segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DE QUE VALE A LEI?: a paternidade (ir)responsável e a crítica ao machismo da lei a partir do pensamento de Machado de Assis e Lima Barreto

                 
                       
Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que,
para proteger uma vida provável, sacrifica duas?
De que vale a lei?
Lima Barreto, "A Lei" (1915).
 
Numa passagem curiosa do seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis se debruça sobre o problema da paternidade/maternidade irresponsável. Trata-se do Capítulo LXXV, intitulado "Comigo", no qual o escritor narra as origens de D. Plácida - a mulher responsável por zelar pela casa onde os amantes Brás Cubas e Virgília mantinham suas relações adulterinas.  
Nesse capítulo, ficamos a saber que D. Plácida é fruto de um relacionamento nada ortodoxo entre um sacristão da Sé e uma dama que circulava por aquelas bandas.   

— Assim, pois, o sacristão da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. (ASSIS, 2004, p. 176).

Já nesse trecho se nota o sarcasmo do autor, que se refere à dama que deu à luz D. Plácida como "colaboradora" do sacristão. A aproximação oportunizou uma "conjunção de luxúrias vadias". A consequência foi a geração de uma vida (uma criança, D. Plácida) não planejada e, portanto, não querida.  

Machado de Assis completa:

É de crer que Dona Plácida não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus dias: — Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã naturalmente lhe responderiam: — Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para isso que te chamamos, num momento de simpatia. (ASSIS, 2004, p. 176).

O escritor é veemente no seu relato. A sacristania não se prestou à arrumação da missa ou à guarda dos paramentos do culto. Prestou-se à luxúria, ao sexo casual. Mas o tom de Machado não é o de um moralista religioso. Sua intenção não é condenar a concupiscência de per si, mas sim evidenciar como a tentação da carne, figurada no encontro sexual, conduz à maternidade/paternidade irresponsável. Nem o sacristão nem a sacristã, nos seus momentos de prazer, no seu mais íntimo "momento de simpatia", tiveram prudência. Não pensaram que da "conjunção de luxúrias vadias" nascia a colaboração necessária para o nascimento de  uma criança. No caso, fala-se da vida de D. Plácida, a quem só restou o peso doloroso da pobreza ("comer mal, ou não comer"), da infância perdida pelo trabalho precoce ("queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura"), de uma existência condenada ao sofrimento e ao desespero ("adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez, triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura"). Como consequência de um amor cretino, Brás Cubas vaticina o pior: a pessoa ou acaba na lama ou no hospital. Na lama, porque ali é a sarjeta (a miséria absoluta). No hospital, porque aí se há de padecer até a morte.

O olhar crítico machadiano sobre a irresponsabilidade do poder familiar, de certa maneira, vai ao encontro do que Lima Barreto busca expor na sua crônica "A lei". Nesse texto, o cronista narra o "caso da parteira", sobre o qual se propõe a interrogar acerca da serventia da legislação:

Este caso da parteira merece sérias reflexões que tendem a interrogar sobre a serventia da lei.

Uma senhora, separada do marido, muito naturalmente quer conservar em sua companhia a filha; e muito naturalmente também não quer viver isolada e cede, por isto ou aquilo, a uma inclinação amorosa.

O caso se complica com uma gravidez e para que a lei, baseada em uma moral que já se findou, não lhe tire a filha, procura uma conhecida, sua amiga, a fim de provocar um aborto de forma a não se comprometer. 

Inicialmente, percebe-se o elo do romance com a crônica: uma relação amorosa fora dos padrões tradicionais. Em ambos, a procriação deu-se fora do casamento. Mas há uma diferença: se no texto machadiano o que se busca é evidenciar a cretinice de quem pratica o sexo sem dosar suas consequências - notadamente a pobreza - na vida de uma criança, na crônica de Lima Barreto está-se a revelar o quão grande é a hipocrisia de uma moral ultrapassada, que visa a separar uma filha de sua mãe por força de uma gravidez fora do casamento. Neste último caso, os burocratas do Estado intervêm, para qualificar regras morais envelhecidas como regras legais. Dá-se, assim, força normativa ao arcaísmo social, devedor de uma concepção patriarcal e machista de sociedade, insensível às necessidades da mulher e ao amor de mãe, partidário de uma justiça sexista e excludente.   

Presente essas circunstâncias, Lima Barreto comove-se com a situação da mãe que busca o auxílio da parteira. E conclui em fiança à conduta das duas:

Vê-se bem que na intromissão da “curiosa" não houve nenhuma espécie de interesse subalterno, não foi questão de dinheiro. O que houve foi simplesmente camaradagem, amizade, vontade de servir a uma amiga, de livrá-la de uma terrível situação.

Aos olhos de todos, é um ato digno, porque, mais do que o amor, a amizade se impõe.

A reflexão proposta por Lima Barreto é importante. Qual subalternidade haveria no sentimento amistoso, decerto sincero, que leva alguém a auxiliar outrem em situação difícil? E se acrescentarmos que essa situação é extrema, que coloca em risco a liberdade de quem ajuda? Não se poderia escusar a responsável?

Logicamente, o debate é mais profundo. Atinge o motivo da ajuda: a parteira auxilia o abortamento do feto. Mas quem haveria de negar que a sociedade colocou a mãe em desespero, ao vedar-lhe o acesso à maternidade por haver engravidado fora do casamento, ainda que separada do marido? Que sociedade é esta que priva a mulher da convivência amorosa, da possibilidade de encontrar um novo cônjuge? Que sociedade é esta que, para preservar a perenidade do laço nupcial, condena a mulher à solidão eterna? Será que é justo punir a mãe que não quer viver sozinha? Será que é justo suprimir sua convivência com a filha? 

No entanto, o império frio dos códigos legais despreza esses questionamentos de ordem humanitária. A lei surge como baluarte da moral envelhecida (tornada uma moral legalizada). Seu fim é penalizar a mãe infratora. A ela se reservam tão somente as duras penas da legislação criminal.

Lima Barreto prossegue:

Acontece que a sua intervenção foi desastrosa e lá vem a lei, os regulamentos, a polícia, os inquéritos, os peritos, a faculdade e berram: você é uma criminosa! você quis impedir que nascesse mais um homem para aborrecer-se com a vida!

Berram e levam a pobre mulher para os autos, para a justiça, para a chicana, para os depoimentos, para essa via-sacra da justiça, que talvez o próprio Cristo não percorresse com resignação.

A expressão "aborrecer-se com a vida" denota outro ponto de encontro entre o pensamento de Machado de Assis e Lima Barreto. Para ambos, a vida está longe de ser uma maravilha. Pode, sim, apresentar-se como estágio prolongado de sofrimento. E questionam: qual o sentido desse tipo de maternidade/paternidade? Qual o sentido de se colocar um filho no mundo para sofrer? 

Mas o Estado, guiado por um código criminal machista, ignora o apelo. Insensível à condição da mulher, a quem trata como ser incapaz, age com eficiência ao punir a mãe e a parteira. As consequências são as mais drásticas:

A parteira, mulher humilde, temerosa das leis, que não conhecia, amedrontada com a prisão, onde nunca esperava parar, mata-se.

Reflitamos, agora; não é estúpida a lei que, para proteger uma vida provável, sacrifica duas? Sim, duas porque a outra procurou a morte para que a lei não lhe tirasse a filha. De que vale a lei?

Todos esses questionamentos estão enraizados na crônica "A lei". Diferentemente de Machado, que em Memórias Póstumas de Brás Cubas deitou seu olhar crítico sobre a irresponsabilidade de quem procria sem se preocupar se o filho ficará ao abrigo da mendicidade, da miséria, da pobreza, Lima Barreto parte também dum encontro carnal, do qual há de resultar a prenhez, mas direciona sua crítica à moral machista e anacrônica que orienta a sociedade brasileira. Na ação estatal, sob o império da lei, a frieza comanda. Não há (bom) senso de justiça. Ignora-se a mulher enquanto ser humano, dotado de vontade. Ela não se pode relacionar com outro homem, mesmo separada do antigo marido. À mulher reserva-se a solidão como fardo moral pelo simples fato de ser mulher. O desrespeito a essa regra há de acarretar-se a privação da convivência com a filha. Sacrifica-se o direito da mãe à maternidade. Proíbe-se o aborto, a pretexto de salvar a vida provável do feto. Mas com isso se condena à morte outras duas vidas - tudo com base na lei. 

Então, De que vale a lei?, interroga-se Lima Barreto. A lei vale realmente o suplício de uma mãe afastada de sua filha? A lei vale o sentimento amistoso e sincero da parteira, que quis ajudar a amiga a fugir às consequências criminais de uma legislação machista? Por que a lei não pensa na mulher? Ou melhor, por que a lei não trata a mulher como um ser humano? De que vale a lei? Ainda hoje, a lei vale o sacrifício dessas vidas?      

REFERÊNCIAS


ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Apresentação e notas Antônio Medina Rodrigues; ilustrações Dirceu Marins. 4º ed. São Paulo: Ateliê, 2004. 305 p.(Coleção Clássicos Ateliê).

BARRETO, Afonso Henriques de Lima. A lei. Disponível em: www.biblio.com.br. Acesso em: 29 de dez. 2013. 

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