sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

CANÇÕES PARA O NATAL I: Glenn Gould toca o Prelúdio No. 1 em C maior (BWV 846) de Johann Sebastian Bach

  
Gosto muito do Natal. Entre todas as festas do calendário ocidental, é a única que valorizo verdadeiramente. Mas gosto de celebrar a data de uma maneira inusual. Nunca apreciei a ideia de sair à cata de presentes, a enfrentar hordas de consumidores ensandecidos em shopping center. Causa-me mesmo espécie a indignação de algumas pessoas, frustradas por não receberem um bem material qualquer - algo que, o mais das vezes, em poucos anos, estará no fundo de uma gaveta, esquecido e abandonado. Para mim, o Natal reclama significância artística. Entendo que vale muito mais ir a um concerto de música a digladiar-se derredor dos pés de um pinheiro de plástico, aspirando ao gadjet do momento ou outra cousa descartável qualquer. Meu pai educou-me a crer que o afeto sincero é o presente mais importante que alguém pode desejar no Natal. Ele não tem valor de mercado, mas é, no limite, o que nos torna humanos. E a música é instrumento desse afeto sincero - seja ele paterno, materno, fraterno, amoroso. Arte é amor.       

Por isso aprecio comemorar o meu Natal com música, especialmente a música erudita, que está na raiz da minha formação artística. Não faço questão de roupas, sapatos, bugigangas importadas e coisas do tipo. No meu mundo, um acorde delicadamente tocado, a evocar o sentimento legítimo, vale mais que tudo.    

Assim, enquanto o dia 25 de dezembro se aproxima, e desde que não esteja a viajar a dar cabo de compromissos, tenho o hábito, desde a adolescência, de dedicar-me à ouvida de música erudita com temática natalina. No meu escritório, preparo um repertório e o usufruo. Nada me dá mais prazer que ouvir os grandes concertistas, as notáveis orquestras. É um Natal diferente - é o Natal que tem valor para mim.  

Imbuído desse espírito, faço gosto em compartilhar com o leitor algumas dessas composições que me ponho a ouvir ante a chegada do Natal.

Nesse sentido, tenho a dizer que muitos já se dedicaram a compor inspirados pela temática do Natal ("Noite Feliz", musicada por Franz Gruber, é exemplo irrefutável). Outras composições, embora não pensadas originalmente para a celebração da data, costumam ser bastante executadas no período (eu citaria, a propósito, "Jesus, Alegria dos Homens", de Bach), o que lhes dá, por assim dizer, um "ar natalino". De uma maneira ou de outra, são composições que admiro. A lista é, portanto, estritamente pessoal.      

Para começar, quero recomendar o celebérrimo Prelúdio nº 1 em C maior do compositor alemão Johann Sebastian Bach. Trata-se de partitura extraída do primeiro volume do Cravo Bem Temperado, obra referencial na música barroca, muito prestigiada por estudantes de piano (com saudades, lembro que minha ex-namorada, que era pianista, vivia com esse livro debaixo do braço, e era adorável vê-la tocar tais peças tão delicadamente em nossos encontros literomusicais).    

O livro do Cravo Bem Temperado foi publicado por volta de 1722. Mais de um século depois, Charles Gounod aproveitar-se-ia das frases bachianas, para musicar, quase como se fosse uma transcrição, sua versão da "Ave Maria". E, embora a "Ave Maria" de Gounod me pareça hoje mais conhecida pelo grande público até mesmo que a harmonia original barroca, eu ainda prefiro o Prelúdio nº 1. Afirmo minha preferência por razões estéticas, mas também pessoais. O Prelúdio nº 1 em C maior de Bach, na partitura transcrita para a clave de sol do violão, foi uma das peças que integrou o repertório que toquei numa de minhas últimas apresentações públicas como violonista erudito.  
Sobre o prelúdio que ora recomendo, existem muitas gravações, cada qual a apresentar nuanças de execução. Separei então uma das que mais aprecio: a performance gravada pelo genial Glenn Gould, um pianista pelo qual tenho a maior admiração. Gould entrega uma interpretação idiossincrásica, na qual a técnica pianística está a serviço da estética barroca, a emular uma reprodução aproximada do efeito sonoro que Bach provavelmente quis extrair do cravo - o instrumento para o qual o prelúdio foi originalmente composto. Isso se dá porque, embora o cravo seja o "avô" do piano, a mecânica de percussão das cordas em ambos parte duma arquitetura diferente. Por conseguinte, quanto à sonoridade, tem-se resultados distintos.

Ao leitor que for músico, recomendo ainda adquirir (e estudar bastante!) o livro do Cravo Bem Temperado de Bach. A edição que possuo em minha biblioteca particular foi organizada por Ernst-Günter Heinemanndas (Das Wohltemperierte Klavier, Teil 1, Bach-Werke-Verzeichnis 846-853) e publicada na Alemanha em 2007 pela G. Henle Verlag.

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