quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

DESFADO (2012): Ana Moura reinventa o fado português


Quer o destino que eu não creia no destino
E o meu fado é nem ter fado nenhum
Cantá-lo bem sem sequer ter o sentido
Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum
Ana Moura, "Desfado", in: "Desfado" (2012).
 
Conhecida pelo talento de seus romancistas e poetas, Portugal é um país igualmente rico na música. Seu fado é legado cultural dos mais relevantes no gênero popular. Estilo tipicamente urbano, remonta aos boêmios lisboetas do século XIX, que cantavam suas tristezas e saudades acompanhados pelo violão e pela viola. Depois, com a aceitação paulatina das melodias fadistas nos salões aristocráticos, populariza-se entre a fidalguia portuguesa um estilo até então marginal. Já no século XX, após o surgimento das primeiras Casas de Fado, dá-se a profissionalização dos artistas. Com isso, o estilo ganha fôlego novo: seus arranjos instrumentais ficam mais refinados; seus versos tornam-se mais elaborados. Graças especialmente à brilhante carreira internacional de Amália Rodrigues - para muitos, a maior fadista de todos os tempos -, o fado deixa sua condição de fenômeno local português, atingindo público em nível mundial.       

Apesar disso, o fado nunca usufruiu grande popularidade no Brasil. Posto que Portugal tenha contribuído decisivamente para a formação da sociedade brasileira, a legar inclusive o idioma português, o fado não goza em nosso País da mesma penetração popular que se nota relativamente a outros estilos musicais estrangeiros (o rock, o jazz, o pop, o rhythm and blues, a dance music etc.). É sintomático perceber que, não raro, boa parte do público tem como única referência no fado Roberto Leal, o cantor português que, radicado no Brasil, obteve nos idos de 1970 relativo sucesso comercial, apresentando-se em programas populares da TV com canções como "Arrebita" e "A festa ainda pode ser bonita". Esta última, por sinal, ouso dizer que tem sua melodia mais associada no Brasil à paródia "Vira-Vira" do finado grupo Mamonas Assassinas, sucesso radiofônico absoluto no ano de 1995, que propriamente à versão original.

É óbvio que esse contexto não impede o ouvinte brasileiro de conhecer o importante legado cultural que a música popular portuguesa pode proporcionar. Há muitos artistas grandiosos a dedicar-se ao fado, donos de obra maravilhosa. Entre as referências do passado, seria medida de suprema injustiça não citar Amália Rodrigues; entre as do presente, seria demonstração inequívoca de insensibilidade auditiva não mencionar o nome de Ana Moura.

 
 
Pois é justamente Ana Moura que quero destacar. Seu álbum "Desfado", lançado em 2012, recentemente adquiriu grande notoriedade após o jornal inglês The Sunday Times tê-lo eleito o "melhor álbum de 2013". Se a afirmação é exagerada do ponto de vista da crítica, visto que não se pode julgar a obra de um artista senão dentro do gênero a que ele pertence, torna-se musicalmente plausível à medida que se ouvem as dezessete canções que compõem o álbum.   

Com efeito, "Desfado", como o próprio nome indica, propõe-se a revisitar a tradicional música portuguesa urbana, fundindo-a a uma linguagem, digamos assim, mais "pop". A música que abre o disco é reveladora nesse sentido: "Desfado" é uma canção agitada, com a bateria destacada na cozinha; a letra é propositalmente disparatada, a brincar com as convenções do gênero: 

Quer o destino que eu não creia no destino

E o meu fado é nem ter fado nenhum

Cantá-lo bem sem sequer o ter sentido

Senti-lo como ninguém, mas não ter sentido algum

 
Ai que tristeza, esta minha alegria

Ai que alegria, esta tão grande tristeza

Esperar que um dia eu não espere mais um dia

Por aquele que nunca vem e que aqui esteve presente

 
Ai que saudade

Que eu tenho de ter saudade

Saudades de ter alguém

Que aqui está e não existe

Sentir-me triste

Só por me sentir tão bem

E alegre sentir-me bem

Só por eu andar tão triste

 
Ai se eu pudesse não cantar "ai se eu pudesse"

E lamentasse não ter mais nenhum lamento

Talvez ouvisse no silêncio que fizesse

Uma voz que fosse minha cantar alguém cá dentro

 
Ai que desgraça esta sorte que me assiste

Ai mas que sorte eu viver tão desgraçada

Na incerteza que nada mais certo existe

Além da grande incerteza de não estar certa de nada

Já "A case of you", uma das melhores do disco, não esconde o desejo de transitar para o pop: Ana Moura homenageia uma das mais conhecidas canções de "Blue" (1971), o clássico álbum de folk-rock da canadense Joni Mitchell. Não fosse o som da viola portuguesa ao fundo, poder-se-ia identificá-la facilmente com uma cantora de R&B ou soul a protagonizar um bem-sucedido cover. Esse mesmo mood vai reproduzir-se adiante, na faixa "Thank You" (que lembra muitos momentos do excelente My One and Only Thrill de Melody Gardot) e "Dream Of Fire", quando a guitarra acompanha o tom jazzístico do piano elétrico tocado pelo consagrado Herbie Hancock.  

Outro aspecto a se destacar nesse álbum é a poesia das letras. Ana Moura empresta sua voz a versos inspirados, como na minha faixa favorita do álbum, "Amor afoito", escrita por Nuno Figueiredo:

Dou-te o meu amor

Sem qualquer condição, por ora,

Mas terás que provar que vales

Mais que o que já mostraste ser

Se me souberes cuidar,

Já sei teu destino,

Li ontem a sina,

A sorte nos rirá, amor

Se quiseres arriscar

Não temas a vida,

Amor, este fogo

Não devemos temer

Em "Havemos de acordar", temos outra das melhores faixas do álbum. Exemplo de sensibilidade do compositor Pedro da Silva Martins (Deolinda), a canção assinala o ethos renovador do fado que norteia a direção artística de "Desfado": 

Canto o fado pela noite dentro

Ele trabalha todo o dia fora

Corre tão veloz o tempo 

e chega apressada a hora

Ele suspira, sonolento, 

"Ó meu amor, não vás embora"


Fecho os olhos pela noite fora

Ele dorme pela noite dentro

De manhã não se demora, 

veste um casaco e sai correndo

E ouve a minha voz que implora

"Ó meu amor fica mais tempo"
 

Eu hei-de inventar um fado

um fado novo, um fado 

que me embale a voz 

e me adormeça a cantar

Eu hei-de ir nesse fado 

ao teu sonho, no meu sonho, 

e, por fim, sós, 

nele havemos de acordar


Vou sonhando pelo dia fora

Ele trabalha pelo dia dentro

Não sei o que faz agora

mas ele talvez nesse momento

entre por aquela porta

"Ó meu amor, fica mais tempo"

 
Canto o fado pela noite dentro

Ele trabalha todo o dia fora

Já o sinto nos meus dedos 

como um eterno agora

Será esse o nosso tempo

"Ó meu amor, não vás embora"

 
Eu hei-de inventar um fado

um fado novo, um fado

que me embale a voz

e me adormeça a cantar

Eu hei-de ir nesse fado

ao teu sonho, no meu sonho,

e, por fim, sós,
 
nele havemos de acordar

Todos esses elementos somam-se ao talento vocal indiscutível de Ana Moura, que sabe explorar seu belo timbre com elegância nas faixas, a primar por uma prosódia musical escorreita da língua portuguesa, sem descuidar da emoção soturna que a estética fadista reclama (a ouvida de "Fado Alado" é ilustrativa dessa perspectiva) e que Amália Rodrigues soube incorporar como ninguém.  

 
Penso que "Desfado" está menos para o (des)fazimento ou para a (des)construção que para a (re)invenção do fado. Na sua proposta renovadora, o álbum de Ana Moura consegue o que parecia impossível: acrescentar ao tradicional estilo lusitano uma pegada "pop", o que, longe de comprometer sua qualidade, agrega-lhe um elemento novo e original.

Se isso faz do quinto álbum de estúdio de Ana Moura, como quer o The Sunday Times, o melhor de 2013 no seu estilo, é difícil dizer, sobretudo porque não ouvi tudo que gostaria no período. No entanto, sinto-me seguro em afirmar que "Desfado" é um dos melhores álbuns de música popular portuguesa já lançados em muitos anos. Oxalá, então, ele receba a merecida acolhida do público brasileiro. Quem sabe assim ajude a popularizar no Brasil um estilo musical tão rico quanto o fado.  

 
 
 
 

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