segunda-feira, 27 de maio de 2013

O VIOLÃO E AS MULHERES


10. Estime seu violão como se ele fosse a mulher amada.
Trate-o com carinho, conserve-o sempre afinado
e troque as cordas de vez em quando.
E se um dia o amor terminar, não o troque por uma sofisticada guitarra elétrica.
Lembre-se do que ele representou para você.
Paulinho Nogueira, "Décimo Mandamento", in: "Os dez mandamentos do violonista".
  
Há algumas semanas, li duas reportagens que me chamaram a atenção. Havia em ambas uma mesma premissa: músicos fazem sucesso com as mulheres. Até aí nenhuma novidade, afinal, já faz parte do anedotário masculino tipicamente machista cousas nesse sentido. O que despertou meu interesse foi um pequeno detalhe: segundo os pesquisadores constataram, o galanteador sequer precisa saber tocar o instrumento. Basta a "imagem" para causar uma impressão diferenciada e conseguir mais facilmente o telefone de uma garota.

Esse é o tipo de pesquisa "científica" que precisa ser ponderada. Reflito: será que a ideia de um músico fazer sucesso com as mulheres é mesmo uma verdade universal? Ou será que há nuanças que não podem ser desconsideradas? Será que todo e qualquer instrumento é capaz de elevar as chances de sucesso no jogo da conquista?

Faço essas perguntas ridículas ao leitor. E, ridiculamente, chego a uma conclusão frustrante: não, nem todo músico faz sucesso com as mulheres. É muito fácil achar que todo músico é "pegador" quando pensamos em instrumentos populares, como o violão, ou requintados símbolos de status social, como o piano. Mas a coisa muda completamente de figura quando nos damos conta de que há um sujeito, neste momento, em algum conservatório do mundo, a estudar instrumentos tão insólitos quanto, por exemplo, o oboé ou a tuba. Alguém aí nessa pesquisa pensou em como há de se sentir um oboísta ao paquerar uma garota? 

"Oi. Tudo bem".

"Tudo bem."

"Eu te achei linda, sabias?"

"Ah! Obrigada", diz ela lisonjeada. E notando que o pretendente portava um instrumento de sopro, pergunta: "Que é isso na sua mão? Uma flauta gigante?"

"Ah, não, não. É um oboé."

"Obo... obo o quê?"

"Oboé. Eu toco oboé. Sou oboísta!" 

Só de pensar que existe alguém no mundo que saiba dizer que "quem toca oboé é oboísta" já me leva a crer que há algo de errado com essas pesquisas.

Imaginemos, então, o seguinte estereótipo (advirto que qualquer semelhança com a realidade não será mera coincidência): uma bela garota, dessas que cresceram a tomar whey protein na academia, praticando musculação, esculpindo o próprio corpo como o de uma musa grega calipígia, um mulherão daqueles que quando passa é de parar o trânsito. Imaginemos ainda que essa mesma garota, ao longo de sua vida, tenha, digamos assim, cultivado pouco as virtudes do espírito. Não é uma pessoa completamente inculta. Frequentou o colégio, onde ficou sabendo que existe um escritor brasileiro chamado Machado de Assis, mas cuja obra só conhece pelo resumo que leu para passar no vestibular. Faz "facul", passou até em Direito, que é "curso de elite" e "dá dinheiro". Nunca leu Walt Whitman ou Samuel Taylor Coleridge, mas é fluente em inglês, pois fez intercâmbio nos Estados Unidos e adora fazer compras em Miami. Ela veste roupas de grifes estrangeiras, de estilistas famosos, de gente chique das fashion week. Nas horas vagas, que não são poucas, além da malhação, como quase toda garota, gosta de dançar. Vai com as amigas a boates (entra de graça, pois a mulher, quando é muito gata, tem sempre entrada VIP na porta), já foi até a uma rave. Mas gosta mesmo é de um pagodinho, de um sertanejo universitário; gosta também daqueles congressos em cidades praianas, do tipo "micareta estudantil", em que não se aprende nada, mas tem muita "pegação", onde "a curtição vai rolar". Nunca entrou nula sala de concerto, nunca viu a apresentação de uma orquestra. Tudo o que conhece de música erudita veio da infância, quando ouvia (sem perceber) composições clássicas durante os episódios do Tom E Jerry. Agora me digam: como uma mulher assim vai se apaixonar por alguém que toca oboé - um instrumento tipicamente orquestral?       

Definitivamente, o estereótipo do "músico sedutor" não é uma verdade universal. Ele precisa ser interpretado com cuidado. Para usar uma expressão horrivelmente jurídica, é preciso analisar o caso concreto cum grano salis

Mas eu não serei injusto com os pesquisadores europeus das universidades não sei lá das quantas. A amostragem em que se basearam nunca foi tão ampla. Eles nunca tiveram a pretensão de afirmar que todo e qualquer músico levará vantagem com as mulheres. E é aí que entra o nosso querido e surrado amigo - o violão. Segundo essas doutas pesquisas, segurar um violão aumenta as chances de conseguir um encontro. Tem até percentual: 30% a mais de chances. É a matemática da paquera! E detalhe: nem é preciso saber tocar o instrumento. Só de carregar o violão o sujeito já parte na frente da concorrência ao abordar a moça.   

Essa última hipótese - digo, do paquerador que usa o violão para conquistar mulheres - é curiosa. Leva-me a recordar a minha trajetória enquanto estudante de música. Lembro-me de que, nos idos do conservatório, era comum ouvirmos falar que "músicos se dão bem com as mulheres". Mas esse sucesso mítico-anedótico dificilmente se aplicaria a mim e aos meus condiscípulos. Explico. Após ser aprovado no "teste de musicalização" do conservatório, eu tinha duas opções: estudar violão "clássico" ou violão popular. Optei pelo primeiro. Com isso, caí no limbo em que cai todo estudante de música erudita numa sociedade em que a quase totalidade das pessoas não ouve música erudita, isto é, a incompreensão. Não foram poucas as vezes em que me pediram para "tocar alguma coisa". E lá eu ia a executar peças de Carcassi, Sor, Giuliani. Depois, já avançado nos meus estudos musicais, incluí no meu repertório algumas sonatas e suítes. Para piorar, a minha maior paixão sempre foi a música erudita antiga. Assim, quase todo o meu repertório era composto de peças oriundas dos períodos barroco e renascentista, fortemente inspirado por Julian Bream, um violonista e alaudista especializado em... música antiga! Com o tempo, tive de me acostumar à decepção das pessoas ao me verem tocar o violão: 

"Ah, legal isso aí. Mas toca alguma coisa conhecida."

"Como assim 'conhecida'?", replicava. "Isto aqui é conhecido, pelo menos de quem gosta de música clássica."

"Sim, eu sei", respondia o interlocutor, fingindo conhecer música clássica para não parecer ignorante. "Eu sei que essa música é conhecida. Mas toca algo mais conhecido." 

E esse mesmo raciocínio aplicava-se às garotas da escola. Afinal, se já não é fácil encontrar hoje em dia um adulto ouvinte de música clássica, imagina então uma adolescente, no ano 2000, que admirasse um jovem estudante cultor de música erudita antiga.  

"Olá."

"Oi".

"Eu te achei muito linda, sabias? Que tal se me desses teu telefone? Aí eu te ligo e a gente pode sair qualquer dia desses. Que achas?"

"Espera, tu tocas violão?", diz a beldade, os olhos a brilhar entusiasmadamente.  

"Sim, toco."

"Toca pra mim!"

Então, depois da execução da Bourrée de J. S. Bach:

"E aí, gostaste?"

"Sim. Achei legal isso aí. Mas toca alguma coisa mais conhecida."

Esses exemplos servem para ilustrar outro equívoco dessas pesquisas. Elas não discriminam se o violonista é erudito ou popular. Porque se há um violonista a fazer sucesso com as mulheres, acreditem, ele com certeza toca música popular. Se bem que - e aqui eu retomo o aspecto inusitado da conclusão a que chegaram os pesquisadores que mencionei no início - nem é preciso saber tocar o instrumento para aumentar suas chances na paquera. Basta carregar o violão. E carregando o violão, popular ou erudito, todo violonista é igual.  

E foi desse jeito que eu logo percebi, ainda na minha tenra adolescência, que só o violão não bastaria para me ajudar a conquistar uma garota, que eu precisaria desenvolver outras habilidades úteis ao jogo no qual se busca encantar o coração de uma dama.

Porque me mantive fiel ao violão erudito, talvez tenha perdido os meus 30% de chances a mais de conquistar a garota mais bonita do colégio, a vênus calipígia que tem o poder de parar o quarteirão. Mas depois, com o tempo, mais amadurecido, percebi que o prejuízo nem foi tão grande assim; que há mulheres que gostam do sujeito que toca violão popular, como há mulheres que admiram quem toca violão erudito - ainda que estas últimas existam em número infinitamente menor.

E se o leitor me perguntasse se a minha fidelidade ao violão erudito foi opcional, eu responderia sem vacilar: "Não". Eu não optei em manter-me fiel à música erudita. Opção pressupõe possibilidade de escolha, pressupõe que haja alternativas. E alternativas eu nunca tive à minha disposição. Eu jamais poderia deixar aquela forma de arte. Se o fizesse, estaria a fraudar minha própria existência, a malferir meus sentimentos mais íntimos. E não há fardo mais triste na vida de um homem que o de amar uma mulher com o coração insincero, fingindo ser o que não é.    

Um comentário:

  1. Ai,ai, nem vou elogiar muito pois que já conheces minha opinião sobre a forma e o conteúdo do que escreves.
    Faço só uma pequena reflexão a respeito do que li: mão me considero uma mulher culta; gosto do que é considerado popular( com umas exceções porque ai já seria uma violência contra minha mente); tenho visão de mundo marxista( a morte da mais valia); me acho eclética, porque fui criada sabendo sobre a musica erudita. E me sinto violentada com um resultado de pesquisas como esse- como bem dizes " basta pegar o violão, nem precisa tocar". Esse diálogo do Oboé, nossa, eu sou mulher e me sinto atingida por essa cultura ai, da alienação,Não, não, não sou alienada, e sabes muito bem disso, mas sinto-me triste por ver meu gênero exposto assim e por culpa dessa alienação de muitas, tenho que admitir.
    Esse ultimo parágrafo do teu texto " opção pressupõe possibilidade de escolha...", revela bem o Rafael que eu conheço. Se não podemos evitar outras formas de violência, pelo menos não violentaremos a nós mesmos!

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