a perfeição. Qualquer coisa abaixo disso é inaceitável. Muito do prazer de quem gosta desse tipo de arte reside precisamente em saber que se trabalha com uma matéria-prima representativa do que de mais belo e perfeito o gênio humano já foi capaz de produzir. É normal, portanto, esperar essa postura do ouvinte erudito.     

Mas rogo que o leitor não se equivoque. O fato de o meio erudito levar a arte tão a sério não é um defeito; antes o contrário: é virtude das mais nobres. O perfeccionismo da música erudita está diretamente associado ao respeito que se tem pelo público. E o mínimo que todo cultor de arte deve reclamar do artista é isto: respeito à inteligência do público. A isso chamamos profissionalismo. Pena que, muita vez, num contexto de apuro artístico tão severo, uma simples tossidela possa estragar o registro sonoro de um concerto primoroso. 

Faz parte.    

PS: Para o leitor que ficou curioso, a expulsão súbita e ruidosa de ar pela boca ocorre no minuto 13:48 do vídeo.

domingo, 26 de novembro de 2017

MÚSICAS RECOMENDADAS: Sabine Devieilhe interpreta a "Ária dos Sinos" (Air des clochettes / Bell Song) da ópera Lakmé (1883), de Léo Delibes (1839-1891)



Neste final de ano, tive um sobressalto com a audição de "Mirages", álbum da cantora francesa Sabine Devieilhe. O disco, que me foi indicado por um amigo europeu cultor da arte erudita, tem obtido grande êxito radiofônico e de crítica no Velho Continente. E, dada a qualidade do registro sonoro associada ao repertório primoroso de árias francesas, não é sem razão.

Admito que, ressalvado seu trabalho na interpretação de peças do classicismo mozartiano, conhecia muito pouco da discografia de Sabine Devieilhe. Porém, após a ouvida atenta de “Mirages”, enlevei-me pela beleza invulgar da voz dessa soprano, comparável à de uma Natalie Dessay (e isso é um elogio imenso!).

Para o leitor do blogue Metamorfose do Mal que deseja conhecer a artista, segue um vídeo disponibilizado no sítio Youtube pela gravadora Warner Classics, a apresentar um trecho da gravação em estúdio de “Ária dos Sinos”, extraída da ópera "Lakmé" (1883), de Léo Delibes (1839-1891), uma das faixas mais encantadoras no repertório do álbum "Mirages".

Que técnica vocal esplêndida!

Que soprano coloratura maravilhosa!

Mal posso esperar para vê-la em concerto na Europa!

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

MÚSICAS RECOMENDADAS: Dmitri Hvorostovsky canta "Olhos Negros" (folclore russo)


Um dos meus cantores favoritos é o russo Dmitri Hvorostovsky. Como sói acontecer com os artistas mundialmente renomeados da música erudita, ele é praticamente desconhecido no Brasil. Apesar disso, é uma das principais vozes do circuito operístico europeu, sempre a entregar belas interpretações em seus papéis no teatro. 
A aparência eslávica oriental imponente contribui, de modo decisivo, para o êxito artístico de Hvorostovsky. Digo-o, pois, quem tiver a oportunidade de vê-lo de perto numa de suas apresentações, perceberá que ele tem a aparência dum lutador peso-pesado de MMA. Tal compleição física avulta inda mais proeminente frente aos cantores gordotes com os quais ele se põe a contracenar nas óperas, já que não é comum ver um sujeito alto e musculoso cantar como ele canta.   
Por falar em canto, diferentemente da música popular, meio no qual beleza põe a mesa, na música erudita só a boa aparência não basta. Um artista sem talento não sobrevive. Nesse ponto, Hvorostovsky não falha: sua voz é seu instrumento magnânimo no palco. Com uma impostação técnica precisa, ouvi-lo cantar é assustador: qual barítono, ele tem uma potência vocal verdadeiramente impressionadora.    


O poeta russo-ucraniano Yevhen Hrebinka (1812-1848), autor da letra de "Olhos Negros".

A fim de demonstrar o talento de Hvorostovsky, separei para o leitor do blogue Metamorfose do Mal um registro em vídeo duma apresentação realizada em 2004 na sala de concerto do respeitadíssimo Conservatório de Moscou. Nela, pode-se observar o afamado barítono russo a interpretar "Olhos Negros". 
"Olhos Negros" (em russo: "Очи чёрные", "Ochi chyornye") é uma canção celebérrima do folclore da Rússia e cuja letra foi escrita pelo poeta russo-ucraniano Yevhen Hrebinka. Trata-se duma composição romântica, que logrou tornar-se bastante popular no começo do século XX, graças a Feodor Chaliapin (1873-1938) - o grande barítono russo, dono duma exitosa carreira internacional nas principais casas de ópera europeias.
"Olhos Negros" é uma canção pulcra, idônea a sintetizar, como nenhuma outra, a "alma russa". O pungimento do eu-lírico está a acentuar-se ainda mais na voz magnificentíssima de Hvorostovsky – indiscutivelmente, um dos maiores cantores em atividade no planeta.

"Очи чёрные"                                         "Ochi chornyye"
Очи чёрные, очи страстные,                   Ochi chornyye, ochi strastnyye,                                    
Очи жгучие и прекрасные!                      Ochi zhguchiye i prekrasnyye!
Как люблю я вас, как боюсь я вас!          Kak lyublyu ya vas, kak boyus' ya vas!
Знать, увидел вас я в недобрый час!        Znat' uvidel vas ya v nedobryi chas!

Ох, недаром вы глубины темней!            Okh nedarom vy glubiny temnei!
Вижу траур в вас по душе моей,              Vizhu traur v vas po dushe moyei,
Вижу пламя в вас я победное:                  Vizhu plamya v vas ya pobednoye:
Сожжено на нём сердце бедное.              Sozhzheno na nyom serdtse bednoye.

Но не грустен я, не печален я,                 No ne grusten ya, ne pechalen ya,
Утешительна мне судьба моя:                  Uteshitel'na mne sud'ba moya:
Всё, что лучшего в жизни Бог дал нам,   Vsyo chto luchshevo v zhizni Bog dal nam,
В жертву отдал я огневым глазам!            V zhertvu otdal ya ognevym glazam!


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

CRESTOMATIA POÉTICA ERUDITA: "Trova do vento que passa", de Manuel Alegre (1936-), poeta português


ANALECTO DO INTELECTO: Carlo Rovelli (1956-), físico italiano


MÚSICAS RECOMENDADAS: "Um réquiem alemão sobre palavras da Santa Escritura" (Op. 45), de Johannes Brahms (1833-1897)

O compositor alemão Johannes Brahms por volta dos 30 anos,
idade em que começou a escrever o seu réquiem, inspirado pela morte da mãe.

Neste feriado do Dia de Finados, estou a ouvir a obra "Ein deutsches Requiem, nach Worten der heiligen Schrift" (ou simplesmente "Ein deutsches Requiem”, Op. 45), do compositor alemão Johannes Brahms (1833-1897).  

Trata-se de um réquiem – a forma musical da missa fúnebre. Inspirado pela morte de sua mãe, Brahms, tomado de assalto pelo espírito lutuoso, compôs os sete movimentos dessa partitura no período que vai de 1865 a 1868. Protestante, fê-lo a musicar excertos da tradução da Bíblia feita por Martinho Lutero, razão pela qual seu réquiem é cantado em alemão, e não em latim - como sói acontecer na tradução erudita católica. A sublimar ainda mais a grandeza da sua obra, além do coro sinfônico, Brahms incluiu um solo de soprano e outro de barítono.

A lobreguidão magnânima desse réquiem posiciona-o qual uma das composições mais relevantes de todo o Romantismo na história universal da música. Sobretudo pela maneira imponente com que o compositor tudesco emprega o canto coral na composição longa, aprecio muitíssimo essa obra. Indiscutivelmente, a lugubridade da sua melodia está a falar diretamente ao coração.

No registro abaixo, temos a interpretação de "Um Réquiem Alemão" de Brahms pela Filarmônica de Berlim, sob a regência do maestro italiano Claudio Abbado. Gravada em 1997 na Musikverein - a mais famosa sala de concerto de toda a Europa e "lar" da Filarmônica de  Viena, a apresentação esteve a homenagear o centenário do passamento de Johannes Brahms, que morreu em 1897 na capital austríaca.

domingo, 29 de outubro de 2017

Viver com arte


Abro o jornal digital e deparo com uma reportagem que me chama a atenção: “Cantar trabalha a respiração e promove equilíbrio emocional”. Sua leitura conduziu-me de imediato a várias recordações da minha educação artística. Notadamente, estou a referir-me ao modo pelo qual o canto erudito passou a fazer parte da minha rotina.     

Comecei a cantar por força da minha educação formal na música erudita: no conservatório, aprendi que, para ser um músico afinado, era importantíssimo dominar a técnica do solfejo.

Depois, adentrei as aulas de canto propriamente ditas. Sem embargo de não me considerar cantor, fi-lo desejoso de aprofundar o meu conhecimento musical. Com o tempo, aquela decisão se revelaria acertada. O timbre de voz grave fez-me ser escalado para cantar no naipe dos barítonos do coral jovem do conservatório. À época, eu tinha 17 anos.

Atualmente, posto que se tenha passado mais de um decênio desde o início dos meus estudos de canto, continuo a praticá-lo com certa regularidade, já que estou a cantar em coral. Nem poderia ser diferente. Tivesse de viver mergulhado na atmosfera intumescente da burocracia estatal sem o refrigério da arte e eu mui provavelmente explodiria. Dia a dia, a sucumbir, a despenhar aos poucos.   

Nesse sentido, sinto-me autorizado a testemunhar que os benefícios do canto, apontados pela reportagem (relaxamento e equilíbrio emocional, respiração, concentração etc.), são todos verdadeiros. Com efeito, cantar trouxe muitas coisas boas para minha vida. Não apenas como artista - eu passei a tocar melhor meu instrumento depois que aprendi a cantar, já que minha percepção musical agudizou-se -, mas também como pessoa - minha saúde mental melhorou deveras.

São esses os motivos que me levam a recomendar a arte – nomeadamente o canto - como terapia para suportarmos as vicissitudes da vida. Sobretudo num tempo em que o discurso do ódio está tristemente a experimentar uma escalada extraordinária em todo o mundo, mais do que nunca, as pessoas estão a necessitar de arte em suas vidas.

Quem vive com arte, vive melhor. 

CRESTOMATIA POÉTICA ERUDITA: "O Sentimento dum Ocidental (Parte I. Ave Maria)", de Cesário Verde (1855-1886), poeta português