domingo, 24 de maio de 2015

Quem está só de passagem não deveria preocupar-se tanto em enriquecer...


Sempre que um estagiário novo passa a trabalhar comigo no gabinete, tenho a preocupação de dar-lhe alguma orientação quanto ao rumo de sua carreira jurídica. Não é uma preocupação comum no meio forense, já que, dado o ritmo alucinante de processos que chegam diariamente para análise, na maior parte das vezes, juízes, promotores e advogados limitam-se a "jogar processo" no colo do estagiário e "passar-lhe um modelo". Conheço bem essa postura, pois, quando estagiário, eu mesmo fui vítima dela (não te ensinam nada, mas te cobram a resolução de tudo). Hoje, como profissional já inserido no mercado, portanto, tento agir de maneira distinta, a cultivar, no espaço microfísico de poder em que estou inserido, uma cultura de respeito ao jovem profissional que dá os primeiros passos na sua carreira.

Imbuído desse propósito, uma das primeiras perguntas que faço ao estagiário diz respeito ao seu futuro: pretende atuar na advocacia privada ou seguir a carreira pública? A depender da pretensão, as escolhas a serem feitas mudam substancialmente. No meio jurídico, há diferenças notáveis na atuação de um profissional liberal e um servidor público, que vão desde a maneira do ingresso (concurso público), passando pelo vínculo (institucional ou empregatício) à remuneração (salário ou vencimento/subsídio).

           Certa vez, então, quando iniciava a minha atividade como advogado, inquiri um estagiário do escritório sobre o que pensava do seu futuro profissional. A resposta não poderia ter sido mais direta: "Quero entrar no serviço público, para enriquecer como todo mundo faz". Percebi de imediato que o estagiário estava, puerilmente, a reproduzir um pensamento que associa potencial de enriquecimento às carreiras no Estado. Embora, por hipocrisia, ninguém o admita, trata-se de um pensamento corrente em nossa sociedade, que decorre, a toda evidência, da nossa cultura patrimonialista. Segundo essa maneira de pensar, a res publica não é o patrimônio de todos, mas sim "propriedade sem dono". Logo, não há problema em apropriar-se daquilo que "não pertence a ninguém".

Ao longo da minha carreira jurídica (que nem é tão longa, já que não sou tão velho assim), pude me deparar com processos criminais envolvendo fraudes em licitações, corrupção, peculato etc. Em vários desses casos, havia acusações contra prefeitos de cidades pequenas do interior, quase sempre a envolver desvio de verba federal - uma verba enviada para subsidiar pautas essenciais como saúde e educação. O agente público criminoso, que age na esfera da corrupção enraizada no aparelho estatal, nunca pensa nas consequências do desvio. Ele é incapaz de antever que aquele dinheiro desviado é o recurso que falta para a merenda das crianças na escola, para a compra de remédios ou para pagar um salário digno aos professores. Ele só vê cifras num papel timbrado. É um dinheiro que chega não se sabe de onde; é uma soma generosa que "cai do céu"; é o dinheiro público que (para ele) não tem dono. Sentado em sua cadeira, o bandido infiltrado no Estado reflete: "No Brasil é tudo avacalhado, todo mundo rouba mesmo". A seguir, arruma seu colarinho branco, enquanto conclui que é moral ele tirar uma fatia daquele "bolo de dinheiro que não tem dono". Ele, o agente criminoso, pensa exatamente como o estagiário do meu exemplo: usa o serviço público para enriquecer. E ainda acha que é justo, pois tudo o que faz é garantir o seu padrão de vida "sem prejudicar ninguém".  

No meio forense em que atuo, não é preciso praticar crime para externar o desejo de "enriquecimento". Há, por parte de alguns operadores do Direito, uma disputa escancarada por toda sorte de auxílios, diárias, assessorias, cumulações de comarcas, substituições etc., que paguem "uma graninha a mais no final do mês". Assim, mesmo quem não tem condições (nem físicas nem intelectuais) de atuar em várias comarcas ao mesmo tempo, entra no jogo pelo dinheiro. Resultado: presta-se um péssimo serviço público, corolário de uma justiça cínica, ligada mais a interesses pecuniários imediatistas que a um autêntico compromisso com os direitos das pessoas. Não acho ruim o desejo do trabalhador de querer ganhar mais; ruim é o sujeito comprometer-se com a prestação de um serviço de justiça à sociedade sem ter disposição (real) para executá-la a contento em favor do povo. Curiosamente, essa é uma conduta verificável sobretudo nos escalões mais elevados da burocracia, ou seja, nos cargos de maior remuneração.   

Penso então que todos aqueles que almejam a carreira pública, em todos os Poderes do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário), deveriam cerca-se de cautelas contra a cobiça desvairada, infelizmente tão comum em nossos dias. Esse desejo consumista exacerbado, que se encontra espalhado em nossa sociedade, está na gênese do desvario de quem busca sobressair-se pelo requinte dos seus hábitos de consumo. Faz-se um esforço inaudito para ostentá-los diante dos seus pares, como se possuir um carro alemão importado, um closet recheado de bolsas e sapatos de grifes, ou viajar regularmente aos Estados Unidos, constituísse o mérito maior que um ser humano pode alcançar na vida.

Mas há muitas maneiras diferentes de enxergar mérito na existência humana. Há muitas formas de identificar alguém como uma pessoa bem sucedida. Um padrão de vida elevado, com hábitos de consumo luxuosos, é apenas um deles – embora, na era do “culto às celebridades”, certamente seja o mais comum. Apesar disso, nem todos veem o consumismo padrão-ostentação como o ápice da homo sapiens. De acordo com a minha visão de mundo, por exemplo, ele não significa nada. Na minha escala de valores, digno de admiração é o professor que trabalha no interior mais remoto, dedicando-se ao ensino de crianças em salas de aula improvisadas, para receber um salário aviltante. Admirável é o assistente social que ajuda a tirar moradores das ruas, o policial honesto que não aceita propina, o médico que atende bem seus pacientes no posto de saúde de uma comunidade pobre, o juiz e o promotor que não trabalham na comarca só às terças, quartas e quintas (o famoso esquema "TQQ"). Mas essa é a minha escala de valores, a escala de valores que ao longo da minha vida eu construí. Infelizmente, não é uma escala tão comum em nossa sociedade iletrada, que ainda valoriza muito pouco a educação e o comportamento ético como feitos dignos da mais viva admiração.   

Deveríamos, portanto, mudar nossa escala de admiração. Valorizar alguém pela contribuição que dá à sua comunidade mais que pela cobertura do prédio em que reside. Deveríamos admirar quem escreve, quem publica, quem traduz, quem ensina. Acima de tudo, deveríamos admirar quem estuda e faz uso desse conhecimento em prol de uma causa social qualquer, que contribui para diminuir a desigualdade e o sofrimento das pessoas - especialmente das pessoas mais pobres. É essa a escala de valores que eu quero para a minha sociedade. É por ela que tenho lutado todos os dias da minha vida.   

Por isso, quando ouvi aquelas palavras do meu estagiário no escritório, a anunciar seu desejo de “ficar rico” no serviço público, vi-me, de chofre, surpreso e entristecido. Surpreso, porque não esperava ouvir a resposta prenhe duma sinceridade tão grande. Entristecido, porque se cuidava de alguém muito jovem, porém já derrotado por uma cupidez retrógrada e envilecida, que está na gênese da nossa cultura patrimonialista e dos muitos males da corrupção estatal.

Mas não me deixei dobrar. E, não obstante eu mesmo fosse bem jovem à época (tinha 24 anos), respirei fundo e procurei dissuadir o estagiário da sua ideia fixa de enriquecimento no serviço público. Não o fiz de modo veemente, a ralhar-lhe qual um superior hierárquico no trabalho. Sabia que essa postura não funcionaria, especialmente numa sociedade em que explodem a cada semana novos escândalos de corrupção. Procurei convencê-lo de forma sutil. Contei-lhe então uma velha história que eu tinha lido nas páginas de algum livro do qual não me recordava o nome. Disse-lhe que, numa época qualquer, um estudante orgulhoso tinha ido ao encontro do homem que era apontado como o maior sábio da região. O homem morava em um local distante. Assim, o estudante viajara por vários dias até encontrar a casa do sábio. Ao chegar ao seu destino, o estudante deparou-se com um ancião. Disse-lhe que viera de muito longe para conhecer o homem de maior sabedoria em toda a província. Comovido, o velho sábio, que era um homem de suprema humildade, convidou-o a hospedar-se em sua casa. Mas o estudante, notando que a casa era pobre, com poucos móveis e nenhum luxo, recusou o convite, dizendo que estava só de passagem. Ao que o sábio respondeu: “Eu também”.

No fundo, nós estamos – todos, sem exceção - apenas de passagem neste mundo. Nenhum de nós é permanente e nenhum dos nossos bens nos acompanhará no dia da nossa morte. Somos como o ponteiro de um relógio cego ao qual temos a possibilidade de dar uma destinação moralmente útil, empregando as horas das nossas vidas em favor dos mais necessitados. Ou podemos viver sob a lógica maquinal da cobiça desbragada, sem limites, que quer encher a casa de móveis de luxo, insensível ao mundo que sangra ao nosso redor. Podemos guiarmo-nos por esse ideal cobiçoso, que não hesita em atropelar todos os limites éticos e, até mesmo, legais. Numa palavra: fazer tudo para juntar a maior quantidade possível de dinheiro - mesmo que seja o dinheiro público da merenda das crianças, dos remédios do hospital ou do salários dos professores. Talvez seja a hora de pararmos para pensar se toda essa nossa avidez por dinheiro é imprescindível para a nossa felicidade. Quem sabe, pondo-nos a refletir, descubramos que viver uma vida mais simples, desapegada do consumismo irracional, pode ser a verdadeira sabedoria. Um caminho possível para a felicidade. Quem está só de passagem, afinal, não deveria preocupar-se tanto em enriquecer...

Foi assim que, naquela conversa informal no escritório, como um jovem advogado em início de carreira, tentei convencer meu estagiário dos riscos inerentes ao seu pensamento. Isto é, que o serviço público não é (não deveria ser) o lugar propício para enriquecer. Não fiquei sabendo até hoje se ele me ouviu...  

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