quarta-feira, 23 de maio de 2012

SOLILÓQUIOS DE UM VISIONÁRIO OU O CORAÇÃO INDOMÁVEL DO POETA DO HEDIONDO?: o paradoxo da coragem e da esperança na poesia pessimista supersensível de Augusto dos Anjos


O herdeiro brasileiro da poesia do horror



Oh! trabalho sagrado e magnífico dos poetas.
Tu arrancas todas as coisas ao destino, tu dás
imortalidade aos povos mortais.
Lucano 

         
          Edgar Allan Poe (1809-1849) foi um escritor estadunidense cuja obra literária grandiosa fê-lo espraiar-se pelos mais diversos continentes. Congruente nos seus ataques à literatura vitoriana, teorizou sobre a arte, propugnando pelo fim do moralismo das "verdades" na literatura. Para ele, como anota José Paulo Paes, "verdade e beleza eram coisas distintas, e não deviam ser misturadas, sob pena de abastardamento."

          Poe fez da provocação de sentimentos atemorizantes o segredo maior do seu ofício. Era um literato visionário;  adivinhava as sensações febris de um novo tempo que ele, antes do que qualquer outro, via na aflição, na solidão, no redemunho das areias pesadas do convencionalismo estético do rigor, na generatriz daquilo que parte da crítica denominou de "literatura da decadência" - expressão que, como apontava Baudelaire, afigurava-se qual um repositório de "Palavras sem sentido que frequentemente ou­vimos cair, com o som enfático de um bocejo, da boca daquelas esfinges sem segredo que velam às santas portas da Estética clássica." 

          Edgar Allan Poe, no entanto, como artista genial que era, houve-se com bravura também na poesia. É famoso, por exemplo, o seu poema "O Corvo", cujos versos revelam a face do poeta da imagética do soturno, do gótico, daquele a quem é dado sonhar os sonhos amendrontadoramente que ninguém mais ousou sonhar - numa palavra, o mestre do mistério na literatura.

Sondei a noite erma e tranquila, olhei-a fundo, a perquiri-la,
Sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.
Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror enxuto e quedo,
só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”
E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”
              Depois, o silêncio e nada mais.

          Essa maneira de pensar a literatura e, em particular, a poesia, atacando moralismos ante a evocação de emoções que flertam com a angústia e com a solidão, tem na obra de Augusto do Anjos (1884-1914) uma das mais significativas contribuições brasileiras ao arcabouço literário da "poesia de horror". Por "horror" na poesia, refiro-me à capacidade do artista de laborar com sentimentos funestos, fundado em imagens que vão do desespero ao medo, da desesperança ao mundo atormentado do poeta confrontando a perfídia de uma existência desgraçada.


O olhar enviesado do poeta solitário mais morto do que vivo

           Nascido na Paraíba, Augusto dos Anjos colocou seu nome na história da literatura brasileira como o poeta crítico das agruras da existência humana. É fato que muitos outros artistas também usaram do verso para expressar um tom criticante da realidade nacional (Castro Alves, por exemplo). Mas o que torna a obra de Augusto dos Anjos tão relevante é a maneira peculiar com que se manifesta sua genialidade. Nos seus poemas, encontramo-nos constantemente diante de um artista que não teme adentrar o abjeto, o vil, o ignóbil do humano. 

          No poema "O Lázaro da Pátria", temos uma boa demonstração de como Dos Anjos, buscando dar a exata dimensão do "sujo", do "corroído", do "feio" no homem, vale-se de remissões a doenças (úlcera, antraz, elefantíase).

                                     O LÁZARO DA PÁTRIA
                                                         
Filho podre de antigos Goitacases,
Em qualquer parte onde a cabeça ponha,
Deixa circunsferências de peçonha,
Marcas oriundas de úlceras e antrazes.

Todos os cinocéfalos vorazes
Cheiram seu corpo. À noite, quando sonha,
Sente no tórax a pressão medonha
Do bruto embate férreo das tenazes

Mostra aos montes e aos rígidos rochedos
A hedionda elefantíase dos dedos...
Há um cansaço no Cosmos... Anoitece.

Riem as meretrizes no Cassino,
E o Lázaro caminha em seu destino
Para um fim que ele mesmo desconhece!

           Com isso, quer o poeta denotar a fragilidade do corpo, capaz de propiciar dores torturantes ("Sente no tóraz a pressão medonha/Do bruto embate férreo das tenazes"). Também a indiferença dos que se divertem diante do padecimento alheio é recordada ("Riem as meretrizes no Cassino").

          Considerando o tom sempre angustioso de seus versos, construídos com o recurso ao uso de uma linguagem que muita vez se reporta à morte e às suas circunstâncias em temas lutosos, parte da crítica afirma que ele produzia a chamada "poesia de necrotério". No seu "Apóstrofe à carne", essa tendência poética para o funesto fica bem delineada ("necrófago", "mortalha", "o fim da orgânica batalha", "podridão", "herança horrenda").

                                       APÓSTROFE À CARNE

Quando eu pego nas carnes do meu rosto
Pressinto o fim da orgânica batalha:
- Olhos que o húmus necrófago estraçalha,
Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...

E o Homem - negro e heteróclito composto
Onde a alva flama psíquica trabalha.
Desagrega-se e deixa na mortalha
O tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

Carne, feixe de mônadas bastardas.
Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas,
A dardejar relampejantes brilhos.

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda,
Em tua podridão a herança horrenda 
Que eu tenho de deixar para os meus filhos!


          Outra característica de seus poemas - comumente apontada pela crítica literária como sendo das mais marcantes em sua obra - é a visão pessimista da vida. Augusto dos Anjos tem um pendor indisfarçável para a descrença em tudo e todos. Trata-se de uma disposição de espírito que leva o poeta a esperar sempre o pior e que foi perenizada genialmente naquele que considero um dos mais belos poemas já escritos em língua portuguesa: "Versos Íntimos".

                                       VERSOS ÍNTIMOS

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mao que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

          Conquanto não tão incensada pela crítica literária, também podemos encontrar na poética pessimista de Dos Anjos características como o uso da linguagem científica, a exemplo do que ocorre em "Poema Negro" ("É o caos da avita víscera avarenta/- Mucosa nojentíssima de pus,/A nutrir diariamente os fetos nus/ Pelas vilosidades da placenta? (...) - Zooplasma pequeníssimo e plebeu (...)"), bem como da linguagem filosófica, mediante o questionamento metafísico a que se submete o poeta açambarcado por uma existência agônica.

                                    AGONIA DE UM FILÓSOFO
                            
Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...
O Inconsciente me assombra e eu nele rolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!

Assisto agora à morte de um inseto!...
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo
O ideal de Anaximandro de Mileto!

No hierárquico aerópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!...

Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

          Augusto dos Anjos é, portanto, um poeta que caminha corajosamente pelo terreno perigoso da supersensibilidade, arrostando fantasmas, homiziando-se em túmulos, trajando mortalhas, qual um morto e vivo andarilho solitário  - um artista a usar da palavra para evocar lindamente as sensações da maior repugnância.    

A voz que vem do túmulo também traz a esperança

 
          Todos os característicos supracitados revelam a morte como tema permanente da poesia de Augustos dos Anjos. É da ideia de morte que decorre o emprego em sua poesia das imagens de vermes, defuntos, tumbas, caixões, amoníaco. Ademais, ao fletar com a "poesia filosófica" de índole metafísica, Dos Anjos se propunha a desvendar os labirintos do mistério da morte - na visão artística do poeta, sempre carregada pela desgraça, pela dor, pelo sofrimento. Disso decorre o seu monólogo metafísico-poético, bem exemplificado no poema abaixo: 

                                SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões. visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de Hidrogenio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais...

Subi talvez ás máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que ainda eu suba mais!

          É natural o leitor de sua obra supor, então, que o ato de morrer, a desventura, o infausto, a ruína, matizados pelo pessimismo, dão a tônica da estética de sua poesia supersensível. Não se trata de conclusão equivocada, registro. Mas decerto se poderia acusá-la de incompleta. 

          Explico o porquê.

          Quando perscrutamos a parca obra de Augusto dos Anjos, logo deparamos com o seu conhecido soneto "Psicologia de um vencido". Reproduzo-o:

                                 PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
                           
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgância da terra!

          Nesse soneto, que também reputo dos mais belos que o gênio artístico do poeta produziu, estão presentes as marcas indeléveis de sua ars poetica, a saber: o pessimismo ("Sofro, desde a epigênese da infância,/A influência má dos signos do zodíaco" [...] "Profundissimamente hipocondríaco [...]"), o culto ao horrendo e ao terrificante ("Eu, filho do carbono e do amoníaco,/Monstro de escuridão e rutilância" [...]), a lembrança das doenças que fragilizam o corpo do homem, infligindo-lhe dor ("Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia/ Que se escapa da boca de um cardíaco"), a linguagem dotada de palavras que evocam uma putredinosidade nada subtil ("verme", "sangue podre das carnificinas").
 
          Entretanto, a "psicologia do vencido" não exaure definitivamente o norte poético do poeta brasileiro. Investigando-o, é possível descobrir um lado pouco conhecido de sua obra. Um lado, digamos, da psicologia do "vencedor" em oposição diametral a do "vencido". Um lado esperançoso. Ei-lo escancaradamente no soneto "Esperança":

                                            ESPERANÇA

A Esperança não murcha, ela não cansa,
Também como ela não sucumbe a Crença.
Vão-se sonhos nas asas da Descrença,
Voltam-se sonhos nas asas da Esperança.

Muita gente infeliz assim não pensa;
No entanto o mundo é uma ilusão completa,
E não é a Esperança por sentença
Este laço que ao mundo nos manieta?

Mocidade, portanto, ergue o teu grito,
Sirva-te a Crença de fanal bendito,
Salve-te a glória no futuro - avança!

E eu, que vivo atrelado ao desalento,
Também espero o fim do meu tormento,
Na voz da Morte a me bradar; descansa!

          Augusto dos Anjos revela-se, assim, não somente um poeta pessimista, como em geral todos tendem a pensar. Ombreando-se com outros grandes nomes da poesia, que fugiram às próprias limitações de seus temas, o soneto "Esperança" é ilustrativo de que o poeta brasileiro também guardava em seu coração sentimentos, por assim dizer, "positivos", isto é, que instigavam a luta pelos sonhos "nas asas da Esperança" - esta glória do futuro que não murcha, não cansa. É claro que um verso em que se lê que "o mundo é uma ilusão completa" denota um certo grau de desânimo - o próprio poeta o confirma ao escrever, no décimo segundo verso,  "vivo atrelado ao desalento." Mas nem por isso deixa de exortar a juventude a reconhecer na Crença o farol que lhe guiará pelas sendas da vida (este "fanal bendito") em direção à glória do futuro. Avança!  

O coração indomável do poeta do hediondo: ode à coragem 

           Além do elogio à esperança, outra constatação que surpreende o leitor, dada a maneira com que sobrepuja aquilo que denomino de "psicologia do vencido", isto é, o conjunto de características comumente associadas à poesia de Augusto dos Anjos, dá-se por meio do belíssimo soneto "Vencedor". Ei-lo:

                                              VENCEDOR
Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração - estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e de qual mais presto assoma
Nenhum pôde domar o prisioneiro?

Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem... 
E não pôde domá-lo enfim ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
 
          Nos versos de "Vencedor", vemos, em toda sua inteireza, um Augustos dos Anjos engajado na defesa de sua própria arte. É como se fosse um brado, mercê do qual o poeta põe-se, destemido, na presença dos seus inimigos, desafiando-os a uma peleja. Aqui sobra coragem  ao artista a que se costuma vincular a ideia de desilusão e desencantamento. 

          O título do soneto é demasiado coerente com o destemor do eu lírico: prisioneiro que não se prende, corajoso guerreiro a enfrentar os mais poderosos gladiadores; um coração triunfante, mas não em qualquer lugar, senão nas arenas, por meio dos combates, com espadas, adagas, gládios de aço; uma coragem tal que nem atletas, tampouco domadores, nem mesmo cem contendores seria capaz de debelar. Nesse soneto, Augusto dos Anjos mostra-se qual um poeta de espírito altanado, que se faz presente na batalha contra os que tentam sepultar seu talento poético. Talento que se não pode sepultar porque "ninguém doma um coração de poeta!"  

Furta-cores da "psicologia do vencedor" contra a "psicologia do vencido": o obituário da finalidade do poeta do hediondo

          Na obra de Augusto dos Anjos, portanto, à sua conhecida "psicologia do vencido" opõe-se uma "psicologia do vencedor". É patente que se cuida de faceta minoritária de sua curtíssima produção poética, abreviada pela doença pneumônica que o vitimou. Mas nem por isso menos importante.   

          Nesse sentido, não surpreende o tom polemista com que se apresenta a crítica literária ao tentar enquadrá-lo numa das "escolas" da literatura: seria ele um simbolista como Cruz e Sousa? Seria ele um parnasiano como Olavo Bilac? Ou, dada a maneira com que sua linguagem cientificista mórbida rompia com os convencionalismos estéticos do passado, estaria mais apropriadamente situado ao lado dos literatos pré-modernistas cujas obras desenvolveram-se naquele interregno transicional da história da literatura brasileira que se deu entre a publicação de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, e "Canaã", de Graça Aranha - ambos em 1902 -, e que se estendeu até a Semana de Arte Moderna de 1922, marco inaugural do modernismo no Brasil? 
 
          Independentemente da classificação que os teóricos da literatura lhe possam dar, Augusto dos Anjos apresenta pelo menos uma característica pré-moderna, qual seja, a denúncia da realidade. Mas a denúncia que o poeta faz não é de cunho sociológico, aproximando-o a regionalismos ou ao cultivo de personagens ligadas ao campônio brasileiro. Na poesia de Dos Anjos a denúncia da realidade toma a forma de denúncia da realidade da existência humana, colorindo-a com um tom negro-amargurado, a cor, ao que tudo indica, favorita do eu lírico adoentado e escarninho de "Poema Negro": 
                                               
               POEMA NEGRO

Para iludir minha desgraça, estudo.
Intimamente sei que não me iludo.
Para onde vou (o mundo inteiro o nota)
Nos meus olhares fúnebres, carrego
A indiferença estúpida de um cego
E o ar indolente de um chinês idiota!
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
E muita vez, á meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
É a Morte - esta carnívora assanhada -
Serpente má de língua envenenada
Que tudo que acha no caminho, come...
- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajes pretos e amarelos.
Levanta contra mim grandes cutelos
E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilinio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
Tu me açoitaste vinte e duas vezes,
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Semeadora terrível de defuntos,
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. É Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre
No Vaticano, em grupos prosternados,
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte
Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha Idéia
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!

Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos.
Desperto. E tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre
O termômetro negue minha febre,
Torne-se gelo o sangue que me abrasa
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos

          Já não bastasse profanar a religião nos pesadelos experimentados pelo eu lírico de "Poema Negro", Augusto dos Anjos, no seu soneto "Poeta do Hediondo", dá amostras de que tinha exata consciência do papel que desejava ocupar no panteão da literatura: o poeta que cantava a "poesia dos mortos".
 
                                   O POETA DO HEDIONDO
                                                     
Sofro aceleradíssimas pancadas
No coração. Ataca-me a existência
A mortificadora coalescência
Das desgraças humanas congregadas!
Em alucinatórias cavalgadas,
Eu sinto, então, sondando-me a consciência
A ultra-inquisitorial clarividência
De todas as neuronas acordadas!

Quanto me dói no cérebro esta sonda!
Ah Certamente eu sou a mais hedionda
Generalização do Desconforto...

Eu sou aquele que ficou sozinho
Cantando sobre os ossos do caminho
A poesia de tudo quanto é morto!
          Todas essas minhas anotações sobre a poesia de Augusto dos Anjos convergem para a ideia de que sua produção literária é dotada daquilo que chamo de "furta-cores" poético. Há como que uma cor cambiante na obra do poeta, que não está adstrita ao negrume que, com demasiado constância, atribui-se-lhe. Tomada nessa perspectiva, a cor negra da "poesia de necrotério" surpreende ao cambiar para um tom "branco" pela beleza de versos corajosos e esperançosos, como aqueles que analisei, respectivamente, nos sonetos "Vencedor" e "Esperança". Não se pode rotular Augusto dos Anjos, tal como de costume se faz, como o poeta pré-moderno do obscuro, do pessimismo, da "psicologia de um vencido", sem considerar que esse mesmo autor pôde produzir textos contraditórios ao direcionamento artístico do conjunto de sua obra literária - naquilo que denomino como sendo sua "psicologia do vencedor".      
 
          Desse modo, Augusto dos Anjos é um poeta brasileiro trágico, que tem particular facilidade em observar e versificar a hediondez da natureza humana. Mas não se resume a isto, havendo aspectos em sua obra poética surpreendentes, como quando o poeta canta sua ode à coragem na luta contra os guerreiros de espadas rutilantes que tentam domar seu coração ("Vencedor") ou enaltece a missão gloriosa da mocidade, ao erguer seu grito em prol do laço a que nos encontramos manietados ao mundo ("A Esperança").        
 
          O que me importa em Augusto dos Anjos é precisamente isto: notar como um artista tão terrivelmente pessimista foi capaz de produzir versos paradoxalmente brandos, de incentivo à esperança e à coragem de amar a palavra e dela fazer seu ofício na arena de gladiadores da vida tão infensa à poesia. 
 
          O autor de "Versos Íntimos" é, assim, mais do que um cultor da morbidade da "literatura da decadência" - rótulo com que acusavam Poe, na crítica à crítica de Baudelaire que introduziu este ensaio. É mais do que o apologista do horrendo, da fealdade, o "louco" soliloquista visionário da literatura brasileira pré-moderna. Augusto dos Anjos é um autêntico "tanatólogo da poesia"; uma poesia de "poemas negros" mas cuja escuridade da psicologia de um vencido tem também os seus furta-cores de um vencedor. Em grande medida, isso se deve ao filósofo que habitava em Augusto dos Anjos, na agonia que lhe dava desvendar o "metafísico Mistério", na sua languidez existencial infeliz condenada a digerir "manjares funéreos".
 
           No fim, independentemente do pensamento da crítica literária, talvez a melhor das definições já dadas à obra poética de Augusto dos Anjos tenha sido cunhada por ele mesmo ao anunciar, num soneto, a sua "finalidade".
 
                                         MINHA FINALIDADE
 
Turbilhão teleológico incoercível,
Que força alguma inibitória acalma,
Levou-me o crânio e pôs-lhe dentro a palma
Dos que amam apreender o Inapreensível!

Predeterminação imprescriptível
Oriunda da infra-astral Substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Na canonização emocionante,
Da dor humana, sou maior que Dante,
- A águia dos latifúndios florentinos!

Sistematizo, soluçando, o Inferno...
E trago em mim, num sincronismo eterno
A fórmula de todos os destinos!
          Em "Minha Finalidade" estamos, então, diante do poeta flagrado em toda a extensão do seu talento. Em cada um dos catorze versos do soneto, encontro um filósofo desnudado e incorrigível, a perscrutar os recônditos de sua alma sofrida, sistematizando o inferno existencial daquele que tem o dom maravilhoso de trazer em si a fórmula sincrônica de todos os destinos por meio de sua arte de coração indomável - a poesia! 
 
REFERÊNCIAS 
 
ANJOS, Augusto dos. EU (poesias completas). Apresentação de Órris Soares. Paraíba, PB: [s.n.], 1920. 232 p. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/augusto_dos_anjos. Acesso em: 22 mai. 2012.
BAUDELAIRE, Charles. Prefácio. In: POE, Edgar Allan. Contos de Imaginação e Mistério. São Paulo: Tordesilhas, 2012. 
PAES, José Paulo. Apresentação. In: POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Seleção, apresentação e tradução José Paulo Paes. 7º reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 269 p.   
POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios. Trad. Oscar Mendes e Milton Amado~; revisão técnica e notas Carmen Vera Cirne Lima; posfácio Charles Baudelaire. 4ª ed. rev. São Paulo: Globo, 2009. 350 p.
                              

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