Minha viagem de volta: bordejando o cais de uma vida feliz
A maior vantagem de se ter nascido numa família de migrantes (entenda-se: pessoas que migraram de um Estado para outro do País) é a liberdade que se tem, amiúde, em aproveitar o tempo de maneira aprazível ao teu estilo. Vivesse numa família típica, em um domingo ensolarado como o que faz hoje, e quiçá fosse forçado a reunir-me com uma parentela, sentado à borda da piscina, emulando a convivência familial. Já aí surgiriam dois problemas: o primeiro consiste na minha descrença nas
reuniões de famílias, haja vista laços de sangue não aproximarem
necessariamente o espírito; o segundo parte das minhas idiossincrasias, em
razão de as minhas preferências culturais "excêntricas" raramente terem permitido, ao longo da vida,
que eu tivesse capacidade de dialogar com alguém sem experimentar momentos de
vergonha alheia.
Quando
me afirmo “excêntrico“, faço-o em homenagem mais à opinião de terceiros do que
à conclusão personalíssima que, acaso, estivesse a alcançar por livre e
espontânea perscrutação. Desde a universidade, carrego o estigma da
excentricidade. Primeiro por gostar de rock numa cidade em que quase ninguém
aprecia o estilo; segundo por ter optado em estudar música erudita num
instrumento tão vulgarizado quanto mal tocado (o violão); terceiro, por sempre
ter considerado as pessoas bem mais interessantes pelo que têm a partilhar em
termos conteudísticos do que pela fineza da passamanaria que vestem.
O que me
encanta, ao fim e ao cabo, é a excelsitude; e excelsitude, para mim, é conhecimento, é inteligência.
Creio,
todavia, que a minha tão propalada excentricidade deve-se menos às minhas
predileções do que à geografia que me circunda. Noutros lugares, pelos quais já
passei em viagens, posto que não completamente à vontade, consolou-me o fato de
encontrar outros com gostos semelhantes aos meus. Ao menos outrem ninguém se
houve comigo a acusar-me de estrangeirado. Foram lugares nos quais, pela
primeira vez, não me senti enfermiço; quando foi possível bordejar o cais de
uma vida feliz.
Desde
então, tenho preparado, silencioso, o meu retorno. Há um barco, que hei de
navegar, remando numa viagem de (e sem) volta. Definitivamente, não me aclimei
ao calor. Sinto muita falta dos longos dias frios...
A melhor das famílias
Como
as circunstâncias da minha biografia, sob o influxo da diáspora teodoriana,
levaram-me a uma existência afastada do convívio familiar latino-americano
típico, logo aprendi a ter uma nova família. Uma família que substituísse (e superasse) o conforto psicológico que os parentes distantes nunca haveriam de trazer-me. Optei pela melhor delas, então: a
Literatura.
Olho para os lados e nunca me sinto sozinho: vejo as traduções de
Bárbara Heliodora para o teatro completo de Shakespeare; os olhos aziagos de “Os
Demônios”, de Fiódor Dostoiévski, a espreitar-me; também as “Recordações do
escrivão Isaías Caminha”, de Lima Barreto, estão ao meu lado a recordar-me do
Brasil paralelamente à fronte imponente de Machado de Assis que estampa a caixa
com a edição completa de sua obra.
Pensando
nesses termos, recordo o que já alhures se disse com sabedoria: “Quem lê nunca
está só”. E acredito, piíssimo, nesse asserto.
Ouso,
no entanto, apontar sua manifesta incompletude. Falta-lhe um pedaço da sapiência
com que se o edificou. Acuso: não só quem lê nunca está só, mas também quem
ouve. A música é um bálsamo que não descura o seu ouvinte. E também a ela
recorro em dias nos quais, meditabundo, opto pela solidão.
Optar
pela solidão num domingo de sol é gesto de misantropia rebelde que só se
justifica se a música for da mais alta estirpe. E é assim que me sinto, com o
coração livre de todo o peso na consciência, ao ouvir Silfra (2012), de Hilary
Hahn e Hauschka.
O
álbum chegou faz pouco tempo para mim. Importei-o da Alemanha, país no qual foi
gravado e lançado pelo respeitadíssimo selo “Deutsche Grammophon" ainda no mês de maio do corrente ano. Como se nota, demorou quase dois meses para vir às minhas mãos - além, é claro, de ter-me custado valor exorbitante por se cuidar de "produto importado".
Antes
que o leitor me condene, é evidente que eu não poderia comprar um álbum desses
nas lojas da cidade. Nenhum comerciante ajuizado o importaria (ele não
venderia). Aliás, creio mesmo que, à exceção de São Paulo, fosse qualquer outra
cidade do Brasil e eu teria sérias dificuldades em adquiri-lo. Não somente pelo
fato de tratar-se de um álbum de música erudita, a afastar por si só quaisquer
pretensões de vendagens significantes na indústria fonográfica, mas sobremodo
pela direção experimental das composições.
O duo "post-classical" de violino e piano
Após
dois anos de colaboração musical entre a violinista estadunidense Hilary Hahn e o pianista
alemão Volker Bertelmann (Hauschka), entre improvisos e experimentações, eis que esses
dois grandes artistas presenteiam o mundo com Silfra (2012).
O nome do
álbum já revela a direção musical pretendida pelo duo: Silfra é uma fenda (ou
fissura) localizada no lago Þingvallavatn, que fica no sul da Islândia.
Trata-se de um lugar muito procurado por mergulhadores praticantes do chamado “scuba
diving” – uma espécie de mergulho de longo período com cilindro. Mas é também
lugar de beleza natural paradisíaca, cuja paisagem pitoresca - especialmente
acentuada pela limpidez das águas, de um azul profundo, que trespassam a fissura
no lago - remete à direção musical pretendida pelas composições: o campo
harmônico é trabalhado de maneira a evocar sentimentos como o de alguém que se
pusesse a respirar após longo período sob as águas. É como um sopro de ar no
pulmão de um mergulhador solitário; ele desce ao fundo da fenda para
encontra-se, sozinho, e descobrir-se, ao tornar à superfície, novamente (sozinho) no
mundo.
De
fato, é verdadeiramente surpreendente o trabalho harmônico que Hahn e Hauschka
atingiram nesse álbum. As composições seguem um formato atípico para os padrões
tradicionais de duo violino-piano a que o ouvinte de música erudita habituou-se
a ouvir.
A
primeira faixa (“Stillness”) funciona como que o prelúdio da direção musical do
álbum, pondo-se a anunciar, pelo violino, o desvanecimento de um duo clássico nos moldes tradicionais. “Bounce
Bounce” surge em seguida, então, e já revela todo o experimentalismo de timbres
no violino de Hahn acompanhado pelo baixo bem demarcado do piano de Hauschka.
“Clock
Winder” marca a batida do relógio em pouco mais de dois minutos, seguindo-se “Adash”,
faixa em que se nota o compasso acelerar novamente.
Mas
é em “Godot”, quinta faixa do álbum, que o duo atinge o auge da criatividade. Numa composição de mais de
doze minutos, o ouvinte pode fechar os olhos e imergir no fundo das águas cristalinas
do lago islandês. A sensação que se tem ao ouvir “Godot” é a de um mergulho profundo
em si mesmo, nadando em direção ao fundo da alma em busca de respostas, cujas
perguntas se desconhecesse, mas que ainda assim é preciso nadar e nadar e
nadar atrás delas. Ou nada ou afoga-se. “Godot” desfaz o predicado de uma vida afogueada, lançando-nos o desafio
– por certo ominoso aos olhares humanos estultos – de viver a vida com vagueza,
deslizando pelas profundezas de infindos mares sossegados.
E
é assim que o piano reaparece, com destaque, executando uma melodia tranquila,
em “Krakow”. Na faixa seguinte, “North Atlantic”, temos a continuidade do
sossego dos que mergulham na fenda do maior dos lagos naturais da Islândia, só interrompido
pelo acento dado ao violino novamente em “Draw a Map”.
Em
“Ashes” há uma melodia triste a contrastar fortemente com “Sink” – a décima
faixa do álbum. Em “Halo of Honey” o improviso torna a mergulhar em águas
calmas, preparando a evocação final da hipnose solitária encontrável em “Rift” –
a derradeira e misteriosa faixa do álbum.
Silfra é, enfim, um álbum de música erudita diferente.
Não serei hipócrita perante os poucos leitores deste blog em afirmar que o
comprei de maneira consciente. Não. Admito que não conhecia o trabalho do
pianista alemão Hauschka, embora este tenha considerável discografia já lançada
no mercado. Comprei Silfra por
admirar a virtuose Hilary Hahn, violinista estadunidense que há tempos me
encanta desde o seu álbum de estreia, “Hilary Hahn plays Bach”, de 1997. Hahn é
daquelas mulheres únicas que, aliando elegância, sensibilidade e talento musical (verdadeiro),
tornam-se irresistivelmente atraentes (nunca escondi minha paixão platônica por ela). Não é sem razão que, contando pouco mais
de trinta anos, já goza do respeito da rigorosíssima crítica musical erudita.
Se
o leitor deste blog puder, eu recomendaria adquirir Silfra. Mas advirto: não é um álbum “fácil” de se ouvir - como o
são, por exemplo, aqueles que contêm peças da obra musical de cânones como Bach
ou Mozart. É álbum de difícil oitiva, só apreciável por iniciados na música
erudita, gente que há tempos já cultiva o hábito adorável de amar esse
estilo.
A
ressalva supra não é sem razão. Não
quero sentir-me culpado na hipótese de o leitor vir a adquirir Silfra e surpreender-se negativamente.
Como eu disse no início deste texto, sou um excêntrico. E Hahn e Hauschka
formam um duo de pura excentricidade musical. Nada menos que excelente.
Existem rótulos para tudo,até acho normal, o ser humano usa essa estratégio para facilitar a vida, mas pra mim você não é excentrico, talvez incomum, mas não me sinto diferente de você, pois também tenho gostos bem particulares para música, literatura, artes e em tudo o que falo e penso, e sei como as vezes é ruim ir contra a corrente, mas deixo aqui um comentario positivo sobre a música que adorei mesmo, sempre é bom conhecer artistas novos, sou fã de rock progressivo, jazz e música erudita! então nao consigo trocar experiencias com ninguem! e entao adoro este blog! =]
ResponderExcluirCaro leitor anônimo, fico muito feliz com teu comentário. De fato, nadar contra a corrente é sempre uma decisão difícil. Há o estigma, mas há também a dolorosa sensação de só se sentir feliz sozinho, porquanto teus gostos de coração sincero, como bem ponderaste, não te permitam trocar experiências com ninguém. Por isso a maior das recompensas que recebo toda vez que algum leitor escreve um "feedback" no blog, dando conta de que gostou de um ou outro texto publicado aqui, é saber que o MDM, mais do que um exercício voluntário de escrita, é principalmente uma excelente forma de fazer amigos (os que não encontramos com facilidade!) espalhados invisivelmente pela blogosfera. Fico muito feliz que tenhas gostado de Silfra. RT
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