terça-feira, 14 de maio de 2013

PRAÇA NOTURNA SOLITÁRIA



 
E naquele dia ele simplesmente parou. Largou seu caça-níquel, o marcador de texto, lápis e papel. Estava cansado. Seus olhos comidos pelo sono inconcluso da noite anterior. Noite de terror, noite de insônia. Levantou-se e deu a partida. Girou a chave no gancho do automóvel. Saiu. Roda pela pista, lê os letreiros pela madrugada. Vê falência em cada outdoor. Ignora seu caminho. Nem o paradeiro decidido recorda mais. Apenas segue. Precisa seguir. Continuar.

Pensa nos indícios de uma vida desperdiçada, em sonhos corroídos, lembranças vagas. Pensa e repensa. Já está a matutar quando percebe o horário num relógio digital da praça noturna solitária. É tarde, talvez tarde demais até para viver. Ali próximo estaciona seu carro. Há urgência naquela vinda. Há premência naquela chegada. Subitamente sente seu peito esmagar. Um colapso, um desatino! O equívoco dantesco de um louco, solitário, tartamudeando insistentemente o recobro de um preço que ele não sabe mais se está disposto a pagar. Infelicidade.  

Caminha pelo passeio. Ignora o que faz ali, simplesmente está. Diante de seus olhos surgem foliões mascarados. Eles brincam e dançam ridiculamente, assinalam palavras sem sentido, preenchem bolinhas com tinta preta num papel timbrado, competem entre si pelo veneno de um escorpião. Ele suspeita que desse ganha-pão cada qual quer um pedaço - daquele estado, daquele estádio, daquele status. São egos sedentes que recalcitram em subir por elevadores descoordenados, que vão dar nas colunas dos jornais de domingo, logo pela manhã, quando uma criança chora de fome mas ninguém ouve os seus berros.

Agora estão todos assombreados. Protegidos numa toga descosida, têm a alta dignidade de bufarinheiros. Ele olha os foliões em redor daquela praça, seus paletós bem alinhados, o cenho franzido. Olha e ouve um telefone tocar. A voz que atende anuncia: "Estás sozinho. No meio desse carnaval não tens máscara." Segue a caminhar.

Vai pelo meio daqueles foliões ridículos a abrir uma estrada. Vai sozinho, como sempre esteve, aliás. Seu percurso é como o de um salteador a camuflar seus passos por uma trilha invisível. Nos corredores daquele calabouço, vê o criminoso passar algemado, subjugado pelos braços fortes de um policial obtuso, um agente da lei criada por uma bolsa de valores corrupta. Ele observa aquele teatro de togas e fardas, de algemas e martelos, de carimbos e pastas. Julga-o patético como o andamento inacabado de uma sinfonia de novelas, que se sucedem no tempo, que se repetem, que iludem e irritam pelo seu tom melodramático. Naquele calabouço não há salvação.       

De volta ao seu quarto, retoma seu caça-níquel. Conta quantos X acertou. Mais um fiasco. Tem dúvidas se quer vestir aquela máscara, se quer tomar em mãos aquele martelo mágico dos foliões mascarados que se regozijam ao brincar de jogos de poder: prender e soltar. É verdade que essas dúvidas não são novas. Há tempos ele vem perdendo prazer nesse jogo; sente saudade do seu violão. Mas ele já notou que a hesitação vem do cansaço que às vezes sente - um cansaço tão forte que o faz pensar em desistir, que o leva a sentir-se frágil ao ponto de ser incapaz de esmagar com o peso do seu punho um mosquito noturno.

É nesses dias de cansaço que ele mais sente falta dela. Sente vontade até de escrever uma missiva métrica de tão pueril que fica, de gravar-lhe o nome no pentagrama de uma partitura. Ele a procura como o usuário de um serviço de investigação inútil, vacila, mas sabe que a vai achar. Ou melhor: reencontrar. Por isso, nesses dias de cansaço, nessas noites de terror e de insônia, ele clama pelo nome dela como o arqueólogo que escarafuncha os escombros das peças de um museu grego cômico-trágico soterrado. Então ela está perto dele, a alumiar o seu quarto de dormir com seus olhos tristes e cálidos. É quando ele vê a luz se esvair naquela praça noturna solitária. Em sombras, em sonhos, em nada.        

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