domingo, 9 de setembro de 2012

O APOCALIPSE ZUMBI É AQUI: a filosofia de Heidegger e a metáfora dos mortos-vivos


Vivendo num mundo de necedade e horror


The unreal is more powerful than the real. Because nothing is as perfect as you can imagine it. Because its only intangible ideas, concepts, beliefs, fantasies that last. Stone crumbles. Wood rots. People, well, they die. But things as fragile as a thought, a dream, a legend, they can go on and on. If you can change the way people think. The way they see themselves. The way they see the world. You can change the way people live their lives. That's the only lasting thing you can create.

Chuck Palahniuk, "Choke".
 
Faz anos que eu não vejo mais do que trinta minutos, por dia, de televisão aberta no Brasil. A programação não me interessa e, ressalvadas raríssimas exceções, nela nada encontro que me possa estimular intelectualmente. Disso decorre o problema de sentir-se um “peixe fora d’água” numa sociedade como a brasileira, cujos cidadãos, em regra, têm um baixíssimo grau de leitura e guiam suas vidas nas raias dos capítulos de uma novela de enredo terrivelmente medíocre. Na verdade, arrisco-me mesmo a dizer que, à medida que cresce a audiência, diminui o interesse pelos livros. E se considerarmos que, de um lado, a população brasileira figura entre os campeões mundiais de “tempo em frente à TV”, e, de outro, que a programação da televisão aberta quase sempre direciona seus esforços ao culto do “lixo televisivo”, o leitor pode facilmente chegar à conclusão das mais sombrias quanto à estatura intelectual da nossa sociedade. 

É nesse cenário caótico em que vivemos. Um mundo de necedade e horror.

 Às vezes me sinto como Rick Grimes, a personagem principal de “The Walking Dead”, da série de histórias em quadrinhos criada por Robert Kirkman: caminhando entre mortos-vivos, mentalmente agonizantes, esforçando-me para não ser tocado por eles, sob pena de ser contagiado com o mesmo vírus putrefaciente – da carne, das vísceras, do coração.

O arquétipo de um zumbi

Zumbi é flagrado rastejando em busca de carne humana.
 
É curioso notar, por sinal, como a figura dos zumbis exerce fascínio sobre as pessoas. Parece mesmo uma tendência reconhecê-los enquanto mitos urbanos – hoje tão difundidos quanto os sempre carismáticos vampiros. A diferença entre uns e outros, no entanto, extrai-se das possibilidades criativas dos arquétipos: enquanto um vampiro pode se apresentar qual um assassino cruel ou um amante romântico, na literatura e no cinema, um zumbi é sempre um zumbi: um pedaço de carne putrefacta, meio-morta, meio-viva, que perambula pelas ruas com seus membros decepados, exalando um odor insuportavelmente fétido, rosnando, ganindo, lutando por comida, como um cão sem dono. O zumbi alimenta-se de carne humana, degustando-se com o sangue quente da vítima recém abatida, mas nunca sacia sua fome: ele come e não sabe o porquê; ignora os seus atos. Ele apenas se põe a caminhar. Procura um alvo, quer matar, mas a morte não é uma missão, porque missões exigem motivos. Um zumbi nunca tem um motivo. Ele sequer está vivo! Sua meia-vida, sua meia-morte restringe-se a isto: rastejar como um verme em busca de mais e mais comida. Numa palavra, um zumbi busca sempre novas vítimas.
Zumbis, no entanto, são seres lentos. Muitos deles, por terem sido mutilados pela ação putredínea do vírus que lhes degenerou a aparência, são até mesmo incapazes de lutar. Sua força, portanto, não é individual. Zumbis são seres coletivos. Vivem (ou morrem) em grupo. Andam juntos, agrupam-se. Sabem que é na quantidade que cresce as chances de devorarem sua vítima. Numa peleja, afinal, alguém há de acertar a mordida.

 Zumbis nunca vivem em cenários floridos. Para eles, o sol nunca brilha. Só a noite é para todos. Portanto, é parte indissociável do enredo um presente tenebroso, um mundo apocalíptico. A sociedade, como a conhecemos, está morta. Dela só restaram uns poucos sobreviventes, os ainda humanos, lutando pela própria sobrevivência, contando balas de espingarda, fugindo a todo custo dos demais não-seres humanos: perigosos, ampla maioria, são sobretudo violentos quando em contato com os ainda humanos; querem transmitir o mesmo vírus que lhes comeu o cérebro, que lhes cassou a consciência. São trapos humanos devoradores da inteligência alheia, frequentando enforcamentos, parlando como aprendizes de verdugos. Não vão parar até que o último dos humanos cujo cérebro não definhou pelo vírus da degenerescência mental tenha sido arrastado pelas multidões acéfalas que arrancam as próprias mãos em respeito aos cadáveres falecidos na terra firme da autoinjúria. 

Entendendo os mortos-vivos como uma metáfora para a vida 




Ilustração de uma sociedade de mortos-vivos: seria a ficção uma realidade?
 

O mito dos zumbis, que acima procurei descrever, e que tanto encanta a fantasia ficcional de escritores e cineastas, não obstante sua larga popularidade, parece-me longe de uma correta compreensão. O entretenimento que os seres em decomposição proporcionam está além do horror ordinário e do mero susto. Zumbis são uma metáfora para a vida.

Quantos de nós não somos zumbis? Quantos de nós estão a perambular pelas ruas, reproduzindo maquinalmente os afazeres diários, sem jamais se questionar quanto às razões que o conduzem? Quantos de nós já estão mortos e não o sabem, só esperando o epitáfio, o ataúde que lhes permitirá o “descanso em paz”? Somos seres pensantes ou rastejamos, ignorantes, pelas valas da leviandade, procurando a próxima vítima a ser devorada pelo sepulcro caiado que não nos permite olhar criticamente para a própria vida?

Olhando para os lados, logo identificamos os zumbis: são os mortos-vivos do local de trabalho, da vizinhança, até da faculdade. São pessoas cuja vida perdeu (ou nunca teve, o que é ainda mais grave) o sentido do existir reflexivo, a força de um propósito autorreferenciado. Vivem aquilo que Heidegger chamava de uma “existência inautêntica”: esquecem-se de que a morte não é um acontecimento, mas um fenômeno a ser compreendido existencialmente, na tarefa que nos cabe de analisar, de maneira ininterrupta, o nosso próprio eu.

O ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se comporta com o seu ser. Como um ente deste ser, a presença se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. O ser é o que neste ente está sempre em jogo. (HEIDEGGER, 2005, p. 77).



Para os zumbis do cotidiano, a questão do sentido do ser nunca se põe: eles apenas vivem, para falar com Walter Benjamin, na era da reprodutibilidade técnica, repercutindo as consequências de um passado cuja apreensão histórica ignoram (às vezes, propositalmente), na tentativa - debalde - de conferir significação ao existir afastado da noção de temporalidade. Numa palavra, o tempo vai passando, como se seguem os capítulos de uma novela patética cujas personagens digladiam-se durante meses até a culminância melodramática do casamento dos protagonistas. Porque ser feliz para um zumbi é ser previsível. E ser previsível é seguir a tradição perdida no tempo de uma sociedade pré-existente ao agente. Uma sociedade de regras formuladas previamente, incapazes de serem questionadas, postas fora do debate.
Reconhece-se um zumbi no colega de trabalho que não estuda, cuja capacidade reflexiva perdeu-se na burocracia dos papéis em que precisa afundar uma existência workaholic, na repetição comezinha da mentira que é ignorar a morte como fator limitante de suas próprias possibilidades – o elemento cuja antevisão poderia ressignificar a própria vida. Também é zumbi o crédulo das fantasias extraplanares, de deuses poderosos, mistificados pela obediência servil e inquestionável a uma tabula rasa conveniente de dogmas terrenos, posto que apresentados num sentido a-histórico. E o que dizer, então, do moralista hipócrita? Eis um tipo persuasivo de morto-vivo que usa dos seus discursos, apegado à tradição, para pregar a intolerância à diferença que lhe incomoda por razões que ele próprio desconhece.  

"The Walking Dead" à luz do pensamento heideggeriano



Capa do volume I da edição brasileira de "The Walking Dead", publicada pela HQM Editora.

O filósofo alemão Martin Heidegger procurou, com sua obra, reposicionar a discussão ontológica na filosofia moderna, garantindo o protagonismo do ser para o qual ser é um existir, mas é também um compreender existencial. Embora jamais tenha cogitado usar da comparação metafórica, Heidegger poderia muito bem descrever a sociedade que via como o mundo do apocalipse zumbi da série de banda desenhada “The Walking Dead”: as pessoas são “jogadas” num mundo em progresso, porém destruído pela incapacidade de pensar: caminham com cérebros à deriva, afogando-se no mar morto da própria história, consumida por afazeres e pela azáfama da cotidianidade. Estão premidos, mas não sabem. Há um senso de urgência na existência que ignoram, pois a morte nunca lhes aparece qual um muro inexcedível contra o qual mesmo o mais altaneiro dos projetos há de bater e degringolar. A morte é um muro ontológico que nunca se rompe no trajeto da vida do ser.

Como em “The Walking Dead”, vivemos numa sociedade de mortos-vivos. Há zumbis espalhados por toda a parte. Mas, diferente dos da ficção, os zumbis do cotidiano são perigosos; eles são reais. E os poucos seres pensantes que restam precisam unir-se e proteger-se: sacar o revólver do coldre, aprender a atirar para se defender. O vírus putredinoso é de contágio intenso e febril: vem numa mordida, mas vem também do barulho que a todo o momento acorda mais um zumbi desfalecido, recém transformado no monstro devorador do seu passado humano. Logo o som atrairá uma multidão de outros iguais a ele, prontos para censurar o diferente, para atacar aquele cuja carne, cérebro e coração não apodreceram.   
O apocalipse zumbi, definitivamente, já começou.
REFERÊNCIAS
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte I. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005. 325 p.

3 comentários:

  1. Excelente texto, Rafael Theodor Teodoro! Achei muito interessante a sua interpretação do arquétipo do zumbi. A fantasia do Zumbi é a própria representação da moderna "vontade de superar a morte", fundamentada numa perspectiva "infinita" do tempo, mais o "vazio" de sentido, "acontecido" com o abandono dos entes pelo Ser, isto é, pela perda dos valores, princípios e metas supremos. Como diz Heidegger no seu texto sobre Nietzsche, entretanto, o niilismo não quer dizer "vazio" absoluto. O niilismo é a tomada do próprio ente como fundamento, quer dizer, como "valor". A vontade regida por princípios, agora, só tem um princípio-guia: a própria vontade. Mais vontade. Mais vontade do próprio ente. Há um “mais si mesmo", "eu mesmo", "vontade de vontade". Assim, um Zumbi é um ente "moderno" que deseja uma "infinitude" (se pretensamente cristão, com o seu desejo de uma vida pós-morte pela salvação, e, se "moderno" em sentido mais estrito, com o seu desejo pela "eternidade" proporcionada pela Razão "universal e necessária"). Porém, este Zumbi, ainda que desejante de "infinitude", devido ao "acontecimento apropriativo" do niilismo, sua única chance é de "existir" é inautenticamente. É vagar por aí. Andar sem propósito algum, tendo a sua carne putrefada como um ente desejante de mais carne: de "mais si mesmo". E este quadro pode ser visto em nossa sociedade depois que o consumismo do pós-II Guerra fez com as pessoas neste estado. Este consumismo é o mesmo que deixa muitas pessoas como Zumbis pelos shoppings, vagando por lá com muita “sede e fome” do que elas não necessitam, mas que, ao mesmo tempo, necessitam...Ao menos para subsistirem como qualquer outro ente que não possui uma "presença" no mundo. Elas necessitam dos produtos da indústria. São, em verdade, coisas que desejam coisas. Estas pessoas reduzem a sua presença no mundo, vivendo como os entes- ao- alcance-da-mão (vorhandenheit): como entes que não existem, mas que subsistentes, como coisas, simplesmente, prontas para serem utilizadas...

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  2. Excelente texto, Rafael Theodor Teodoro! Achei muito interessante a sua interpretação do arquétipo do zumbi. A fantasia do Zumbi é a própria representação da moderna "vontade de superar a morte", fundamentada numa perspectiva "infinita" do tempo, mais o "vazio" de sentido, "acontecido" com o abandono dos entes pelo Ser, isto é, pela perda dos valores, princípios e metas supremos. Como diz Heidegger no seu texto sobre Nietzsche, entretanto, o niilismo não quer dizer "vazio" absoluto. O niilismo é a tomada do próprio ente como fundamento, quer dizer, como "valor". A vontade regida por princípios, agora, só tem um princípio-guia: a própria vontade. Mais vontade. Mais vontade do próprio ente. Há um “mais si mesmo", "eu mesmo", "vontade de vontade". Assim, um Zumbi é um ente (pós)"moderno" que deseja uma "infinitude" (assim como os cristãos desejavam com a crença na vida pós-morte, ou como os modernos revolucionários desejavam com a crença na Razão "universal e necessária"), mas que, apesar deste desejo de "continuidade", devido ao "acontecimento apropriativo" do niilismo, sua única chance de "existir" é inautenticamente, uma vez que os "valores supremos" do cristianismo e as "promessas" da modernidade esvaziaram-se. Com o niilismo, só resta para aquele que era cristão/moderno ficar vagando vagando por aí. Andar sem propósito algum, tendo a sua carne putrefada como um ente desejante de mais carne: de "mais si mesmo". E este quadro pode ser visto em nossa sociedade depois que o consumismo do pós-II Guerra transformou o comportamento das pessoas. Este consumismo é o mesmo que deixa muitas pessoas como Zumbis pelos shoppings, vagando por lá com muita “sede e fome” do que elas não necessitam, mas que, ao mesmo tempo, "necessitam"...Ao menos para subsistirem como qualquer outro ente que não possui uma "presença" no mundo. Elas necessitam dos produtos da indústria. Estas pessoas são, em verdade, "coisas" que desejam coisas. Estas pessoas reduzem a sua presença no mundo, vivendo como os entes- ao- alcance-da-mão (vorhandenheit): como entes que não existem, mas que subsistentem, como "coisas" simplesmente prontas para serem utilizadas...

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  3. Caro Ricardo Evandro, tua análise deixou-me verdadeiramente impressionado. Não só compreendeste o sentido do artigo como até mesmo expandiste o raciocínio, elevando-o a um novo patamar de análise do Ser, algo que só mesmo um conhecedor perspicaz do pensamento filosófico-ontológico de Martin Heidegger poderia fazer. Parabéns.

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