domingo, 18 de novembro de 2012

TRISTE FIM DE LIMA BARRETO: racismo e esquecimento na história da literatura brasileira


O escritor Lima Barreto, em 1919, em foto do prontuário médico
por ocasião de sua segunda internação no Hospício Nacional dos Alienados.
 
Escritores negros no Brasil: por que há tão poucos?

(...) os loucos são da proveniência mais diversa, originando-se em geral das camadas mais pobres da nossa gente pobre. São de imigrantes italianos, portugueses e outros mais exóticos, são os negros roceiros que teimam em dormir pelos desvãos das janelas sobre uma esteira esmolambada e uma manta sórdida; são copeiros, cocheiros, moços de cavalariça, trabalhadores braçais. No meio disto, muitos com educação, mas que falta de recursos e proteção atira naquela geena social.
Lima Barreto, "Cemitério dos Vivos".
 
No próximo dia 20 de novembro, comemorar-se-á mais um Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil. Trata-se de uma das mais significativas datas para todos os militantes que lutam, nos mais diversos movimentos sociais, contra o preconceito social. Nesse caso,  especialmente o de origem étnica, tal qual se dá em relação ao negro brasileiro.

Desnecessário dizer que o Brasil é racista (admito, não gosto do termo, porque remete a um conceito antropologicamente equivocado de "raça"). O preconceito contra o negro ainda é forte, embora invisível. Disfarça-se em fatos, como aquele que dá conta de que, no Brasil, pobreza tem cor - e ela é escura. A maioria dos pobres no Brasil é da cor preta (brancos pobres existem, mas não tão pobres quanto os negros). Avança pelo campo das instituições republicanas, mediante ações policiais arbitrárias que prendem "preventivamente" lastreados na tez escura da pele. Vai depois à vida privada de uma sociedade violenta e violentada, na qual, sob a tentativa de autodefesa ideológica contra insegurança, é costume estereotipar o homem negro como presumivelmente perigoso ator do mundo criminoso.  

Nos termos descritos acima, posso afirmar que o panorama do preconceito contra o negro no Brasil já está bastante identificado - incluindo as suas raízes históricas e sociológicas. E, felizmente, a crença estúpida de que alguém possa ser considerado "superior" ou "inferior" com base na quantidade de melanina em sua pele está a ser paulatinamente debelada em iniciativas que partem ora do Estado, ora da sociedade civil organizada. Parece-me, no entanto, que ainda pouco se discute quanto ao fato de que o Brasil possui poucos escritores negros. 

Antes de avançar na explanação do meu pensamento, quero deixar claro o seguinte: sou veementemente contrário a toda e qualquer forma de avaliação do mérito literário pelo fato de o escritor pertencer a tal ou qual cor (o mesmo raciocínio vale para procedência nacional, classe social, sexo etc). A qualidade do trabalho de um autor deve ser avaliada independentemente de sua origem étnica. Não importa se ele é branco ou negro ou pardo ou qualquer outra designação que o valha. Um escritor deve ser julgado de acordo com as suas habilidades literárias tanto quanto um pensador o é pela qualidade de suas ideias. Pois nada há de mais preconceituoso do que premiar o talento de alguém pela cor de pele. No fundo, não é o talento que se premia, mas a conjuntura de pertencer a um determinado grupo social que, por razões as mais variegadas, quer-se prestigiar. É isso o que faz, por exemplo, com que o Nobel de literatura de 1993, dado a Toni Morrisson, seja tão criticado. Muitos críticos entendem-no imerecido do ponto de vista literário, atribuindo-o tão somente ao desejo "politicamente correto" da Academia Sueca em premiar uma "escritora negra".

O fato, no entanto, é que o Brasil possui poucos escritores negros de destaque na literatura nacional. Se olharmos apenas as fotos dos maiores autores brasileiros, seja na prosa ou na poesia, à exceção talvez de Machado de Assis e Cruz e Sousa, chegaremos facilmente à conclusão de que o Brasil é um país majoritariamente formado por brancos. Essa contradição aparente, porém, torna-se explicável à luz da história, cujos olhos atentos não cansam de dardejar mortalmente as ignóbeis teorias racistas.

Assim, ao estudar a historiografia brasileira, aprendemos que os negros, que aqui foram vergonhosamente seviciados durante séculos de escravatura, quase sempre eram analfabetos (por que se haveria de ensinar a ler quem não era "gente", mas mero "objeto" do direito de propriedade alheio?). Mesmo após o fim da escravidão, com a famosa Lei Áurea de 1888, o negro dificilmente podia dedicar-se ao nobre ofício da literatura, em parte porque o acesso à educação não era um direito garantido universalmente, em parte porque, na mais absoluta ausência de direitos trabalhistas, era obrigado a vender sua força de trabalho em condições de labor precarizadas. Esse é um aspecto histórico relevante, na medida em que escrever é uma espécie peculiar de arte cujo desenvolvimento dá-se muito lentamente, a demandar anos e anos de leituras e estudos de idioma. Ou seja, para ser escritor, é preciso dedicar tempo, muito tempo, o mais das vezes sozinho, em bibliotecas, livrarias etc. O negro recém-libertado da escravidão hedionda com certeza não dispunha desse tempo. É algo substancialmente diverso do talento musical. Aí a história é pródiga em exemplos de artistas que, mesmo sem muito estudo "formal" dos seus instrumentos, foram capazes de produzir grandes composições. Que o diga João Pernambuco, imigrante nordestino que, mesmo trabalhando em longas jornadas como ferreiro no Rio de Janeiro, legou uma das mais importantes obras do violão no Brasil, da qual se destaca a lindíssima "Sons de Carrilhões", obra-prima violonística imortalizada na interpretação do inesquecível Dilermando Reis. 

O escritor negro esquecido que desafiou o preconceito do seu tempo

Nesse contexto, em que a presença do negro na literatura brasileira aparece timidamente, é que vejo com pesar o esquecimento em que ainda se encontra mergulhado um dos maiores autores do nosso País: o escritor fluminense  Afonso Henriques de Lima Barreto.

De fato, o ano de 2012  foi prolífero em efemérides importantes no calendário de comemorações da literatura nacional. Tivemos as justas homenagens ao centenário de nascimento do escritor baiano Jorge Amado, bem como aos 110 anos do natalício do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade. Mas houve injustiças também. A começar pelo falecimento, quase que totalmente ignorado, de Autran Dourado, passando pelo centenário (não lembrado) de Lúcio Cardoso, chegamos, finalmente, no dia 1 de novembro de 2012, às comemorações dos 90 anos de esquecimento em que se encontra a data da morte de Lima Barreto. E são noventa anos mesmo, a considerar que, quando ele morreu tristemente no dia 1 de novembro de 1922, já estava praticamente esquecido no hospital psiquiátrico em que fora internado para tratar do seu alcoolismo - à época catalogado como uma "doença mental".

Gosto muito de Lima Barreto. Sua obra dialoga com meu espírito de resiliência aos problemas sociais. Nos livros desse autor encontramos uma literatura "militante", digna de um literato que acredita na sua função social. Estamos diante do contista brilhante que não poupa as convenções da República Velha, desatarraxando mordazmente as peças das engrenagens estatais republicanas, já àquela época afundadas na corrupção, no nepotismo, na venalidade do público como se privado fosse e, claro, no racismo velado. Definitivamente, não poderia haver escritor mais atual no nosso País.

Na obra de Lima Barreto, encontramos a descrição irônica do "troca-troca" de favores com que, no início do século XX, buscava-se mascarar a falsa erudição - temática do primoroso conto O homem que sabia javanês (1911).  Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911), há o ataque ao nacionalismo exacerbado, típico da primeira República. Nesse romance, assistimos à construção de uma personagem (Quaresma) hilária, autor de proezas impagáveis (assembleia para falar Tupi?), autêntico gênio da erudição levada ao extremo ufanista, que chega a beirar o ridículo, como na passagem em que buscava delinear a expressão da "alma nacional":
De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poético-musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza de que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte. (LIMA BARRETO, 2011, p. 92).
Nas Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), encontramos a ousadia de um romance de estreia que se propunha a desnudar a mesquinhez imperante nos bastidores de um jornal. Lima Barreto optara por inaugurar, desse modo, sua carreira de romancista com uma crítica corajosa à imprensa mediocrizada pelos propósitos venais da notícia nas redações, o mais das vezes subjugada por interesses econômicos e vaidades inúteis. Obviamente, um escritor de tamanha petulância não poderia ficar impune. O jornal Correio da Manhã tratou de cominar a pena: a "ditadura do silêncio".
Marginalizado, banido e embargado a partir da sua estréia em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto não é apenas um dos símbolos dos preconceitos que dominavam nossa sociedade e os salões literários. É talvez a primeira vítima daquilo que ele próprio designou como "ditadura do silêncio".
Graças a esta ditadura o escritor foi levado à condição de freqüentador assíduo tanto da história literária do século 20 como da história do nosso jornalismo. Num caso como gênio incompreendido, no outro como o primeiro sacrificado por uma das mais abomináveis e duradouras práticas das nossas redações: a "lista negra", o Index dos Nomes Proibidos, repertório dos não-existentes, vivos ou mortos.
[...]
Lima Barreto poderia ter escolhido outro livro para estrear, tinha pelo menos outros dois na gaveta. Preferiu algo novo, agressivo, um romance diferente dos cânones, capaz de abrir-lhe as portas da fama.
Fecharam-se na mesma hora. Ficou com fama de maldito, raivoso, que o preconceito racial tornou irremediável. Conseguiu publicar outros três romances, contos, sátiras. Não foi longe: a ditadura do silêncio acabou com ele, levou-o ao álcool e este aos delírios. (DINES, 2010).  

Lima Barreto é um escritor de muita qualidade. Isso é indiscutível. Mas por que ele permanece, na literatura brasileira, esquecido como o retrato apoplético de um parente bêbado do qual ninguém deseja recordar?

O intelectual negro na República Velha: racismo e alcoolismo na vida de Lima Barreto

Inicialmente, lembro a vida difícil que Lima Barreto levou. Ele era um intelectual negro em uma época em que os negros não costumavam ocupar lugares de destaque no campo da intelectualidade (será que isso mudou muito hoje?). Some-se a isso que era extraordinariamente inteligente e dono de uma erudição genuína, o que devia despertar a inveja de muitos contemporâneos seus "não tão brilhantes" e que, portanto, precisam impor ares de falsos eruditos (isso foi no começo do século XX, repito, quando erudição ainda tinha algum valor social; hodiernamente, todavia, a estultícia foi alçada à condição de "virtude") .

A esse respeito, Lima Barreto escreveu nas Recordações do escrivão Isaías Caminha aquela que é, até hoje, uma das mais belas demonstrações literárias de amor ao conhecimento: 
A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar, agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...
O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança, como um deslumbramento.
Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam, não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um titulo para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente. (LIMA BARRETO, 2010).
No plano de uma República ideal, o merecimento de Lima Barreto deveria tê-lo feito galgar posições respeitáveis na sociedade. Seu intelecto privilegiado, associado a um talento literário perspícuo, credenciavam-no a tal. Pois o "ethos" republicano é a isonomia - e nisso se inclui o critério meritório, posto que este esteja cada vez mais esquecido, especialmente no serviço público. Mas Lima não viveu numa República ideal - como as que estão descritas nos livros lidos nas faculdades de direito até hoje; ele viveu na República Velha brasileira, com todos os seus vícios nascentes. E aqui quero destacar sua coragem: entre silenciar, acovardado e dócil, diante das injustiças republicanas, deixando-se guiar pelos falsos discursos isonômicos, Lima Barreto preferiu posicionar-se corajosamente como um observador arguto de todos os maus vezos que maculavam (e ainda maculam) o Estado no Brasil.

Também temos de considerar as dificuldades financeiras que sustaram precocemente sua formação acadêmica: com o diagnóstico da demência do pai, teve de abandonar a Escola Politécnica no Rio de Janeiro. Cedo se tornou arrimo de família. Para piorar, era um boêmio - e alcoólatra. Por mais de uma vez, foi internado em hospitais psiquiátricos, a fim de tratar sua "doença mental" (diagnóstico da época para o alcoolismo). É desse período que advém o seu Diário do Hospício, só publicado postumamente em 1953, que conta a experiência desesperada de um escritor doente - e já caminhando para a morte - internado no Hospício Nacional dos Alienados, no período compreendido entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920, na cidade do Rio de Janeiro. Essas mesmas experiências de sua vivência no hospital renderiam também um romance inacabado (Cemitério dos Vivos), onde o escritor procurou traduzir sua tragédia pessoal de internamento numa versão ficcionalizada e terrivelmente tocante :
Estive no pavilhão de observações, que é a pior etapa de quem, como eu, entra para aqui pelas mãos da polícia.
Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão. Da outra vez que lá estive me deram essa peça do vestuário que me é hoje indispensável. Desta vez, não.
[...]
Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida. De mim para mim, tenho certeza que não sou louco, mas devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material há 6 anos me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro.
[...]
Além dessa primeira vez que estive  no hospício, fui atingido por crise idêntica, em Ouro Fino, e levado para  a Santa Casa de lá, em 1916; em 1917, recolheram-me ao Hospital Central do Exército, pela mesma razão; agora, volto ao hospício.
Estou seguro que não voltarei a ele pela terceira vez; senão, saio dele para o São João Batista, que é próximo. Estou incomodando muito os outros, inclusive os meus parentes. Não é justo que tal continue. Quanto aos meus amigos, nenhum apareceu, senão o senhor Carlos Ventura e o sobrinho. (LIMA BARRETO, 2010).
Recordo ainda que Lima Barreto viveu na sociedade carioca da passagem do século XIX para o século XX, quando o preconceito contra o negro existia abertamente (sequer existia censura social a tal conduta!). Imagine-se, então, o nível de discriminação que devia experimentar o negro que se colocasse na condição de um intelectual, de um literato destacado. Imagine-se, ainda, se ele optasse em usar da literatura para denunciar as injustiças sociais que o circundavam, promovendo a esfoladura dos tão caros baluartes republicanos, incensados ao modo dos europeus, mas praticados de um "jeitinho" bem brasileiro, isto é, na base dos conchavos, dos acordos miúdos de corredores, dos ranços nepóticos dos "excelentíssimos senhores doutores", dos títulos nobiliárquicos herdados por gente incompetente que se apropria da máquina pública como um bebê recém-nascido da sua ama de leite. Imaginemos isso e concluiremos que Lima Barreto foi - e continua a ser - um dos mais corajorosos escritores brasileiros. 

A repetição da farsa 90 anos depois: a injusta condenação de Lima Barreto ao esquecimento

Todos esses detalhes biográficos prestam-se a um mesmo propósito: demonstrar que, na história da literatura brasileira, Lima Barreto experimentou como poucos o gosto amargo da discriminação. Arrisco-me a dizer que ninguém sofreu tanto preconceito quanto ele - por ser negro, por ser pobre, por ser dono de uma erudição verdadeira, por ser crítico da República, por ser inimigo do jornalismo venal dos lobistas encastelados nas redações. Acima de tudo, Lima Barreto fez da literatura uma profissão de fé no combate às injustiças sociais do seu tempo. E pagou um preço caro por isso.

Após toda essa exposição, fica fácil entender o quão injusto é deixar um escritor tão importante, em pleno século XXI, condenado a ser um ilustre desconhecido do leitor brasileiro. Mesmo com toda sua obra em domínio público, é um autor muito pouco lido e estudado. Há até quem o considere "chato", "resmungão"! Mais triste ainda é pensar que, parafraseando o filósofo alemão Karl Marx no seu O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, a história de vida do escritor fluminense aconteceu como tragédia e está a repetir-se desta vez como farsa: vitimizado duplamente, ora pelo racismo epocal, ora pelo esquecimento hodierno de sua morte trágica, ocorrida no dia 1 de novembro.

Sendo assim, no Dia da Consciência Negra, os 90 anos da morte de Lima Barreto, por tudo o que o escritor representou, seja na história da literatura brasileira, seja na história do preconceito racial no Brasil, é uma data que, indubitavelmente, merecia ser lembrada por todos nós. Quem sabe assim possamos evitar este triste fim de Lima Barreto...  

REFERÊNCIA
DINES, Alberto. Da ditadura do silêncio à "lista negra". Disponível em: www.observatóriodeimprensa.com.br, ed. 606, São Paulo, 2010. Acesso em 18 de nov. 2012.

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de. Diário do Hospício e o Cemitério dos Vivos. Organização e notas Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura. Prefácio Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2010. 352 p.
______. Recordações do escrivão Isaías Caminha. Introdução de Alfred Bosi. Notas de Isabel Lustosa. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2010. 312 p. 
______. Triste Fim de Policarmo Quaresma. Organização e introdução Lilia Moritz Schwarcz. Prefácio de Oliveira Lima. São Paulo: Penguim Companhia das Letras, 2011. 367 p.





 

domingo, 11 de novembro de 2012

CRÔNICA DE UM VOO NOTURNO: um leitor solitário de poesia sobre as sombras do mundo cada vez mais sem luz

O poeta alemão Michael Krüger.
 
Um solitário viajante pelo Brasil 

Ab heute wirft auch mein Schlaf einen Schatten
In die immer lichtloser werdende Welt.
Michael Krüger, "Über Schatten", in: "Ins Reine" (2010).
 
O ano de 2012 tem sido um período de muitas viagens em minha vida. Nesses últimos onze meses, por razões profissionais, estive nas mais distintas regiões do Brasil, indo de Norte a Sul. Foram longas viagens, quase sempre permeadas por mudanças bruscas de temperatura. Estive em Porto Alegre, onde fazia muito frio, para depois viajar até Macapá, onde fazia muito calor. Depois rumei para Brasília, onde o sol escaldava e as árvores desfolhavam tristemente no estio; passei brevemente por São Paulo, aspirando ares de um frio ameno, sob céus de concreto, cinzentos, pesados, até chegar a Curitiba, onde a frialdade impiedosa congelava até os ossos. E, agora, quando se aproxima mais uma dessas minhas viagens (desta vez com destino à Florianópolis), paro e penso no significado da circunstância de ser um "viajante".

Viajar é um prazer, já o comprova o desejo de consumo corrente, associado à maioria das pessoas, de "sair conhecendo todos os lugares possíveis do mundo". É bom que assim seja. Viajar é uma ótima fonte de cultura. Viajando se conhecem lugares novos, pessoas diferentes; viajando renova-se a vida. Mas quando se viaja sozinho a sensação é diferente: há um espaço vazio enorme, esperando para ser preenchido. Há pressa e confusão. Há barulho de turbinas, combustível queimando no motor e avisos de segurança de voo repetidos à exaustão, exaustão quase tão grande quanto a que se nota na fronte maquiada das aeromoças. Da janela, vê-se o mundo diminuir, crescendo a distância da cidade da partida. Mas é no corredor que se observa, com os olhos de um claustrófobo, o quão fácil é limitar a própria vida. Viajar é, portanto, um convite à solidão.
O que poderia, em princípio, surgir como algo ruim (as pessoas temem a solidão), pode vir a transformar-se num espaço de reflexão aguda. Ao menos foi o que busquei fazer nessas viagens: olhei cada detalhe, da mala de mão à criança chorando na primeira fila, descrevendo-os mentalmente como se narrasse um livro. Andando pelo corredor, em direção ao meu assento, concentrei-me, num brevíssimo espaço de tempo, nas feições dos passageiros, buscando, em olhares de esguelha, encontrar os fios da vida que unem cada uma daquelas pessoas. Do casal de namorados na fila 5, ao advogado de postura empertigada na fila 16, da mãe extremosa que cuida do bebê na fila 27 ao idoso que lê o caderno de esportes de um conhecido jornal paulista, completando a fila 32. E ali estava eu, sentado no meu assento contíguo ao corredor, a esperar a decolagem - totalmente sozinho. "Faz parte da minha profissão", concluí ensimesmadamente.
Partida
O avião decola. Eu, como um soldado aferrado ao cumprimento de sua missão, puxo da pasta o primeiro livro. É um compêndio de leis, as principais do País. Nem espero o aviso e o cinto já está apertado na minha cintura. Não convém ser incomodado pelo comissário de bordo. Os demais passageiros ainda se aprumam, buscando a posição mais confortável, e já estou no trigésimo artigo. Uma, duas, três pequenas leis. De repente, mais uns tantos outros títulos, capítulos e seções. Pronto. Acabei a cota de leituras técnicas da viagem. Que fazer agora?
Olho para a minha pasta e tento enganar a mim mesmo. Não vai adiantar fingir que não sei a resposta. Guardo o volumoso compêndio de leis. Eis que arranco com violência o primeiro livro de literatura: é Herman Hesse que me acompanha! E nas páginas de "Demian" eu encontro o conforto do confronto entre o mundo luminoso e o mundo sombrio da juventude cindida do jovem Sinclair. E lá se vai o aviso: aqui se encerra mais um voo... Juro: nem percebi.
Quase todos os voos estão lotados. Não há assentos vazios. Não há espaço. Eu viajo espremido com uma multidão. Paradoxalmente, sozinho. Sou eu e meu sonho. Nada mais.
Em busca do espaço de uma solidão poética
Mas houve um dia, quando saía do aeroporto de Brasília com destino à Curitiba, que me vi diante de uma situação, no mínimo, peculiar. Eram dez horas da noite e o avião estava inacreditavelmente vazio! Pela primeira vez em todas essas viagens, havia espaço sobrando. Ocupei uma cadeira, duas outras ao meu lado esperavam passageiros que não vinham. Numa aeronave de mais de cem lugares, se vinte estivessem ocupados seria muito! A cinscunstância de viajar num voo "quase particular" agudizou meu vício literário, porém afastou o romance. Eu queria ler poesia!
Lembrei-me, então, do poeta alemão Michael Krüger e de como ele descrevera um voo noturno, versificando-o: [1]      
Nachtflug [2]
Weil alle Flugzeuge verspätet landeten
und nicht mehr abheben durften,
kamen wir, ein vielsprachiger Rest,
in eine Maschine, die schon ausrangiert war.
Ich saß auf 34 B, in der ungeliebten Mitte,
rechts von mir ein nachtschwarzer Engel,
der seelenruhig seinen Müll sortierte,
links ein Herr, der Platon las, im Original.
Rauchen war nicht verboten, auf Reihe 20
Kam sogar eine Wasserpfeife zum Einsatz.
Im Gang wurde Fußball gespielt, und vorn
In der ersten Klasse übte eine irische Band
das Requiem von Verdi. Auch ich habe mir
meinen Lebensabend anders vorgestellt,
sagte die müde Stewardess und bot Zeitungen na
vom vergangenen Jahr. Der Pilot lächelte
im Schlaf. Wer kommt schon an, wo er hinwollte,
brummte der Engel, und Platon nickte ein.
Gegen Morgen, als auch mir die Augen zufielen,
gingen wir in die Luft.

De repente, sinto como se tivesse ouvido uma uma cigarra cantar dentro do avião. Seria o estágio inebriante de quem sonha ambiciosamente com o espaço infinito? Ou seria um reles devaneio no escuro, de palavras noturnas indizíveis, mas que eu insistia em escutar? 

Zikaden [3]
 
Wer von der Maßlosigkeit träumt,
dem endlosen Raum, der den Raum
überwölbt und das Rufen echolos
aufnimmt in seinem ewigen Mittag,
den sehen wir bald unter den Bäumen
Schattendienst halten: all der Dämmer,
im Umgänglichen wurzelnd,
entmachtet die blicklose Weite.
Und jedes Wort, das gesagt wird,
wird von Zikaden zersägt.
A aeromoça passa com um carrinho. O balanço da aeronove acorda-me. Estava imerso em um sono poético profundo. Já não sabia se era o final da viagem. No fundo, não me importava. Eu me lançava de braços abertos no remoinho de emoções daquela poesia. Não podia (e não queria) parar. Viro a página. A sombra de um passageiro se levanta: ele segue pelo corredor por um rumo que ignoro propositalmente. Mas a sombra ainda atrapalha minha leitura.
As sombras crescem cada vez mais até tomarem todo o espaço do corredor. Vejo-as estenderem-se até a cabine. As luzes estão apagadas. No grande espaço vazio do avião, os poucos passageiros dormem, assaltados pela fadiga noturna. Não me importa. Aperto um botão: uma luz amarela acende sobre minha cabeça. Ela ilumina meus olhos, as lentes dos meus óculos, como que refletindo meus pensamentos. Sinto uma vertigem. Num átimo estou cego. No outro, já enxergo e viro outra página do livro. Agora, leio, atordoado, sozinho no escuro, enquanto a turbulência passa. Mas as sombras não passam. Eu leio sobre as sombras. Leio e lanço  a sombra de um sono que quer derrotar-me. Leio e percebo as más sombras. O mundo está cada vez mais sem luz. 
Über Schatten [4]
 
Ich kannte die guten und die schlimmen Schatten,
die raumlosen Schatten der Träume, in denen Theologen
um einen Zankapfel streiten, und den Schatten,
den Fische werfen und eilige Fliegen.
Mein Grossvater mischte Schatten in die Saat,
damit etwas wächst, was nicht umsonst ist,
und die Spreu sich vom Weizen nicht trennt.
Und einmal sah ich den Schatten von Vögeln,
der hing an den Steinen wie die Wolle am Strauch.
Ab heute wirft auch mein Schlaf einen Schatten
In die immer lichtloser werdende Welt.
 
Chegada

Eis que desce o trem de pouso. Ouço um impacto. O balanço da aeronove acorda-me: chegamos ao solo! Ainda imerso no mesmo sono poético profundo, não sabia se tinha chegado ao meu destino. Sequer me interessava. Embriagado pelas palavras, reconheço: a literatura salvou minha viagem!
Atrapalhado, guardo os livros na pasta. Os outros passageiros já se levantam, prontos para desembarcar. Verifico os bolsos da minha jaqueta. "Não posso esquecer nada", recordo-me de chofre. Estugo o passo e avanço pelo corredor. Despeço-me das aeromoças com um sorriso educado, porém incapaz de esconder meu cansaço. Desço as escadas. Estou de novo em um aeroporto. E reflito sobre a viagem: o que era para ser um fastiento voo noturno tornou-se uma oportunidade de voltar-me àquilo que cotidianamente estive a ignorar: o espaço de uma solidão poética - aguda, profunda, nos céus, preso em um avião! O que era um fardo triste da agonia de um profissional azafamado converteu-se na oportunidade única de reencontrar a mim mesmo. "A poesia preenche um coração vazio, mesmo no mundo cheio de sombras, no mundo cada vez mais sem luz", pensei enquanto tomava o táxi no aeroporto. Fazia muito frio naquela noite em Curitiba.    
 
Notas:
[1] Em respeito ao leitor, eu jamais cito versões originais em idiomas estrangeiros que não estejam traduzidas para o português. Se as traduções não existem, eu mesmo traduzo os textos livremente. A obra poética de Krüger não está traduzida no Brasil, mas, por sorte, encontrei na internet tradução de alguns de seus poemas para o português. As traduções abaixo, portanto, são de autoria de Viviane de Santana Paulo. 
[2]
Voo noturno
Porque todos os voos pousaram atrasados
e não mais puderam decolar,
chegamos, um grupo multilingue,
em uma aeronave que já tinha parqueado.
 
Eu estava sentado na 34 B, na odiada fila do meio,
à minha direita, um anjo negro como a noite
que separava o seu lixo com toda a serenidade da alma, 
à esquerda, um senhor lendo Platão no original.
Fumar não era proibido, na fileira 20
até mesmo um charuto de água teve a sua atuação.
no corredor jogava-se futebol, e lá na frente,
na primeira classe, uma banda irlandesa ensaiava
a Requiem de Verdi. Também eu imaginei
o noturno da minha vida de maneira diferente,
disse a aeromoça cansada oferecendo o jornal
do ano passado. O piloto sorria
sonhando. Quem é que chega, onde se quer chegar,
rosnou o anjo, e Platão acenou com a cabeça.
Pela manhã, quando também os meus olhos cerraram,
levantamos voo.
[3]
Cigarras

Quem sonha com o exorbitante,
do espaço infinito, que cobre
o espaço e o chamado do eco não existente
absorvido em seu eterno meio-dia,
logo veremos debaixo das árvores
o serviço das sombras: todo o alvorecer,
nas afáveis raízes ,
desarmando a distância cega.
E cada palavra dita
será serrada pelas cigarras.
[4]
Sobre sombras
Eu conhecia as boas e as más sombras,
as sombras sem a dimensão dos sonhos, tanto discutidas 
pelos teólogos por causa do ponto de discórdia, e as sombras
que os peixes arremessam e as moscas velozes.
Meu avô misturava sombras nas sementes,
para que algo crescesse o que não é em vão,
e o joio não se separasse do trigo.
E uma vez eu vi as sombras das aves,
estavam penduradas nas rochas como a lã no arbusto.
A partir de hoje, também o meu sonho lança uma sombra
no mundo cada vez mais sem luz.
 
REFERÊNCIAS
KRÜGER, Michael. Ins Reine. Gedichte. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2010. 120 p. 
______. Kurz vor dem Gewitter. Gedichte. Berlin: Suhrkamp Verlag (Auflage: 2), 2003. 111 p.  




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA E O HEROÍSMO DO INTELECTUAL BRASILEIRO: por que o Brasil nunca ganhou um Nobel?


Prêmio Nobel: a Copa do Mundo que nunca ganhamos 

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.
Carlos Drummond de Andrade, "Também já fui brasileiro", in: "Alguma Poesia" (1930).
 
Desde 1901, quando foi concedido ao poeta francês Sully Prudhomme o prêmio, o Nobel de Literatura tornou-se a mais importante premiação que um escritor pode receber pelo conjunto de sua obra. De lá para cá, já houve de tudo: premiações a poetas, contistas, romancistas, dramaturgos, filósofos. Houve premiações mais do que merecidas (Thomas Mann, Herman Hesse, William Faulkner, Gabriel García Márquez, José Saramago, Jean Paul Sartre etc.), outras muito contestadas pela crítica (Toni Morrison, sem dúvida),  além de injustiças flagrantes em relação a autores geniais, mas que morreram sem receber a honraria (Franz Kafka, James Joyce, Jorge Luis Borges, Marcel Proust, Liev Tolstói, Anton Tchecov, Bertold Brecht  etc.). 

O Brasil, como se sabe, nunca recebeu prêmio Nobel em nada, nem em física, nem em medicina, nem em química, nem em economia. É óbvio que me incomoda essa ideia, ainda que o resultado não me pareça de todo desprovido de sentido. É que ser um intelectual, no Brasil, é ato de autêntico heroísmo da parte do candidato. Ele opera no mais absoluto denodo, quase sempre sem apoio institucional significativo, já sabendo de antemão que sua intelectualidade não acarreta prestígio social em uma sociedade de analfabetos funcionais como a brasileira. O intelectual brasileiro, se desejar ver suas obras publicadas, terá ainda de fazer um esforço hercúleo. Na prática, equivale a esmolar aos leitores a leitura de seus escritos, já que no Brasil se lê pouco, muito pouco.

Às vezes, assaltado por pensamentos nada ufanistas, penso que intelectuais do porte do geógrafo Milton Santos deveriam ter recebido um prêmio apenas por sua extraordinária inteligência que, associada ao emprego de extema dedicação, fê-lo fazer-se respeitar em todo o mundo pela qualidade de suas ideias, posto que nascido no Brasil. Na verdade, no Brasil, a opção pela intelectualidade - quando a opção está disponível, é claro, a considerar-se a desigualdade extrema do País - torna o sujeito automaticamente digno  de um "Nobel de Idealismo". Seria como que um prêmio de consolação para quem "deseja produzir conhecimento com seriedade em um País que pouco valoriza isso." Infelizmente, esse prêmio não existe. E até hoje o mais perto que o Brasil conseguiu chegar de um prêmio Nobel foi com o alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira.


Portanto, resignemo-nos com os títulos do futebol, que tanto enchem nosso peito de orgulho. Afinal, no Brasil, ao que tudo indica, vale mais ganhar a taça da Copa do Mundo do que qualquer prêmio Nobel nas distintas áreas do conhecimento humano.

As injustiças do prêmio Nobel de Literatura

A medalha do prêmio Nobel de Literatura

Desta vez, porém, o que me inspira mesmo a escrever é o Nobel de Literatura. E, retomando o raciocínio desenvolvido nos parágrafos introdutórios, a dar conta de que o Brasil encontra-se na fila dos países cujos literatos nacionais nunca receberam o prêmio, tal me parece especialmente doloroso, para não dizer deveras injusto. É triste pensar que escritores do quilate de Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Nélson Rodrigues, João Cabral de Melo Neto, só para citar alguns nomes canônicos, atingiram as vias de passamento sem receberem a distinção.

Essas são, assim, apenas algumas das muitas injustiças que o mais prestigiado dos prêmios no campo literário já produziu e, creio, continua a produzir, ao menos enquanto nomes como Thomas Pynchon, Philip Roth, Raduan Nassar, Ricardo Piglia, Milan Kundera, Dalton Trevisan, Antonio Lobo Antunes, Don Delillo, Cees Nooteboom, Mia Couto, Ismail Kadaré, Claudio Magris, Umberto Eco etc. continuarem sem o prêmio.

Aliás, os nomes que citei acima são apenas alguns dentre os muitos escritores que mereceriam ser lauredos. De fato, a lista de autores que entendo sejam dignos da prêmiação máxima nas artes literárias é muito mais longa (eu nem mencionei John Irving, Joyce Carol Oates, Táriq Ali, Lídia Jorge, Adonis, Ferreira Gullar). Como seria demasiado enfadonho pôr-me a reproduzir tantos nomes, nem sendo o objetivo precípuo deste texto aduzir o elenco de escritores que aprecio, optei propositalmente em mencionar apenas alguns "nobelizáveis".

O fato é: nenhum autor brasileiro até hoje houve de ter o mérito artístico ou filosófico de sua obra reconhecido pela tradicional Academia Sueca. Justo ou injusto, eis o fato. Que interpretação dar a ele então? Ou, por outras palavras, teria o prêmio Nobel de Literatura uma "função social" no Brasil? 

Em busca da função social do prêmio Nobel de Literatura no Brasil


O escritor chinês Mo Yan, vencedor do prêmio Nobel de Literatura de 2012. Foto: France-Presse.

Essa foi a pergunta que me fiz, cogitabundo, assumindo a posição de um leitor inconformado com a realidade de que grandes escritores brasileiros estão a morrer sucessivamente sem que a Academia Sueca deles se tivesse recordado (aliás, antes de falar mal dos jurados suecos, façamos nosso mea culpa: quem no Brasil recordou-se de homenagear Autran Dourado, falecido no último dia 30 de setembro de 2012? Parece até que "Ópera dos Mortos" não significou nada para a literatura nacional...). Foi assim que, imerso nessa reflexão, concluí que o prêmio Nobel de Literatura pode, sim, ter uma "função social"  no Brasil. 

"Função social" é expressão importada dos compêndios de direito. Emprego-a, adaptando o raciocínio originalmente desenvolvido nas letras jurídicas, em especial no estudo do direito de propriedade: tem função social aquilo que, de alguma maneira, possa vir a ser útil para a sociedade. É uma premissa simples, grandemente reduzida por mim, valendo-me da liberdade especulativa de um filósofo. A partir daí, posso tornar ainda mais didática e direta a pergunta inicial: que utilidade para a sociedade brasileira pode ter o prêmio Nobel de Literatura?

Segundo entendo, a circunstância de o Brasil nunca ter recebido um prêmio Nobel apresenta uma dupla função social. A primeira serve como um alerta vermelho para a crise - ora escamoteada, ora ignorada - na cultura literária nacional: o Brasil, que se reconhece grandioso e altivo no futebol, é o mesmo país que recebe tratamento minoritário nas ciências e nas artes, em especial na literatura. O pensamento europeu e estadunidense corrente é o de que Brasil se situa no mundo da cultura como um palhaço no picadeiro do circo: é muito útil ao lazer, com suas paisagens naturais pitorescas, e ao entretenimento fugaz, com suas festas carnavalescas, mulheres desnudas, com curvas lascivas, e bronzeadas pelos mesmos raios de sol praiano que iluminam o brio da equipe de futebol mais vitoriosa no mundo: a seleção brasileira. Lá fora, quando se trata de literatura, o gigante sul-americano se apequena diante de outras nações. É visto como um país distante e irreconhecível, um conto não lido, um romance não folheado. Literariamente, o Brasil carece de confiança, menos pela falta de qualidade de seus escritores (como apontei antes, há artistas da palavra de nível mundial por aqui), mais pela falta de respeito com que é tratado quando se passa ao plano das atividades intelectuais. Numa palavra: ninguém leva a sério o Brasil. A segunda função social do Nobel de Literatura no País é de índole mercadológica: por meio do prêmio, a escolha da Academia Sueca influencia diretamente o mercado editorial, proporcionando ao leitor brasileiro a oportunidade de conhecer autores que, muita vez, embora traduzidos em vários idiomas no mundo, foram obliterados por aqui. Só assim se explica a chance maravilhosa que é travar contato com a obra de escritores russos (Alexander Soljenítsin, Mikhail Sholokhov), sérvios (Ivo Ándritch), suecos (Pär Lagerkvist), guatemaltecos (Miguel Ángel Asturias), egípcios (Naguib Mahfouz), húngaros (Imre Kertész), nigerianos (Wole Soyinka), israelenses (Shmuel Yosef Agnon), islandeses (Halldór Laxness), finlandeses (Frans Eemil Sillanpää), além de poetas gregos (Giórgos Seféris), poloneses (Czeslaw Milosz, Wislawa Szymborska), tchecos (Jaroslav Seifert) e até caribenhos (Derek Walcott). Tenho a mais absoluta certeza de que, não fosse pelo fato comum de que todos foram agraciados com o Nobel de Literatura, tais autores nunca teriam sido traduzidos no Brasil.

Mo Yan, de 57 anos, foi considerando na China "o primeiro escritor chinês a ganhar um Nobel de Literatura", já que Gao Xingjian, naturalizado francês, e vencedor em 2000, não é reconhecido como cidadão do país. Foto: AP.

Não surpreende, assim, que o ganhador do Nobel de Literatura do ano de 2012, o escritor chinês Mo Yan, não tenha nenhuma obra traduzida no Brasil (o ganhador do ano anterior, o poeta sueco Tomas Tranströmer, à época do anúncio do prêmio, só tinha um poema traduzido para o português). De um lado, reconheço haver, por parte das editoras, seríssima dificuldade em encontrar tradutores brasileiros de mandarim - aspecto editorial relevante, visto que muito da qualidade estética de uma obra se perde naquelas, como gosto de chamar, "traduções de permeio", isto é, a tradução da tradução. De outro, há também o desinteresse mercadológico, que, hodiernamente, presume nenhuma viabilidade comercial em autores que, como Mo Yan, exploram fábulas, contos folclóricos e temas do cotidiano rural do campônio chinês (talvez se ele escrevesse sobre bruxos adolescentes ou vampiros luzidios vendesse um pouco mais...). Por ora, resta esperar que as editoras brasileiras encontrem alguém que seja capaz de traduzir direto do mandarim os livros de Mo Yan. Ou, ao leitor açodado, socorrer-se da recente reedição em Portugal do polêmico "Peito grande, ancas largas" (1995), que, sob censura do governo, foi retirado de circulação na China pelo conteúdo sexual e pelo protagonismo dado às mulheres em uma versão épica da luta de classes chinesa.  

De qualquer forma, fica desde já a lição: em vez de lamentar o fato de que a Academia Sueca continua a ignorar os grandes autores da literatura brasileira quando da concessão do prêmio, é bem mais produtivo utilizar-se do rol de literatos galardoados com o Nobel qual uma rica fonte de pesquisa em literatura comparada, aproveitando-se da tradução oportunista de suas obras no Brasil.