Em 1888, o escritor Raul Pompeia expunha ao
público pela primeira vez, em formato de folhetins, as suas “crônicas de
saudades”. Era a história de Sérgio, um adulto que relembrava sua passagem pelo
Ateneu, um colégio interno renomeado do Rio de Janeiro, para o qual havia sido
enviado pelo pai.
As lembranças da personagem Sérgio remetem a
um menino que atravessa um rito de passagem: a transição da
infância/adolescência para a vida adulta. Distante dos pais, submetido aos
rigores de uma instituição comandada com mãos de ferro pelo diretor Aristarco,
o Ateneu não figura apenas como
o “lugar“ onde a ação da trama se passa; ele é um personagem por si só, a
concentrar o núcleo narrativo em derredor do qual as personagens articulam-se
de uma maneira ou outra.
Essa estrutura narrativa, que compõe o
romance “O Ateneu”, clássico da Literatura brasileira, é a mesma que inspira “O Grande Hotel Budapeste” (The Grand Budapest Hotel, 2014). Dirigido por Wes Anderson, a
história de amizade entre o Sr. Gustave (Ralph Fiennes) e seu empregado e
pupilo Zero (Tony Revolori) dá-se em torno da alienação histórica representada pelo Hotel Budapeste, que
acaba por se converter num Ateneu do cinema, isto é, um personagem próprio.
Inicialmente, é preciso esclarecer que, à diferença de Pompeia, Anderson
não está preocupado com a verossimilitude do seu relato. O enredo que pretende
contar é propositalmente uma fábula, como se tivesse sido extraída de um
cartum. Embora o contexto histórico – a Europa no período que intermedeia a
Primeira e a Segunda Guerra Mundiais – possa ser facilmente identificado, a preocupação com a sua reconstituição fidedigna é irrelevante para a trama. O motivo é que o diretor propositalmente se volta a contar uma fábula, o que fica claro já nas cenas iniciais do filme, quando vemos uma leitora caminhar até o busto do escritor do livro intitulado "O Grande Hotel Budapest".
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Em seguida, como se saltasse das páginas de um romance, o escritor
ganha voz e, num recurso bastante engenhoso de metanarrativa fílmica, passa a narrar sua lembrança da conversa por meio da qual o proprietário do Grande Hotel
Budapeste contou-lhe como atingiu essa condição cheia de prestígio.
É assim que conhecemos Zero Moustafa, um “lobby
boy” recém contratado pelo Sr. Gustave, o excêntrico gerente do hotel. Com o
tempo, Zero torna-se mais do que um empregado para Gustave: adotado como
pupilo, ele toma partido das dificuldades imanentes ao ofício de quem busca
manter o refinamento de um grande e elegante hotel. Também fica sabendo das artimanhas
usadas pelo gerente para cativar a clientela de ricas senhoras idosas que
frequentam o hotel (e como ele tira proveito disso).
Uma dessas hóspedes vem a falecer. Pela sua
herança, toma corpo uma batalha acirrada entre os herdeiros e o Sr. Gustave,
uma vez que seu nome consta no testamento como legatário de um quadro
renascentista de valor artístico (e financeiro) incalculável.
Esse é o enredo do filme, que se torna
divertido à medida que a estética peculiar do cinema feito por Wes Anderson apresenta-se
bastante eficiente para narrar sua fábula do período entre-guerras. É como se o
diretor tivesse a pretensão de resumir, em “O Grande Hotel Budapeste”, um pouco
de cada um dos seus trabalhos anteriores: a direção de arte afetada de “Moonrise
Kingdom” (idem, 2012), o tom cômico-dramático
de “Os Excêntricos Tenenbaums” (The Royal
Tenenbaums, 2001) e o mote aventuresco de “Viagem a Darjeeling” (The Darjeeling Limited, 2007). Tal desprendimento
declarado do fatual é que justifica a lógica de uma “história dentro de outras
histórias”. No fim, não existe história nenhuma, pois tudo não passa de
fabulação na cabeça da leitora que se deixa entreter pela ficção do livro que
lê. Também por isso Anderson pode brincar a todo o momento com a narrativa,
notadamente na maneira caricatural com que ora apresenta os trejeitos do Sr.
Gustave (o carisma da personagem cresce ante a excelente atuação de Ralph
Fiennes), ora o vilão Jpoling (Willem Dafoe).
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Ralph Fiennes e Tony Revolori em cena de "O Grande Hotel Budapeste" |
Desde a construção das personagens, é notável
a maneira com que o diretor, de início, leva o público a ver Zero qual um reles
empregado subalterno de um hotel europeu chique em estágio de treinamento. Essa
visão superficial e faceira, porém, não permanece, pois logo Zero assume a
condição de vítima da guerra – a anunciar as consequências dos grandes conflitos
bélicos europeus sobre a migração de povos. O próprio gerente do hotel é o
símbolo dos tempos evanescentes da cultura europeia de elegância e opulência, deixada
para trás por um continente ora mergulhado num presente autoritário, notadamente pela ascensão de governos fascistas ao poder.
Visto dessa forma, o Grande Hotel Budapeste não
é senão um locus anacrônico. Diferentemente
do Ateneu de Pompeia, que se amolda justamente ao autoritarismo da educação brasileira no
século XIX, o Hotel Budapeste está deslocado do momento histórico belicista que
o circunda no século XX, gerido por um homem alienado por uma fantasia de
prosperidade e luxo que só ele consegue conceber. Assim, enquanto o Sr. Gustave
representa o passado que recalcitra em sucumbir, Zero constitui o presente
trágico de um continente em conflito. São dois mundos que se chocam decisivamente
no espaço do hotel (daí seu protagonismo na estrutura da narrativa), que não pode mais resistir às mudanças históricas e,
portanto, permanecer incólume sob o passadismo alienado e extravagante da sua gerência (não é à toa
que o Sr. Gustave, em dado momento do enredo, parará na prisão).
Todos esses elementos conjugados (personagens
carismáticos, roteiro ágil com uma narrativa divertida, que mascara
perspicazmente o contexto bélico crudelíssimo do período entre-guerras, a
estética colorida afetada e justificada pela proposta de fabulação) fazem de “O
Grande Hotel Budapeste” um resumo exemplar da carreira de Wes Anderson. Ao
mesmo tempo, o filme evidencia os méritos artísticos do diretor estadunidense,
que, sem vacilar, pode ser considerado com toda a justiça um dos mais criativos
realizadores a trabalhar em Hollywood – um notável fabulista do cinema
hodierno.