domingo, 22 de abril de 2012

A VIA MAIS POTENTE DO CORAÇÃO: a filosofia e a poesia como antídotos para a monotonia do mundo a partir dos "Princípios de Crítica Poética" de Ugo Foscolo e do pensamento filosófico de Deleuze e Guattari.


Introdução


Queste osservazioni desunte dalle belle arti servono a illustrare l'origine e lo scopo della poesia, tanto più che le altre arti agiscono su[lle] immaginazioni per la via de' sensi, mentre la poesia ci eccita ad immaginare per la via più potente del cuore.
Ugo Foscolo, in Principi di critica poetica (1823)

          Há uma indiscutível proximidade entre o fazer filosófico e o fazer poético.  Essa asseveração talvez explique o porquê de ser tão comum encontrar filósofos que foram poetas e poetas que foram filósofos. A reciprocidade dos ofícios conduz quase que imperceptivelmente a uma ou outra das missões. Ora o filósofo pensa como um poeta; ora o poeta poetiza qual um filósofo.

          A afirmação inicial deste texto permanece, contudo, irrespondida. Que fundamentos aproximariam o filósofo de um poeta? Ou, por outras palavras, que elo haveria entre o poetizar e o filosofar? Seriam dimensões de circunstância? A famosa "licença-poética" - autorizando filósofo e poeta a subverter e (re) criar a linguagem? Seria um método peculiar a ambos os afazeres? Haveria um método filosófico-poético?

Filósofo: o criador de conceitos

          Tomado por essas interrogantes, decidi perquiri-las contextualizadas com o próprio entendimento do que vem a ser a filosofia e o fazer filosófico. Cumpre aqui colocar a velha questão, de resto tantas vezes repetida, mas sempre objeto de renovadas respostas, e que pode mui bem ser resumida nesta pergunta: "O que é a filosofia?".

          Evidentemente, a resposta pode assumir os mais distintos contornos possíveis de conformidade com o prisma de quem se proponha a respondê-la. O meu ponto de vista, que o leitor já conheceu logo no início deste artigo, cinge-se às interseções do fazer filosófico com o fazer poético. Nesse sentido, parece-me interessante dialogar com Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997, p. 8) quando afirmam que "[...] la filosofia es el arte de formar, de inventar, de fabricar conceptos." (1)

          Criar conceitos é, com efeito, uma maneira interessante de definir a filosofia desde a perspectiva da poesia. O filósofo, considerado o conceito acima aludido, torna-se um criador: incumbe a ele elaborar o acervo conceptual sobre e a partir do qual transitam as categorias do pensamento. Mas, como esses conceitos necessitam de personagens que os definam, ao filósofo chamar-se-á "amigo" (da sabedoria). Segundo a tradição da filosofia grega, os "amigos da sabedoria" substituíram os antigos sábios, na medida em que aqueles são também sábios, porém mais modestos, de tal modo que buscam a sabedoria, pois não a possuem formalmente.
          Deleuze e Guattari estabelecem uma diferenciação entre as personagens do sábio, vindo do Oriente, e a do filósofo, oriundo da tradição grega, baseada na capacidade de criação. Para os autores (1997), essa diferença não é somente de níveis, como numa escala de gradações, mas essencialmente de método de pensamento: enquanto o sábio oriental pensa mediado por figuras, o filósofo inventa e pensa mediado por conceitos.     

El filósofo es un especialista  en conceptos, y, a falta de conceptos, sabe cuáles sob inviables, arbitrarios o inconsistentes, cuáles no resisten ni un momento, y cuáles por el contrario están bien concebidos u ponen de manifiesto una creación incluso perturbadora o peligrosa. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 9). (2)
          Mas não se deve considerar, de maneira simplista, que a tarefa do filósofo resumir-se-ia a apreender os conceitos que estão espalhados pela natureza como um dado invisível. O filósofo não é um "caçador de conceitos". O fazer filosófico é um fazer criativo. O filósofo, portanto, é essencialmente um criador - um "amigo" - do conceito, isto é, ele cria aquilo que está em seu poder (ele próprio um conceito em potência).

El filósofo es el amigo del concepto, está en poder del concepto. Lo que equivale a decir que la filosofía no es un mero arte de formar, inventar o fabricar conceptos, pues los conceptos no son necessariamente formas, inventos o productos. La filosofía, com mayor rigor, es la disciplina que consiste en crear conceptos. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 11, grifo dos autores).(3)

         
Não é sem razão que Deleuze e Guattari sublinham o verbo "criar" na citação supra. A capacidade criativa é, com efeito, a nota distintiva do fazer filosófico. O filósofo é um criador antes de tudo; sua missão é servir de "ponte" para a gênese do ferramental conceitual do pensamento. Cabe ao filósofo a tarefa de criar conceitos sempre novos, pois a renovação dos conceitos é o objeto próprio da filosofia. 

Crear conceptos siempre nuevos, tal es el objeto de la filosofía. El concepto remite al filósofo como aquel que lo tiene en potencia, o que tiene su poder o su competencia, porque tiene que ser creado. [...] Los conceptos no nos están esperando hechos y acabados, como cuerpos celestes. No hay firmamento para los conceptos. Hay que inventarlos, fabricarlos o más bien crearlos, y nada serían sin la firma de quienes los crean. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 11). (4)

          O fundamental é perceber que, na visão de Deleuze e Guattari, o fazer filosófico é antes de tudo um processo de criação. A menção a esse asserto está a referir-se ao papel criativo, fecundo, inventivo do filósofo na geração do aparato conceitual que instrumentaliza o pensamento humano. O fazer filosófico, acorde com as proposições dos autores, deixa, assim, de ser uma mera apreensão de formas, uma contemplação passiva do "espaço sideral" por onde se movimentam os corpos celestiais dos conceitos, a esperar a cata do filósofo predestinado. Essa visão ingênua é superada ao se observar que o conhecimento não é um dado "natural", o que significa dizer que os conceitos não estão postos o tempo todo e para todo o sempre. Não há verdade absoluta para o filósofo simplesmente porque a reflexão opera a descoberto, engendrando o entendimento pari passu com as experiências humanas, com aquilo que está debaixo do "céu dos conceitos", com o que há de propriamente humano, não extraplanar. Há, nesse sentido, um cruzamento entre o pensamento de Deleuze e Guattari e o "método de filosofar a marteladas" inaugurado pelos escritos niezscheanos que se reportam à "arte da desconfiança". Sobre o assunto, Hélio Rebello Cardoso Junior (2007) assim se pronuncia:    

Segundo Nietzsche, o filósofo precisa praticar uma certa "arte da desconfiança", sendo seu principal instrumento o "martelo". Estamos distantes demais do diálogo filosófico grego, pois com Nietzsche os filósofos aprendem que as idéias não são extraídas, de um céu filosófico que seria alcançado por meio de uma espécie de contemplação. Nietzsche demonstra que os conceitos têm uma origem sublunar, que são criações, e sofrem por isso as vicissitudes empíricas das experimentações. Os conceitos não estão prontos, à espera de que os filósofos mais argutos, mais votados à sua contemplação, mais amigos da sabedoria, venham resgatá-los de seu recesso supra-sensível. Os conceitos têm uma origem, em sua maior parte, baixa. 

         
Dessa maneira, ao retomar a pergunta do introito - "O que é a filosofia?" -, concluo, com Deleuze e Guattari, que o fazer filosófico é criativo - e que o filósofo é sujeito ativo no processo do conhecimento. Ele não contempla, mas sim cria os conceitos que estão na esfera da sua competência, uma esfera por certo idiossincrásica, pois o filósofo é o próprio conceito "em potência".  O filósofo é, portanto, um criador.

Poeta: o criador de um novo mundo (5) 

          Se o filósofo é um criador de conceitos, o poeta não está muito distante de semelhante definição. Não que a poesia tenha de, precipuamente, tal como ocorre com a filosofia na visão deleuzeana e guattariana, estabelecer conceitos em versos - o que seria uma espécie de "métrica filosófica". A poesia também pode fazê-lo, é claro, mas não está adstrita a isso. Assim, é relativamente fácil admitir que o fazer poético é um fazer criativo, pois arte pressupõe criação. E o poeta, como um artista, traduz seus sentimentos na arte poética que produz.

          É nesse sentido que Ugo Foscolo (1778-1827), poeta e romancista italiano, especialmente conhecido pelo romance Ultime Lettere di Jacopo Ortis, desenvolve suas ideias expostas no "Princípios de crítica poética: com especial referimento à literatura italiana" (Principi di critica poetica: con speciale riferimento alla lettteratura italiana.), texto publicado originalmente na revista inglesa European Review em 1824. Foscolo, nesse ensaio que serviu de introdução ao seu estudo extenso sobre a língua e literatura italianas na série de conferências, que proferiu em Londres em 1823, intituladas Epoche della lingua italiana, já no século XIX, defendia o fazer poético como essencialmente criativo, estando ligado, de modo umbilical, ao subjetivismo artístico de cada autor, e não a uma racionalidade formal explicável pela imitação da natureza. 
          Foscolo acreditava existir no mundo uma harmonia secreta e universal. Era anseio natural do homem reencontrá-la, porquanto necessária para restaurar as fadigas e as dores da existência humana. Consequência dessa aproximação com a harmonia, no entender do escritor italiano, seria enaltecer suas sensações, aproveitando-as de tal maneira que as paixões humanas despertariam exaltadas e purificadas, no que se daria o aperfeiçoamento da razão do homem. 

Esiste nel mondo una universale secreta armonia, che l'uomo anela di ritrovare come necessaria a ristorare le fatiche e i dolori della sua esistenza; e quanto più trova si fatta armonia, quanto più la sente e ne gode, tanto più le sue passioni si destano ad essaltarsi e a purificarsi, e quindi la sua ragione si perfeziona. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (6)    

           Para o autor italiano, essa harmonia, malgrado sua existência evidente, experimentada de forma correntia por grande parte dos mortais, surgiria, contudo, misturada à desarmonia, aos elementos colidentes e opostos que se encontram na natureza e, por vezes, destroem-se entre si. À arte caberia, nesse prisma, promover o reencontro do homem com a harmonia turvada pela desarmonia com que a natureza apresenta suas coisas. A música ocuparia um papel especial quanto a esse objetivo: combinando sons agradáveis à alma e aos ouvidos humanos, ela não só conseguiria subtrair os sons entediantes e discordantes, como ainda comprovaria, com seu poder universal, a necessidade humana de harmonia. O raciocínio aplicar-se-ia à arquitetura, à escultura, à pintura - estas últimas pela via dos olhos, valorizando formas e proporções que se harmonizam entre si. À poesia, de sua parte, restaria buscar essa harmonia ao reunir a música nos versos e nas palavras, gerando uma eficácia que, se não for mais manifesta que a das outras artes, é decerto mais potente, uma vez que opera pela via do coração.

Questa armonia nondimento di cui l'esistenza è si evidente, e di cui la necessità è sì fortemente esperimentata più o meno da tutti i mortali, vedesi (como tutte le cose che la natua ofre all'uomo) commista a una disarmonia di cose, le quali cozzano e si attraversano, e spesso si distruggono fra di loro. Però nella musica più che nelle altre arti appaare evidentemente che l'immaginazione umana trovò il modo di combinare i suoni, ch'esistono in natura onde produrre melodia ed armonia, sottraendo tutti i suoni rincrescevoli o discordi. Il potere univrersale della musica è prova evidente della necessità che noi sentiamo dell'armonia. [...] Vero è che la specie d'armonia propria a ciascuna delle altre arti è più espressa, e conseguentemente più efficace; tuttavia l'efficacia della poesia è più potente, tanto a cagione della riunione di tutti i generi d'armonia, quanto per la simultaneità e rapidità del loro progresso. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (7)

          O que o leitor deve perceber é que as ideias foscolianas iam de encontro ao senso comum teórico da crítica literária do século em que viveu. À época, os críticos, mormente influenciados pela Poética de Aristóteles, impunham a noção de que a obra de arte resultaria da imitação da natureza, tendo tanto mais valor artístico quanto mais fielmente capaz de se enquadrar nos modelos cunhados pelo pensamento estético aristotélico. Foscolo opunha-se ferozmente a essa tendência do período. Para ele, a literatura, especialmente a poesia, derivariam das características individuais de cada autor, bem como do ambiente histórico no qual se inseria.

           Esse posicionamento do escritor italiano revelava seu inconformismo com a moldura teórica, muito incensada pela crítica italiana epocal, do "poeta imitador" da natureza . Para Foscolo, a tentativa de imitar, pela poesia, com fidelidade escorreita a lógica natural das coisas, significaria condenar o fazer poético à esterilidade, pois este perderia sua capacidade criadora de objeto e mundo diversos - precisamente o elemento singular que permite à poesia livrar o leitor do assédio da realidade monótona da vida à medida que o poeta, com sua arte, corrige idealmente a natureza.  
[...] Il mondo in cui viviamo ci affatica, ci affligge e, quel che è peggio, ci annoia; però la poesia crea per noi oggetti e mondi diversi. E se imitasse fedelissimamente le cose esistenti e il mondo qual è, cesserebbe d'essere poesia, perchè ci porrrebbe davanti agli la fredda, trista, monotona realtà. [...] La immaginazione dell'artista corregge idealmente la Natura anche quando sa cogliere e rappresentare la gioventù e la bellezza nel più bel punto della lor maggior perfezione. [...] E nondimento l'artista imitando la natura la corregere in guisa da fermare e perpetuare le sue più bele creazioni in quel punto quasi impercettibile di perfezione. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962). (8)    
           É nesse sentido que se pode dizer que  
Bensí maggior pittore e poeta è colui che sortì tale anima da sentire vivamente gli effetti delle varietà sparse sopra gli oggetti della natura; e tale ingegno da osservarle prontissimo; e tal fantasia da immaginarle riunite, e creare di vsrie parti esistenti un nuovo tutto ideale - e, finalmente, tale giudizio da sapere applicare le varietà dove e come consuonano in armonische proporzioni fra loro. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962, grifo meu). (9)
           Foscolo defende inclusive que o conceito de "gênio" está associado à sua função criadora. Gênio, para o crítico italiano, é aquele que tem capacidade de criar, de recriar, de reconstruir idealmente a natureza, reunindo no objeto de sua arte as condições propícias à harmonia que o homem busca, pois a arte que se propõe a imitar a realidade, desapercebida desse elemento evocativo das impressões subjetivas do artista, cairá na vulgaridade.
L'Arte, imitando la creazione invariabile, coglie il Vero; ma il Genio crea L'Ideale, indovidando, radunando e distribuendo sopra un solo oggetto, com le stesse leggi e con la stessa spontaneità della natura, le varietà ch'ella ha sparso sopra diversi oggetti, o che ella avrebbe potuto creare e spargere onde rendere più belle le opere sue. L'Ideale scompagnato dal Vero non è che o stranamente fantastico, o metafisicamente raffinato; ma senza l'Ideale, ogni imitazione del Vero riescirà sempre volgare; non avrà né la grazia delle figure del Coreggio, né la divina beltà della Venere de' Medici e della Madonna della Seggiola, né il sublime dell'Apollo di Belvedere. (FOSCOLO apud PUPPO, 1962, grifo meu). (10)    

          Como pondera Karine Simoni, 
Para Foscolo, o reconhecimento do Vero está ligado a uma experiência interiorizada e subjetiva, que se pode mais sentir do que manifestar em palavras. O que equivale a dizer que o pleno significado de uma obra de arte pode ser tomado através de um processo de valorização da individual sensibiliade e não mediante a atitude interpretativa fria e racionalizante do rigor filosófico. (SIMONI, 2008, grifo do autor).
          Todas essas observações hauridas do pensamento foscoliano demonstram uma visão peculiar da crítica literária, opondo-se ao senso comum teórico da época, que, afetado a uma visão classicista aristotélica, julgava a estética de uma obra de arte tendo por parâmetro sua capacidade de emular a natureza com a maior fidelidade possível. Em sentido contrário, Foscolo introduz na teoria literária a observação dos aspectos psicológicos que movem o artista, sobrevalorizando-os, bem assim sua personalidade no contexto do momento história em que vivia, em detrimento à concepção do fazer poético qual imitador fiel da natureza.
Filosofia e poesia como antídotos para a monotonia do mundo
          Na confluência do pensamento de Deleuze e Guattari com aquele desenvolvido na ensaística da crítica literária foscoliana, creio existir o elo que permite entender a proximidade, que reconheço como ínsita, ao fazer poético e ao fazer filosófico. Aqui se cuida de estabelecer, num e noutro caso,  qual a similitude existente entre filosofia e poesia. Eis a pergunta: o que faz, não raras vezes, um filósofo proceder a uma leitura filosófica da poesia (isso quando ele próprio não se torna poeta) ou um poeta versificar ideias filosóficas (se ele não já não for um filósofo também)?

          Nesse sentido, parece-me de fundamental importância notar que tanto a filosofia, na visão de Deleuze/Guattari, quanto a poesia, na concepção de Ugo Foscolo, enaltecem como decisivo o momento de criação. O filósofo e o poeta, num e noutro caso, aproximam-se ao criar. São, assim, criadores. Aquele é o amigo da sabedoria - o criador de conceitos (ele próprio um conceito em potência); este é o artista que diversifica, com seu gênio, o que está posto na natureza, reoordenando os elementos em busca da harmonia, daquilo que se poderia idealmente chamar de "o belo". O filósofo não é, portanto, um mero catador da ideação, mas é seu autor original. Da mesma forma, o poeta não se pode considerar senão em seu mais lídimo processo criativo, quando o artista lança em sua obra suas idiossincrasias.

          Com Deleuze e Guattari, noto que, à pergunta "O que é a filosofia?", a resposta foi dada num sentido de arte. Uma arte de criar, de fabricar, de engendrar conceitos sempre novos, renovando o arcabouço do pensamento. Também por isso o filósofo há de ser sempre alguém desconfiado - talvez até de sua sombra. Desconfiança, generatriz da dúvida, é o que o coloca no mundo onde é (ou pretende ser) amigo da sabedoria, um mundo de investigações, onde não há ideias atemporais ou imutáveis, onde não há espaço para dogmas a serem assumidos maquinalmente. Um filósofo que não desconfia, que não usa seu martelo para afundar pregos na própria carne, esvaindo-se em sangue, não é um filósofo. Evitar a dor na filosofia é aceitar o que está posto - o pensamento ex datis. Para esses pseudofilósofos, facilmente identificáveis pelo seu conservadorismo atávico e aceitação inconteste da realidade circundante, não há lugar no mundo sublunar das coisas terrenas, senão no "reino dos céus" dos conceitos preconcebidos por entes indecifráveis, inimagináveis e, por conseguinte, inatingíveis. O pseudofilósofo não sabe, mas ele apenas se põe a catar conceitos criados por outrem. E o pior: considera-os a "verdade". Em todos esses casos, acompanhando as ideias deleuzianas/guattarianas, não estaríamos diante de um autêntico filósofo - isto é, um criador de conceitos; mas sim diante de um idólatra de mitos modernos. Alguns nem tão modernos assim, pois mitos há que são cultuados há milênios e, por mais que se lhes mostrem as incongruênciass nas suas "verdades", são constantemente renovados por um espírto acrítico de crença - e credo é algo que, por definição, não se discute.

          De outro lado, observo em Foscolo o mesmo cuidado em frisar o ímpeto criativo do artista, afastando-se o arquétipo reducionista do reprodutor da natureza das coisas. O fabrico da poesia  foscoliana, asssim, é essencialmente criação. É um erro reduzi-lo à imitação ou à reprodução da realidade. Sim, pois, a aceitarmos que a realidade é monótona, triste, fria, fastienta, quem buscaria a arte para imegir ainda mais no tédio do cotidiano? Ora, a poesia é uma expressão de inconformidade com o que está posto; é fuga da realidade pela criação de um mundo e objeto diversos. Afinal, segundo Ugo Foscolo (1962), "le altre arti agiscono su [lle] immaginazioni per la via de' sensi, mentre la poesia ci eccita ad immaginare per la via più potente del cuore." (11)

          Todas essas ilações explicam o porquê de o poeta assemelhar-se ao filósofo e vice-versa. Em ambos, o fazer filosófico e o fazer poético, parte-se de um processo essencialmente criativo, mas que mudam conforme a finalidade de um e outro. Na filosofia, o filósofo é o artista criador de conceitos. Na poesia, o poeta é o artista criador de um mundo novo de sentimentos que animam o homem assediado, dia e noite, pela natureza monótona da vida. Isso explica ser comum ver filósofos-poetas e poetas-filósofos: conquanto ajam com finalidades diversas, em um e outro caso, estar-se-á diante de um criador. Filosofia e poesia caminham, assim, de mãos dadas com um rumo certo: livrar, pela desconfiança do filósofo e pela imaginação do poeta, o homem da realidade monótona do mundo.

Notas
1 Traduzo: "[...] a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos."
2 Traduzo: "O filósofo é um especialista em conceitos e, à falta de conceitos, sabe quais são inviáveis, arbitrários ou inconsistentes, quais não resistem nem um instante e quais, ao contrário, estão bem concebidos e manifestam uma criação, ainda que inquietantes ou perigosas."
3 Traduzo: "O filósofo é o amigo do conceito, está em poder do conceito. Isso equivale a dizer que a filosofia não é uma mera arte de formar, inventar ou fabricar conceitos, pois os conceitos não são necessariamente formas, inventos ou produtos. A filosofia, rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos." 
4 Traduzo: "Criar conceitos sempre novos, eis o objeto da filosofia. O conceito remete ao filósofo como aquele que o tem em potência, que o tem em seu poder ou em sua competência, porque o conceito deve ser criado. . [...] Os conceitos não estão esperando prontos e acabados, como corpos celestes. Não há firmamento para os conceitos. É preciso inventá-los, fabricá-los ou, para ser mais preciso, criá-los, até porque eles não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam." 
5 O leitor notará que baseei meu escrito nos originais em italiano de Ugo Foscolo. Mas não os traduzirei, como de praxe, pois encontrei tradução em português disponível no meio acadêmico. Nesse caso, as notas de tradução dos excertos dos textos referir-se-ão àquela elaborada pela professora Karine Simoni (UFSC), divulgada na 3ª edição da Revista Literária em Tradução (2011), bem como no seu artigo "Notas sobre a crítica literária de Ugo Foscolo: uma leitura de Principi di critica poetica".   
6 "Existe no mundo uma harmonia secreta universal que o homem anseia por reencontrar como necessária para restaurar as fadigfas e as dores da sua esistência; e quanto mais encontra essa harmonia, quanto mais a sente e ela aprovieta, tanto mais as suas paixões se despertam para se exaltarem e se purificarem, e então sua razão se aperfeiçoa."
7  "Essa harmonia, apesar de tão evidente existência, e cuja necessidade é tão fortemente experimentada mais ou menos por todos os mortais, é vista (como todas as coisas que a natureza oferece ao homem), misturada a uma desarmonia de coisas, que colidem e se opõem, e muitas vezes, se destroem entre si. Porém, na música, mais do que nas outras artes, é evidente que a imaginação humana encontrou a maneira de combinar os sons que existem na natureza, e através deles produzir melodia e harmonia, subtraindo todos os sons entediantes ou discordantes. O poder universal da música é prova evidente da necessidade que nós sentimos da harmonia."  
 8 "[...] O mundo em que vivemos nos afadiga, nos aflige e, o que é pior, nos entedia; mas a poesia cria para nós objetos e mundos diversos. E se imitasse muito fielmente as coisas que existem e o mundo tal como ele é, deixaria de ser poesia, pois nos colocaria diante dos olhos da fria, triste, monótona realidade. [...] A imaginação do artista corrige idealmente a Natureza mesmo quando sabe colher e representar a juventude e a beleza no mais belo ponto da sua maior perfeição. [...] E apesar disso o artista, imitando a natureza, corrige-a de modo a parar e perpetuar as suas mais belas criações naquele ponto quase imperceptível de perfeição."
9 Mas a grandeza principal do pintor ou do poeta consiste em sentir vivamente os efeitos das variedades esparsas sobre os objetos da natureza; e tal engenho de observá-las sempre pronto; e tal fantasia de imaginá-las reunidas, e criar de várias partes existentes um novo ideal, - e finalmente, tal juízo de saber aplicar as variedades onde e como concordam em harmônicas proporções entre elas."
10 "A Arte, imitando a criação invariável, colhe o Verdadeiro, mas o Gênio cria o Ideal, adivinhando, aproximando e distribuindo sobre um só objeto, com as mesmas leis e com a mesma espontaneidade da natureza, as variedades que ela estendeu sobre diversos objetos, ou que ela teria criado e propagado para tornar mais belas as suas obras. O Ideal desacompanhado do Verdadeiro não é que ou estranhamente fantástico, ou metafisicamente refinado, mas sem o Ideal, toda imitação do Verdadeiro permanecerá sempre vulgar; não terá nem a graça das figuras de Coreggio, nem a divina beleza da Venere dos Medici e da Madonna della Seggiola, nem o sublime do Apollo di Belvedere."   
11 "[...] as outras artes agem sobre [as] imaginações pela via dos sentidos, enquanto a poesia nos instiga a imaginar pela via mais potente do coração."
REFERÊNCIAS
CARDOSO JUNIOR, Hélio Rebello. A amizade como paisagem conceitual e o amigo como personagem conceitual, segundo Deleuze e Guatttari. Kriterion: Revista de Filosofia. Belo Horizonte, vol. 48, nº 115, 2007. Disponível em: www.scielo.com.br. Acesso em: 21 abr. 2012. 
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. ¿ Qué es la filosofía? Traducción de Thomas Kauf. Barcelona: Anagrama, 1997, 220 f.
FOSCOLO, Ugo. Epoche della lingua italiana (Principi di critica poetica con speciale riferimento alla letteratura italiana). In: PUPPO, Mario. Opere di Ugo Foscolo. Milano: Mursia, 1962.  
______. Princípios de crítica poética: com especial referimento à literatura italiana. Trad. Karine Simoni. Revista Literária em Tradução. Ilha de Desterro, ano II, nº 3, p. 118-120, 2011. 
SIMONI, Karine. Notas sobre a crítica literária de Ugo Foscolo: uma leitura de Principi di critica poetica. In: XI CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC. Tessituras, Interações, Convergências. Anais on line. São Paulo, USP, 2008. Disponível em: www.abralic.org.br/anais/cong2008/anaisonline/simposios. Acesso em: 21 abr. 2012.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário