quinta-feira, 5 de abril de 2012

Regando o jardim das Papáverum Millôr: uma homenagem póstuma a Millôr Fernandes (1923-2012)


          Escrever à maneira de homenagem póstuma está a se tornar uma constante neste blogue. Talvez até mais do que eu desejaria. Fi-lo, aqui mesmo neste espaço, ao lembrar do jornalista Daniel Piza (“Contemporâneo de Mim”, postagem publicada em 22 de janeiro do ano corrente e que o leitor pode acessar no sistema de pesquisa da página), cujo falecimento precoce me contristou. Outros nomes de ilustres falecidos este ano poderiam ser recordados. O geógrafo Aziz Ab’Saber (1924-2012) com a mais absoluta certeza seria um deles, dada a missão destemida que é dedicar toda uma vida à produção científica sem se afastar do contato com os movimentos sociais (“Nunca um País necessitou tanto da ciência quanto o Brasil”, afirmava o pesquisador em tom crítico ao amadorismo das conveniências políticas com que, de praxe, os governos cuidam da questão ambiental brasileira).      
          Com a morte de Millôr Fernandes, no último dia 27 de março deste ano, o “mundo das letras” sofreu impacto semelhante ao experimentado pelo “mundo da ciência” com a morte de Ab’Saber. Millôr foi um dos expoentes do (bom) jornalismo brasileiro. Homem de letras multitalentoso, o escritor fluminense ia bem das charges à dramaturgia, sempre permeadas pelo humor inteligente que o notabilizou.
          Lembro de Millôr ainda na infância, quando lia livros de Língua Portuguesa na escola e sempre encontrava suas ilustrações - em geral, usadas para entreter crianças no difícil aprendizado da gramática normativa culta. Quem sabe, então, ele não tenha sido um dos responsáveis por me fazer amar tanto e tão intensamente a língua portuguesa - de todos os idiomas que domino, o português não só é a minha língua pátria, mas é também o meu idioma favorito, pois sou assumidamente uma vítima da lusofilia.
          Pouca gente sabe, mas Millôr também se aventurou pelo campo da poesia. Eu mesmo só fiquei sabendo disso ao ler estes textos póstumos comumente publicados sob o influxo do saudosismo que acomete todo leitor ao saber que não lerá textos inéditos do escritor que admira. Por isso, redigi essa introdução: quero partilhar um poema do poeta Millôr Fernandes com os espectadores invisíveis deste blogue (aparentemente, a contar pelo número de visualizações da página, eles existem – salvo, é claro, se a hipótese aventada pelo meu irmão, Renato Teodoro, no seu conhecido tom pilhérico, estiver correta: dedicar-me-ia, na soturnez das madrugadas do meu escritório, a apertar incessantemente a tecla F5 do teclado, buscando autoaprovação a textos que ninguém lê).    
          No entanto, prefiro acreditar, com Dostoievski, que “a beleza salvará o mundo” e há gente do outro lado que, como eu, ama a poesia. Abaixo vai o poema “Última Vontade” do Millôr, originalmente publicado no livro Papáverum Millôr (1967). Apenas advirto antes o leitor quanto a uma curiosidade. Esses versos, escritos à maneira dum testamento bem-humorado, não foram respeitados. O corpo do escritor foi cremado no Rio de Janeiro. Mas, como revela a leitura do poema, ele queria mesmo era ser enterrado na mata. Cumpre a nós, seus leitores, portanto, satisfazer seu desejo final e regar permanentemente a terra onde foi lançada a semente da flor Papáverum, da espécie dos Millôr. Só assim não permitiremos que o jardim de cultura literária donde brota esse tipo raro de flor feneça, esquecido, em seu canteiro final.      
     
Última Vontade
Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos (como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.
Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Ficarei entre ratos, lagartos,
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr
***

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