quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

AUTOAJUDA DO ESPAÇO: diálogos superficiais comprometem os méritos técnicos de "Gravidade" (2013), de Alfonso Cuarón

 
À época do seu lançamento, não foram poucos os críticos que se apressaram a apontar “Gravidade” (Gravity, 2013), do diretor mexicano Alfonso Cuarón, como uma obra-prima. Impressionados pela técnica cinematográfica apurada com que a película é conduzida - notadamente em destaque os belos e longos planos-sequência -, a recepção da crítica não poderia ser ter sido mais positiva. Não citarei a premiação do Oscar, pois não levo a sério esse prêmio. Para mim, a “festa do Oscar”, embora possa vez ou outra acertar nas estatuetas que entrega, não passa de uma convenção da indústria hollywoodiana criada para exaltar celebridades e tudo que não importa para a sétima arte (fofocas sobre vestidos, piadas sem graça, musicais constrangedores, discursos patéticos, puxa-saquismos de todo tipo etc).

Pois bem. Após assistir ao filme, a impressão que tive foi a de decepção. Mas não pelo motivo apontado comumente pela crítica: o roteiro com uma trama linear e de final previsível. A meu sentir, tal aspecto não impede a excelência da proposta. A criatividade da história, o ineditismo do tema abordado, a imprevisibilidade do seu encerramento não asseguram de per si a qualidade da obra. Tudo depende da maneira com que ela é conduzida pelo diretor. Aí sim se poderá falar em êxito ou fracasso artístico.

O que me incomoda num filme como “Gravidade” é observar o brilhantismo da direção, capaz de proporcionar ao espectador planos-sequência belíssimos, ser prejudicado por um roteiro de diálogos pobres, superficiais, quase a sucumbir ao pasticho da autoajuda.
 
Sandra Bullock e George Clooney em cena de Gravidade (2013).
Com efeito, na trama que une a cientista Ryan Stone (Sandra Bullock) ao veterano Matt Kowalsky (George Clooney) o que sobra em tensão falta em densidade dialógica. A luta angustiante e desesperada dos astronautas pela vida no espaço sideral, ante a ameaça proporcionada pelos detritos oriundos da explosão de um satélite, sofre com os diálogos fracos das personagens. Há momentos divertidos, como quando Kowalsky faz gracejos com os “olhos azuis” que não possui, de modo a evidenciar o nervosismo de Stone. Mas, no geral, a técnica primorosa do diretor perde-se na tentativa de converter o esforço hercúleo da cientista que luta pela sua vida numa metáfora universal de "tudo posso, vá em frente, você é capaz". Sobretudo depois que Kowalsky desaparece no horizonte, a protagonista, ao invés de crescer dramaticamente, diminui à medida que se aproxima mais e mais das lições convencionais de filmes feitos para inspirar o desejo de “superar as dificuldades” no grande público.

Nesse sentido, é simplesmente inaceitável que o diretor tenha incluído uma cena boba como a do delírio da personagem principal. Stone, após vencer obstáculos inimagináveis, vê-se vencida diante da morte, já desistente, ao notar que o módulo da estação espacial que habita encontra-se sem combustível. Eis que surge Kowalsky novamente. Adentra a espaçonave e dá uma baita lição de moral na cientista. Pior. Entrega-lhe a "chave" da esperança ao lembrá-la de propulsores não acionados. É como se Stone fosse uma lutadora de artes marciais prestes a ser derrotada e se recordasse do golpe fatal que seu mestre lhe ensinara durante o treinamento. E é assim que “Gravidade” de Cuarón encontra-se no espelho de algo tão medíocre quanto um desses “Karate Kid” da vida. Nesse ponto, o filme já despencou de vez.
 
Sandra Bullock em cena de "Gravidade" (2013)

Visto desse prisma, é de se lamentar que os méritos técnicos do filme percam-se paulatinamente na superficialidade de um roteiro que tenta criar o que chamarei de “autoajuda espacial”. Mesmo atores medíocres como Sandra Bullock e George Clooney não são o problema (antes o contrário, estão muito bem em seus papéis, o que é mais uma vez fruto da competência do diretor, que soube extrair o melhor de atores sabidamente limitados). O principal defeito do filme reside noutro aspecto: a falta de coragem da direção em priorizar a angústia diante da morte, a enfatizar a grandeza do espaço e, sobremodo, o silêncio. No espaço sideral, nada é mais aterrador que o silêncio. No “Gravidade” de Alfonso Cuarón, no entanto, esse ambiente silencioso cede diante das convenções industriais, claramente plantadas no roteiro para torná-lo mais “palatável” ao grande público. Converte-se., desse modo, em algo próximo a um inspirador blockbuster de ação espacial. Só assim se justifica a inserção no filme de diálogos tão tolos. A rigor, a covardia artística de Cuarón impediu-o de trilhar o caminho intrépido que Stanley Kubrick empreendeu em seu “2001: uma odisseia no espaço” (2001: A Space Odyssey1968) ou Andrei Tarkovski no seu "Solaris" (Solaris, 1972).

De qualquer modo, é um alívio a assistir a um filme (muito acima da média, ressalto) como “Gravidade”, que situa sua trama no espaço sideral desde uma perspectiva mais realista; um ponto de vista, digamos assim, mais científico. Alívio, porque já se tornaram insuportavelmente repetitivos os filmes que, no afã de ganhar dinheiro, apelam para a fórmula de sucesso garantido da ficção científica infantilizada da franquia “Star Wars” (o sucesso estrondoso do recente “Guardiões da Galáxia”, de James Gunn, esta aí para provar que a reciclagem das personagens criadas por George Lucas ainda rende muito aos estúdios). Só lamento que a ousadia técnica de “Gravidade” acabe eclipsada por um roteiro prenhe de diálogos bestas, que beiram a autoajuda do espaço. Algo absolutamente desnecessário num filme que poderia se sustentar naquilo que tem de mais fascinante: a fragilidade da vida diante das inóspitas condições espaciais. Uma pena, portanto, que tamanho potencial tenha sido desperdiçado.

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