domingo, 26 de agosto de 2012

MIB (Música Imbecil Brasileira): o sertanejo universitário na era da imbecilidade monossilábica


Tempos líquidos do idioma da velocidade


Zwei Dinge sind unendlich, das Universum und die menschliche Dummheit, aber bei dem Universum bin ich mir noch nicht ganz sicher.
Albert Einstein (1879-1955).


          Há uma tendência idiomática, estudada pelos gramáticos e linguistas, e mesmo constatável empiricamente, que consiste na ação do falante de abreviar as palavras. Assim, palavras longas são reduzidas ao longo do tempo. Exemplo clássico encontra-se no pronome “vocês”. Esta forma, tal como se encontra hoje registrada nos léxicos, nem sempre se pôde considerar “correta”. Em Portugal, a nação europeia da qual o Brasil herdou seu idioma oficial, ouve um tempo em que o pronome de tratamento real era “vossa mercê”.Expressão longa, a passagem dos séculos tratou de vulgarizá-lo, abreviando-o. Hoje o escrevemos apenas como “você” – considerando-o plenamente aceitável nos rígidos quadrantes da gramática normativa culta.
          Talvez a necessidade de fluidez nos diálogos possa explicar, ao menos em parte, esse movimento de “encurtamento” das palavras numa língua. O interlocutor apressado deseja exprimir suas ideias e sentimentos com rapidez. Logo, usa de vocabulário que lhe proporcione a celeridade almejada. E é aí que a abreviação encontra campo fértil para desenvolver-se, porquanto parece ser de fácil compreensão que palavras curtas propiciam agilidade a uma conversa.
          Nos tempos presentes, na afamada “era digital”, esse movimento, outrora secular, acelerou-se. Hoje é possível notar sem dificuldades o recrudescimento do processo de abreviação das palavras de um dado idioma. Para citar novamente o caso do “você”, nas redes sociais e nos programas de comunicação instantânea via internet, aquele pronome, cuja forma culta na atualidade já é uma redução da original, foi novamente “mutilado”, tornando-se um singelo “vc”. Idêntico fenômeno se observa no verbo “teclar”: quando usado na denotação de “acionar por meio de teclas”, o usuário da internet tem preferido um simples “tc”.
          Essas transformações linguísticas, se de um lado operam-se nos rastros das consequências sociais da globalização - aquilo que o sociólogo Zigmunt Bauman chamou de “modernidade líquida” -, de outro decorrem de uma tentativa de estabelecimento de um signo linguístico capaz de comportar uma sociedade acelerada e sem freio. Eis o "idioma da velocidade".
          O “idioma da velocidade”, dessa maneira, pode-se considerar como sendo o sistema de comunicação mediante o qual o interlocutor prioriza a ligeireza da interlocução: o diálogo deve ser rápido, fluido, “líquido”, mesmo que, para tal fim, seja preciso sacrificar regras comezinhas de sintaxe ou abreviar impiedosamente as palavras.
Sertanejo universitário: um conceito obscuro no cancioneiro nacional
 


           A ideia de “idioma da velocidade”, que ora estou a propor, encontrou terreno fecundo na música comercial brasileira. Especificamente, refiro-me ao gênero que se convencionou chamar de “sertanejo universitário” - atualmente dominante em todas as rádios do País.
          O conceito de “sertanejo universitário” é dos mais obscuros do cancioneiro nacional. Trata-se de uma aparente contradictio in terminis, afinal, “sertanejo” remete à ideia de “sertão”, área agreste, rústica, visto que distanciada dos grandes centros urbanos. Já “universitário” é adjetivo que se liga incontinenti à “universidade”, isto é, espaços de difusão dos saberes científico e filosófico e que, o mais das vezes, situam-se justamente em áreas de intensa urbanização. Por isso, já houve quem quisesse definir “sertanejo universitário” como sendo o “caipira que passou no vestibular” ou “o cidadão urbano com origens no sertão”. Nenhum desses conceitos, é claro, corresponde à realidade. De “sertanejo” esse universitário não tem absolutamente nada. Cuida-se, sim, da juventude da cidade que decidiu colocar um chapéu de cowboy e “cair na balada”.
          Do ponto de vista musical, o sertanejo universitário hoje é um gênero musical utilizado comumente para designar a fórmula da “música dançante feita para gente descerebrada”. É o corresponde hodierno, do século XXI, ao que foi a axé music no fim do século XX, mais precisamente na década de 1990: a demonstração cabal de que o físico alemão Albert Einstein estava certo quando afirmou que "Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, quanto ao universo, ainda não estou completamente certo disso."
O nascimento da MIB: a axé music e a década perdida da música brasileira

Capa de um dos álbuns do grupo de axé "É o Tchan". Era preciso mencionar a inclusão de "A dança do bumbum" com destaque, pois nenhuma das demais músicas interessava aos ouvintes.


          Recordando os tristes anos de 1990, a década perdida da música brasileira, o império da axé music na indústria fonográfica nacional proporcionou algumas das mais constrangedoras composições que alguém, supostamente um ser racional, já foi capaz de escrever. Naqueles idos, expressões do quilate de “vai dançando gostoso, balançando a bundinha” tornaram-se símbolos de uma geração destruída pelo assédio constante da lógica hedonista do “prazer carnavalesco ininterrupto, curtição acéfala e exibicionismo de corpos plasticamente esculpidos na academia”. Era o princípio de uma tendência irrefreável, que só se acentuaria ao longo dos anos na música brasileira "para o público jovem": a substituição do cérebro pelas nádegas. Era o começo da MIB: Música Imbecil Brasileira. O acrônimo de uma geração de jovens destruída pela estultice.
          O grau de estupidez a que os ouvidos humanos foram submetidos nessa "idade das trevas" das rádios do País pode ser muito bem representado num dos hits do mais emblemático dos grupos surgidos no período. Refiro-me ao "É o tchan" e a sua antológica "Na Boquinha da Garrafa", sucesso radiofônico absoluto, cujas coreografias foram repetidas incessantemente em programas de auditório dominicais, com suas dançarinas calipígias "engatando" bem-sucedidas carreiras nas capas de revistas masculinas e no mundo das sub-celebrity em geral. Vejamos:
No samba ela gosta do rala, rala
Me trocou pela garrafa
Não agüentou e foi ralar
Vai ralando na boquinha da garrafa
É na boca da garrafa
Vai descendo na boquinha da garrafa
É na boca da garrafa
 
          A letra dispensa comentários e, por si só, revela a mais absoluta falta de respeito próprio, menos de quem compôs e produziu o grupo - um empresário inescrupuloso na tarefa de lucrar na indústria do kitsch -, mais da parte de quem anotou na sua biografia momentos de supremo constrangimento "ralando na boquinha da garrafa". Em verdade, se o leitor me permite interpretar a peça "poética" acima, tenho para mim que, dada a péssima qualidade do compositor que a escreveu, ser "trocado" pela garrafa não é de todo mal. Dependendo da garrafa, pode até mesmo ser um elogio. Pois, enquanto na garrafa há dúvidas quanto ao fato de o recipiente estar vazio, na cabeça de quem escreve (e ouve!) músicas desse tipo já se tem a certeza de que nada resta que não seja a exata medida da infinitude da estupidez humana.
          Quanto ao exibicionismo a que me refiro como caracterizador do período, este se notava na quantidade imensa de pessoas que passaram a trajar abadás multicoloridos qual uniformes denotativos de um suposto status citadino jovem, com os símbolos do “carnaval fora de época”. Havia mesmo uma hierarquia curiosa nas vestimentas: dependendo da cor do abadá, o sujeito era “playboy/patricinha” ou “pobre/povão”, pois já se sabia antecipadamente o preço elevado que se pagava para estar no bloco da "cervejada” ou dos “cliqueteiros”, relegando o setor da "pipoca" para o vulgacho empobrecido. Foi também uma época de criatividade única no desenvolvimento de coreografias para as muitas “danças” que surgiam: do vampiro, da manivela, da tartaruga, do tamanduá, do morcego etc. Quase toda a fauna brasileira foi vilipendiada, digo, homenageada nessas composições.
          Ivete Sangalo merece uma atenção especial. Originalmente vocalista da Banda Eva, seguiu o caminho para o qual todo "artista" de axé está direcionado: a carreira solo. A razão é simples: como os "artistas" são produtos, em geral nada compõem (alguns nem sequer sabem tocar um instrumento!), só interpretando o que compositores profissionais - especialistas na criação de hits do verão e do carnaval - elaboram. Logo, para a axé music, como para os fãs do estilo, o conceito de banda é indiferente. Com músicos contratados, o cantor ou cantora ganha bem mais dinheiro nos shows. Ivete Sangalo soube aproveitar como ninguém a catapulta. Carismática e muito bem assessorada, ela sabia que seu repertório grotesco não a sustentaria mais do que alguns verões fora de Salvador. Assim, tratou de cultivar uma imagem que a projetasse como cantora para além da axé music, que principiava a agonizar nas vendas das gravadoras. Hoje, contando com o apoio de quase toda a mass media brasileira, que a tem por "grande cantora", é empurrada "goela abaixo" do público pela televisão, que lhe dá um espaço imenso nos principais canais abertos, sem contar os sucessivos apelos propagandísticos patrocinados pela indústria cervejeira do País. Mas nem toda a máquina publicitária pode esconder a péssima qualidade do seu repertório, que não resiste a um exame qualitativo mais minucioso. "Carro velho", sucesso comercial na sua voz, revela bem o quão criativa é a leitura de mundo da cantora:
Cheiro de pneu queimado
Carburador furado
Coração dilacerado
Quero meu negão do lado
Cabelo penteado
No meu carro envenenado...
Eu vou, eu vou, então venha
Pois eu sei
Que amar a pé, amor
É lenha...
          Nos anos 2000, no entanto, a axé music entrou em colapso no mercado. Os carnavais fora de época (micaretas) foram aos poucos desaparecendo pela perda crescente de público. Os grupos “clássicos” do período deixaram de existir não por brigas de seus integrantes, mas pela simples falta de shows (talento musical nunca tiveram). O mercado usou e abusou da axé music enquanto era lucrativa. Quando deixou de sê-lo, descartou-a, substituída que foi, nas rádios comerciais, pelo forró universitário e pelo funk carioca (cuja nomenclatura correta é “batidão”). Nem mesmo o movimento da “suingueira”, capitaneado por “pérolas” do nível de “Rebolation”, associado a um amplo apelo midiático que tem por diretriz espicaçar os “sucessos do Carnaval”, conseguiu ressuscitar o declínio inexorável daquele gênero musical moribundo.
Sertanejo universitário: o jovem hedonista do século XXI no Brasil
 
O cantor Luan Santana, um dos principais astros do sertanejo universitário.

          Entretanto, o mercado, no capitalismo, nunca pode parar na sua incessante busca pela rentabilidade. Ele precisa encontrar novos meios de entretenimento que gerem lucros vultosos. A fórmula mais fácil disso é, indiscutivelmente, estimular a imbecilidade da juventude. Sem escrúpulos.
          Os meios de comunicação de massa cumprem, então, o seu papel: associam a ideia de “ser jovem” com a de “ser um imbecil”, aqui entendido como um irresponsável, que não se importa com nada que não seja o próprio prazer, imediato, rápido, fluido, como deve ser a linguagem nos tempos da globalização digital.
          O sertanejo universitário surge nesse contexto. Ele vem ocupar o espaço dos ritmos que se prestam a proporcionar “diversão sem compromisso”, expressão que não quer outra coisa senão mascarar a baixíssima qualidade da música produzida, além de servir como sentença de absolvição da mediocridade humana de quem ouve esse estilo. Entender o estereótipo do sertanejo universitário, dessa maneira, afigura-se como sendo da mais alta relevância para a compreensão da ideia corrente do que é ser um jovem hedonista no século XXI. É o desafio a que me proponho a partir de agora.

O perfil estereotípico do sertanejo universitário: uma breve caracterização

O Camaro amarelo que o sertanejo universitário usa para "pegar" as garotas na balada.

         
Naturalmente, numa empresa dessa envergadura, precisarei recorrer às letras de algumas das composições mais representativas do estilo. Cuida-se de analisar como pensam os grandes artistas do gênero para, ao final, robustecer um juízo estético-sociológico sobre este conceito indecifrável do “sertanejo universitário”.
          Nesse sentido, creio que uma das suas primeiras características é o desapego aos estudos. O sertanejo universitário é um hedonista por excelência. Seu adágio popular dileto, alçado à condição de mote da própria vida, é o clichê: “Pra que estudar se o futuro é a morte?”
          Desse modo, pode ser concebido como um jovem, de péssima formação intelectual e que, a despeito de cursar uma faculdade, não está nem um pouco preocupado com os estudos. Para ele, só existe a balada (o prazer imediato). É o que notamos na composição “Bolo Doido” da dupla “Guilherme e Santiago”:
Ai ai ai sexta feira chegou! quem não guenta bebe leite e quem guenta vem comigo
Na sexta-feira o bar virou uma micareta
Mulherada foi solteira e os meus amigos loucos pra beber
Da faculdade eu fui pra festa tomar todas com a galera
E fiz amor até amanhecer
Toquei direto, fui à praia com as gatinhas na gandaia
Minha galera bota é pra ferver
Segunda de madrugada, travado, cheguei em casa
Sete horas acordei com uma ressaca, tinha prova pra fazer
 
          Mas o sertanejo universitário, para levar uma vida de “baladeiro”, necessita de dinheiro, pois o vil metal tem o condão de, simultaneamente, torná-lo cliente especial da sociedade de consumo e despertar o interesse das garotas mais lindas da balada - verdadeiras empreendedoras no varejo dos relacionamentos humanos. Ele é, assim, um sujeito endinheirado. É o que se observa na composição “Camaro Amarelo” da dupla Munhoz & Mariano:

Quando eu passava por você,
Na minha CG você nem me olhava.
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber,
Mas nem me olhava.
Aí veio a herança do meu "véio",
E resolveu os meus problemas, minha situação.
E do dia pra noite fiquei rico,
"To" na grife, "to" bonito, "to" andando igual patrão.
Agora eu fiquei doce igual caramelo,
To tirando onda de Camaro amarelo.
E agora você diz: vem cá que eu te quero,
Quando eu passo no Camaro amarelo.

         Já sabemos, portanto, que o sertanejo, do tipo universitário, é jovem, de posses, sai da faculdade com seu Camaro amarelo direto para a balada e “bota a galera pra ferver”. É decerto alguém animado. Nem poderia ser diferente. Há quem lhe custeie os estudos. E, ainda que ao final de quatro ou cinco anos saia da faculdade no nível de um analfabeto funcional, seus genitores são suficientemente influentes para arranjar-lhe uma boa posição na iniciativa privada ou mesmo uma "assessoria para assuntos aleatórios" no serviço público.
          O sertanejo universitário é sujeito destemido, porém sensível. Tem o dom da poesia incrustado nas suas veias. Na balada, este santuário da “pegação da mulherada”, sente a verve aflorar com facilidade, produzindo versos riquíssimos, como os que se notam na composição “Ai se eu te pego” do cantor Michel Teló:
Sábado na balada
A galera começou a dançar
E passou a menina mais linda
Tomei coragem e comecei a falar
Nossa, nossa
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego

          De fato, é preciso ser muito perspicaz para rimar “dançar” com “falar”. Sobretudo me impressiona a profundidade dos versos: quando passa a menina mais linda, ele toma coragem e fala. É um movimento controlado, premeditado. O eu lírico “toma coragem” e “parte para a caça” na balada. Inspirado pela beleza da garota, ele se aproxima e a corteja de uma maneira que qualquer mulher, de Carla Perez a Susan Sontag, sentir-se-ia enamorada: “ai se eu te pego”, “ai se eu te pego”, ele repete à exaustão o verso aos ouvidos da “garota mais gostosa”. Mas não se cuida de desespero, senão de técnica de autoajuda que aprendeu nos seus raros momentos de leitura, oportunidade em que veio a saber que “o pensamento é uma força”. Confiante no baixo nível cultural da garota que assedia, ele sabe que, mais cedo ou mais tarde, vai bater a conhecida carência feminina; então, o seu icônico mantra do sertão urbano, onde vivem aqueles que o mais próximo que chegaram de uma fazenda foi assistindo a um reality show na TV, "vai colar" e ele “vai pegar”. E assim você me mata...
          Contudo, talvez a característica mais significativa desta personagem – o sertanejo universitário – seja mesmo a preferência pelo “idioma da velocidade”. Sertanejo que é sertanejo universitário evita a prolixidade; é sucinto, direto, objetivo. Sua linguagem despreza floreios verbais, construções frasais longas, vocábulos de difícil entendimento. Dado o portento de seu talento poético, ele acentua a desnecessidade do vocabulário complexo, adepto que é da lógica do “dizer muito com muito pouco” ou do "falar fácil é que é difícil". Conhecedor profundo da fonologia da gramática da língua portuguesa, ele lança mão do rico alfabeto fonético do idioma românico-galego e, conjugando-o com seu ideal filosófico de concisão e com as técnicas redacionais modernas que enaltecem o “texto enxuto”, passa a compor valorizando a mínima emissão de voz na entonação dos seus versos, economizando em palavras o que pode expressar, em seu entender, perfeitamente com vocábulos monossílabos. É daí que nasce a tendência manifesta das composições do estilo em priorizar a vocalização de uma única sílaba.
          Exemplificativamente, temos “Eu quero tchu, eu quero tcha” de João Lucas e Marcelo:
Eu quero tchu, eu quero tcha
Eu quero tchu tcha tcha tchu tchu tcha
Tchu tcha tcha tchu tchu tcha

          “Eu quero tchu, eu quero tcha” é, sem dúvida, um dos mais formidáveis exemplos de como se pode economizar palavras, de como se pode fundir o dígrafo consonantal “ch” com o “t” e uma vogal (“a” ou “u”) e criar um hit nacional. O significado poético-filosófico do “tchu” e do“tcha” na composição também merece registro: o eu lírico cria um jogo de contrastes, antitético como as leis da dialética, onde o “tchu” só existe para o “tcha”, de modo que não pode haver “tcha” sem “tchu” nem “tchu” sem “tcha”. Daí o porquê de invocar-se as expressões alternadamente, silabando-as na velocidade da luz: tchu tcha tcha tchu tchu tcha.
          Na mesma linha vem a composição “Tchá Tchá Tchá” cantada por Thaeme e Thiago:
Ai que vontade, ai que vontade que me dá
De te colocar no colo e fazer o tchá tchá tchá
Tchá tchá tchá, Tchá tchá tchá
Tchá tchá tchá, Tchá tchá tchá
De beijar na sua boca fazer o tchá tchá tchá
Tchá tchá tchá, Tchá tchá tchá
Tchá tchá tchá, Tchá tchá tchá
De beijar na sua boca fazer o tchá tchá tchá

          Outro exemplo notável do uso de monossílabos é observável em “Lê lê lê” de João Neto e Frederico. Vejamos:
Sou simples,
Mas eu te garanto
Eu sei fazer o Lê Lê Lê
Lê Lê Lê
Lê Lê Lê
Se eu te pegar você vai ver
Lê Lê Lê
Lê Lê Lê

          Mais uma vez temos o eu lírico usando de monossílabos, economizando em palavras, porque riqueza vocabular tornou-se algo desprezível. Sendo possível conotar com um mero “lê”, por que falar mais? O “lê, lê, lê”, no entanto, guarda uma mensagem subliminar perigosa: se tomado isoladamente na segunda pessoa do imperativo afirmativo, pode vir a constituir-se em ordem para leitura. Nada mais distante do que pretende o compositor e a "filosofia de vida" que anima o sertanejo que frequenta a universidade. Logo, é preciso apreender o “lê lê lê” de maneira contextualizada, ou seja, como registro onomatopaico que emula o sentimento de autocompensação libidinosa do eu lírico diante da vergonha que é, numa sociedade de consumo, ter uma condição financeira oprobriosa.
A era da imbecilidade monossilábica: a juventude que sofre de inanição cerebral
 
O cantor Michel Teló, no palco, agita a galera em mais uma "balada universitária".

          A partir das breves linhas expostas acima, penso que o leitor já se encontra habilitado a conceituar este personagem enigmático do cancioneiro nacional: o sertanejo universitário. Trata-se de um modelo hedônico de uma sociedade capitalista hedonista, marcadamente voltado ao consumo, onde ser um “idiota”, um “imbecil completo”, não só não é motivo de desonra - própria e familiar - como se consubstancia num status socialmente tolerado (diria mesmo instigado). É o estereótipo desejável da sociedade globalizada por relações líquidas sob o elo do idioma da velocidade: no falar, no vestir, no relacionar-se, tudo que se refere ao gênero humano passa numa piscadela. Na música, não é diferente. Predomina o sertanejo universitário como o modelo supremo da juventude irresponsável, mediocrizada, de baixíssimo nível cultural. As composições são cunhadas no esteio da pobreza vocabular de quem as escreve, mas também de quem as canta - em ambos os casos denunciando a mais absoluta falta de leitura. É um autêntico movimento circular, no qual aquele que nada tem a oferecer intelectualmente alimenta com sua arte quem já se encontra morrendo de inanição cerebral.
          Por essas razões é que me sinto autorizado a declarar que, depois da hecatombe cerebral que a axé music proporcionou na década de 1990, contribuindo decisivamente na deseducação do povo brasileiro com seus versos de “balançando a bundinha” e “boquinha da garrafa”, o sertanejo universitário, gestado pela indústria fonográfica em crise, desponta como o meio mais fácil de lucrar em cima do desejo hedonístico, cotidianamente instigado pelos meios de comunicação, que impele o jovem a aproveitar a vida a qualquer preço, de qualquer maneira, custe o que custar – incluindo o próprio senso do ridículo daqueles aos quais falta massa encefálica para perceber o quão patético é idolatrar “artistas” incapazes de compor com vocábulos polissílabos. É quando aos olhos de uma garota, na balada, torna-se “bonito” ser um completo idiota. Com o sertanejo universitário, a MIB entrou definitivamente na “era da imbecilidade monossilábica”.
          E agora, meu caro leitor: vai querer o tchu ou vai querer o tcha?

 
 
 
 

 

 
 
 
 

 



9 comentários:

  1. Parabéns pelo seu trabalho.
    Fiquei muito feliz em conhecer sua inteligência e resistência.
    Grato.

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  2. Rafael, adoro suas críticas satíricas e não me acanho em compará-las às do jovem A. Tchékhov. excelente texto! Aliás, não achei no blog os comentários postados no FB sobre a propaganda eleitoral gratuita, que tb estava ótima.

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  3. Amigos, muito obrigado pela visita, prestigiando o trabalho que desenvolvo no blog.
    Esse "feedback" dos leitores é, sem dúvida, a recompensa mais gratificante.

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  4. Parabéns pelo blog, seus textos são incríveis, continue com esse belo trabalho.

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  5. Ouvindo essas músicas...
    Eu to otário...
    tá tá tá
    eu tô otário
    tá tá tá
    cê iscuta
    ficará tamém
    tá tá tá....

    Parabéns, pelo texto e pelo blog!

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  6. E pior do que isso é eles serem a imagem da música brasileira no exterior, isso é o que estão vendendo do Brasil. Vários compositores nunca chegarão a ter metade do sucesso desses sertanejos, pois as gravadoras só aceitam músicas com palavras que não ultrapassem duas sílabas. Então precisam ralar para gravar e tentar divulgar suas músicas, ganhando menos dinheiro e reconhecimento do que esses pseudo músicos fabricados em série.

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    1. Exatamente, Bruna. Concordo contigo. Só a título de exemplo, é sabido que um ingresso para camarote de um show de uma dupla como Guilherme & Santiago, de qualidade altamente duvidosa, pode custar até R$ 1.000. Já concertos de grandes orquestras, apresentações de música instrumental etc. cobram (quando cobram!) valores muito abaixo disso. O fato é que o sertanejo universitário é hoje a música pop brasileira. E o problema não é o fato de ser "pop", pois há artistas que trabalham no gênero com qualidade. O problema é que o sertanejo universitário, tal qual o foram a axé music e o pagode dor-de-corno nos anos 1990, não passa da mais pura picaretagem. É música da pior qualidade, feita por gente sem nenhum compromisso artístico ou estilístico que não seja o lucro. Mais uma vez, agradeço-te por prestigiares o meu blogue MDM. Obrigado! Essa participação dos leitores é-me motivadora!

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  7. Parabêns e muito obrigado por um texto e mais que isso, uma opinião racional, um deleite. Quisera eu ter a paciência e os extintos científicos para investigar mais a fundo e com generosidade compartilhar a minha opinião da forma clara, satírica e com a sua maestria. A ideia do ''ser idiota é normal/legal'', já é bem antiga, concorda ? Voçê, como um ser pensante, tem algum otimismo em relação ao futuro desses jovens, do Brasil, da humanidade ?

    De seu novo leitor assíduo. Daniel Hisamura.

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    1. Daniel, tua opinião é-me motivo de funda lisonja. Não tenho muitos leitores, menos ainda aqueles que posso considerar "assíduos", portanto, é verdadeiramente gratificante saber que todo o empenho despendido em manter ativo este espaço de divulgação das minhas ideias no campo da cultura encontra ressonância no espírito de leitores críticos e argutos espalhados pelo País. Quanto a tua pergunta, consinto com a afirmativa de que a ideia de que ser um idiota é normal/legal é bem antiga. Nada há de novo em portar-se qual um imbecil. Preocupante é esta tendência a generalizar tal padrão de idiotia a um comportamento estereotípico associado à juventude. Nessa toada, devo complementar e dizer que, sim, sou bastante otimista quanto aos jovens do Brasil. Em primeiro lugar, porque acredito que as pessoas podem mudar. Em segundo lugar, porque eu nem estou tão velho assim que me possa considerar um descrente na juventude, sob pena de descrer em mim mesmo enquanto pretenso pensador e observador crítico do cotidiano cultural brasileiro. Na realidade, a ideia desse meu ensaio de crítica musical foi precisamente esta: dar voz aos jovens do Brasil que, diferentemente do estereótipo do sertanejo universitário vendido todos os dias na grande mídia, não se sente representado pelo BAIXO NÍVEL CULTURAL. Obrigado, Daniel, pela visita ao blogue. É formidável saber que meus humildes escritos contam com teu apreço!

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