Costumo dizer que um pesquisador de cultura
erudita no Brasil tem a árdua obrigação de ser um poliglota. Tal necessidade
imperiosa decorre do fato de que os jornais do nosso País não reservam espaço
para a música erudita da mesma maneira que o fazem, de modo permanente, para a música popular,
notadamente para o seu braço mercadológico mais rentável: a cultura
pop.
Darei um exemplo ao leitor. Hoje, na
Ilustrada, caderno de cultura de um dos maiores jornais do Brasil, a
"Folha de São Paulo", há uma crítica sobre o show do grupo britânico de "rock coxinha dor-de-cotovelo" Coldplay. Não há, no
entanto, nenhuma menção ao centenário do erudito Sviatoslav Richter, um dos maiores pianistas
do século XX, que permanece vergonhosamente ignorado pela imprensa nacional supostamente dedicada à cultura. (Aqui cabe destacar que a página do blogue "Metamorfose do Mal" na rede social
Facebook dedicou vários textos a enaltecer os muitos aspectos da relevância artística de Richter,
mas, obviamente, sem absolutamente nenhuma repercussão).
Quando, milagrosamente, algum crítico de arte
aparece a escrever sobre música erudita nos cadernos de cultura, o espaço
conferido ao articulista é mínimo. Quase sempre motivado pela morte de algum
artista famoso, esses textos prestam-se mais a servir de registro obsequioso
de um obituarista do que a revelar uma preocupação, sincera e denodada, com a
difusão da cultura erudita no País.
A impressão que tenho é a de que
os jornais estão a desinteressar-se pela formação crítica do seu público. Cada vez mais, o
leitor é tratado como um personagem estúpido, parido pela equação nefasta de educação de base deficiente,
excesso de programas de televisão e baladas sertanejas de letras monossilábicas numa Faculdade qualquer de beira de
esquina. Ao carpe diem de boteco desse leitor estereotípico,
soma-se a virulência desrespeitosa, manifestada nos comentários, de português
depauperado, cheio de referências deselegantes, que estamos a ver a miúdo em redes sociais e aplicativos de
telemóveis.
Como um leitor desse, dono de uma formação intelectual
nula, consumirá cultura erudita?
Evidentemente, o leitor está a ser
presumido imbecil. Sequer se lhe está a conferir o benefício da dúvida,
o qual poderia, acaso, incentivar a redação de textos sobre música erudita nos
cadernos de cultura. Mas o interesse dos jornais da nossa República não é
instigar a intelectualidade do leitor estupidificado. Querem apenas dar aquilo que
ele (o inculto) quer consumir, isto é, informações rápidas, superficiais e sobre os temas de sempre: violência policial, futebol e mulheres desnudas. Se o leitor faz gosto na consumição de lixo cultural,
daremos a ele um lixão inteiro. Eis a lógica pela qual os jornais tentam, a
duras penas, garantir uma vendagem mínima e sobreviver em um mercado no qual a
tecnologia está a tornar, paulatinamente, o papel obsoleto. Lixo cultural, sexo e
sangue: é o que vende; é o que o leitor quer; é o que vamos dar.
Diante desse triste panorama, só resta ao
cultor da música erudita socorrer-se de jornais alienígenas. Nos Estados Unidos
e na Europa, felizmente, ainda se está a reservar espaço nos jornais para a música erudita, mesmo diante do predomínio quase absoluto do gênero pop junto às massas. Nos cadernos de cultura do
Brasil, por outro lado, esse prestígio permanente à música erudita - inclusive à música erudita brasileira - é praticamente inexistente.
E por que estou a
escrever sobre isso?
Fi-lo por uma razão simples: quis justificar os motivos pelos quais, inda muito cedo, minha paixão pela
cultura erudita guiou-me ao estudo de distintos idiomas estrangeiros. Ou
aprendia a ler em línguas estranhas ao meu português nativo ou jamais
atingiria um nível de conhecimento profundo sobre a música erudita que tanto
amo e que é parte inapelável do meu ser-no-mundo.
Foi assim que, hoje, numa tarde de
sexta-feira, a aproveitar-me do tempo livre no meu escritório, pus-me
a ler os cadernos de cultura de alguns dos principais jornais da Europa e dos
Estados Unidos. A toda evidência, estava a buscar informações sobre o
cenário erudito europeu. Contudo, antes que pudesse concretizar o
meu propósito, encontro nos jornais estadunidenses várias referências a um
mesmo fato: o desastroso solo de guitarra de Nick Jonas em sua apresentação com
a cantora Kelsea Ballerini durante a premiação da "Academy of Country
Music Awards" neste ano de 2016.
Não obstante nunca tivesse ouvido falar de
Kelsea Ballerini e Nick Jonas, fui tomado de assalto pela curiosidade. Não demorou e eu estava a assistir ao
vídeo indicado do tão criticado solo de guitarra. Afinal, o crítico não pode ser empedernido. Muita vez, ao descer as escadas do salão mais nobre, pode-se achar algo interessante no porão.
De fato, o vídeo estava a revelar uma exibição desastrosa. Num determinado momento da canção, a cantora Kelsea Ballerini cede seu espaço; apresenta, então, o tal de Nick Jonas, que surge, triunfal, dos fundos do palco, a brilhar com seu solo de guitarra. Pelo menos era o que se tinha planejado. Mas o tiro saiu pela culatra. Não se viu brilhar a estrela de Jonas, senão a sua mediocridade absurda, a demonstrar um amadorismo técnico que, de tão grotesco, chega a ser risível. Notoriamente humilhado pelos erros que cometeu, ele salta, como um canguru, em direção à loira estonteante de vestido azul. Desejoso de recuperar a sua autoestima combalida, passa a tocar uns acordes quadrados. Vem a cereja do bolo: Nick começa a cantar. E, ao fazê-lo, consegue ser ainda mais desafinado que a guitarra que segura. Numa palavra: um desastre total.
De fato, o vídeo estava a revelar uma exibição desastrosa. Num determinado momento da canção, a cantora Kelsea Ballerini cede seu espaço; apresenta, então, o tal de Nick Jonas, que surge, triunfal, dos fundos do palco, a brilhar com seu solo de guitarra. Pelo menos era o que se tinha planejado. Mas o tiro saiu pela culatra. Não se viu brilhar a estrela de Jonas, senão a sua mediocridade absurda, a demonstrar um amadorismo técnico que, de tão grotesco, chega a ser risível. Notoriamente humilhado pelos erros que cometeu, ele salta, como um canguru, em direção à loira estonteante de vestido azul. Desejoso de recuperar a sua autoestima combalida, passa a tocar uns acordes quadrados. Vem a cereja do bolo: Nick começa a cantar. E, ao fazê-lo, consegue ser ainda mais desafinado que a guitarra que segura. Numa palavra: um desastre total.
Após ver o vídeo do solo de guitarra
vexaminoso, pus-me a refletir sobre esse episódio. Com tristeza profunda,
concluí que o nível de imbecilidade do público atingiu um estágio tão grande
que a indústria cultural sequer se ocupa de fabricar ídolos pop com um mínimo
de talento musical ou profissionalismo. Se Nick Jonas fosse um amador, poderíamos desculpá-lo pela sua falta de técnica. Mas, segundo apurei em rápida consulta ao
Google, o jovem guitarrista é um profissional da música pop; ex-integrante dos Jonas Brothers - uma boy band de grande sucesso no ano de 2008, que produziu discos descartáveis, que duraram tempo suficiente para que suas fãs adolescentes
histéricas crescessem e percebessem o quão vergonhoso era cultuar aquilo na idade adulta. Como um sujeito desses, que toca e canta tão
mal, pode ocupar um papel de destaque na indústria cultural? Quantos outros
músicos, infinitamente mais talentosos, estão desempregados, ao passo que um
Nick Jonas está a receber milhões sem sequer ser capaz de executar um solinho
de meia dúzia de notas? Como uma premiação importante da música country, mesmo
para os padrões nada exigentes do mundo pop, admite tamanho amadorismo?
São perguntas de resposta difícil para o cultor da música erudita, acostumado à excelência técnica e extremo profissionalismo dos artista que admira em salas de concerto. Ou alguém acha que, no meio erudito,
seria possível um músico profissional subir ao palco e tocar impunemente, de maneira
errática, a "Sonata nº 29 em Si bemol maior" (Op. 106), de Beethoven?
Até poderia fazê-lo, mas seu despreparo custar-lhe-ia sua reputação; uma carreira! Veria sua ruína, a sucumbir diante da "Große Sonate für das
Hammerklavier" do genial compositor alemão.
Pois o solinho desastroso de Nick Jonas, para além
da vergonha pessoal, já eternizada em diversas piadas pelos utentes zombeteiros da internet, está a demonstrar o quão baixo encontra-se o nível da música
pop. Para ser celebridade na indústria do entretenimento de massas, não se
está a cobrar um mínimo de talento. A mim me parece que sequer se está a exigir
o profissionalismo mais básico por parte dos músicos, que me dão a impressão de que sobem ao palco e tocam
de qualquer jeito para uma plateia imbecilizada e anestesiada, disposta a
aplaudir acriticamente qualquer porcalhada que se faça.
Ou talvez eu esteja a ser demasiado exigente
em um mundo onde a cultura mediocrizada venceu. Quem sabe, meu caro leitor, este
escritor pudesse abandonar a sua ranhetice e dar um desconto ao Nick Jonas, não é mesmo? Ele
é jovem. Ainda tem tempo de ir para a escola de música e aprender a tocar, de
maneira decente, seu instrumento. Ou quem sabe eu viesse a valer-me da minha
formação como advogado e fizesse, de modo jocoso, a defesa do jovem
acusado perante o tribunal da crítica.
Nesse último caso, à acusação de amadorismo e
antiprofissionalismo flagrantes de um músico que não se preparou a contento
para tocar seu instrumento, eu oporia um argumento irrefutável, que eu chamaria no tribunal de
"efeito hipnotizante das pernas da Kelsea Ballerini". Como alguém
pode se concentrar nas notas musicais diante de tão belas pernas? Quem, ao
subir ao palco e deparar-se com as pernas longilíneas de Kelsea Ballerini, não
esqueceria as notas do seu solo de guitarra? Quem resistiria a uma rápida
olhadela para a beldade loira e delgada? Quem seria capaz de condenar o coitado do Nick Jonas nessas circunstâncias tão adversas? Quem, Excelências? Quem?
Modestamente, amigo leitor, diante do tribunal da
crítica, a valer-me do argumento que designei de "efeito hipnotizante das pernas da Kelsea
Ballerini", acho que Nick Jonas seria absolvido. É a única maneira que vislumbro para justificar o falhanço do rapaz.
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