quarta-feira, 22 de abril de 2015

Einstein vira Flesch e grava Mozart: o curioso "hoax" de música erudita na internet


Hoje uma das poucas pessoas que me são próximas nesta vida, sabedora da minha paixão pela música erudita como pela ciência, enviou-me, via aplicativo para telemóvel denominado “whatsapp”, o link para um vídeo musical no Youtube. A pessoa dizia-se maravilhada; apontava que eu haveria de maravilhar-me com aquilo também.

Intrigado, pus-me a investigar.

Acesso o link. Ponho-me diante da suposta maravilha: o registro sonoro daquela que seria a única gravação conhecida de Albert Einstein enquanto violinista. Ouço-a. Estou atento aos detalhes da execução. Deixo-me surpreender provisoriamente pela sua notável qualidade. Malgrado o som deficiente, prejudicado por certo pela baixa qualidade da gravação, tenho consciência de que ali está um violinista de talento indiscutível. Seria mesmo Albert Einstein?

A resposta é não. Dizê-lo custou-me mais que perceber a farsa. Ao assistir ao vídeo, deu-me pena da pessoa que mo enviou. Ela o fez de boa-fé. Decerto supôs que sou um cultor da música erudita (suposição correta) e que, assim agindo, impressionar-me-ia de maneira positiva. Não funcionou. Após ouvir a gravação, notei tratar-se de mais um embuste. Ou, para usar do conhecido jargão da internet, um hoax.

Albert Einstein empunha seu violino.
 
É notória a ligação de Albert Einstein com a música. Nascido na Alemanha, país onde a educação musical é acessível e a música erudita é valorizada como patrimônio cultural do povo germânico (quem já teve o privilégio de frequentar o circuito erudito da Alemanha sabe do que estou a falar), o físico alemão teve aulas de violino. É sabido que tocava o instrumento. No entanto, não há registro de que tenha deixado gravação conhecida. Nem poderia fazê-lo, pois ele próprio se considerava um mero "músico amador", e os contemporâneos que o viram tocar apontavam-no como um violinista claudicante, de nível técnico medíocre. Por isso, tornou-se fácil intuicionar que o vídeo do Youtube é falso.

Na verdade, qualquer ouvinte experiente de música erudita perceberia que, dado o apuro técnico com que a peça foi executada, o seu registro jamais poderia ser creditado a um músico amador. A gravação do “Andantino sostenuto e cantabile”, segundo andamento da Sonata em Si bemol maior (K. 378), de W. A. Mozart, esbanja técnica. Percebe-se o domínio seguro do arco na inflexão das notas na escala. Há cor e sentimento. Numa palavra: só poderia ser mesmo obra de músico profissional! E dos bons!


O violinista húngaro Carl Flesch (1873-1944).
Aqui cabe um parêntese: quando eu falo de “profissionalismo” em sede de música erudita, o referencial do qual me valho não é o juízo vulgar, comumente associado à ideia do sujeito que “vive de música”. Esta é uma acepção corrente na música popular, sobretudo na música pop, cujo nível de qualidade é quase sempre baixíssimo, a engendrar um terreno fértil para o artista picaresco, que, se apresenta o domínio de meia dúzia de acordes do dicionário básico, logo passa a ser idolatrado pelo fã idiotizado, sem pudores em tachar de “gênio da música” o ídolo de fim de semana, cuja obra musical dura, o mais das vezes, uma temporada – ou, como se quer no Brasil, o “período do carnaval”. À parte a patifaria da arte popularesca, a música erudita erige o patamar de profissionalismo a um grau de excelência; com efeito, pressupõe-se alguém que dedicou toda sua vida aos estudos musicais. Só assim é possível atingir o nível técnico elevadíssimo que está na raiz daquilo que se pode considerar um “músico erudito profissional”.

Sendo assim, diante da gravação atribuída a Einstein no Youtube, outra não poderia ser minha reação que não fosse a do sobressalto perante a ingenuidade do ouvinte comum. Eis a sensação imediata que tive. Em seguida, impulsionado pelo hoax faceto, flagrei-me a matutar: “Se Einstein tivesse sido capaz de tocar violino nesse nível técnico, ele não só não teria desenvolvido a Teoria da Relatividade, pilar da Física Moderna, como sequer teria se tornado cientista. Tivesse Einstein tanto talento musical, o mais provável é que se tivesse tornado violinista e seguido carreira na música como concertista”. Na verdade, a gravação pertence ao célebre violinista Carl Flesch (1873-1944), renomeado professor húngaro pelo sistema de estudo de escalas que desenvolveu, e foi resgatada pelo selo britânico "Symposium Records", quando do lançamento das suas "Historical Recordings". As gravações de Flesch são datadas de 1905 a 1936.


 
Então fica a sugestão, meu caro leitor: da próxima vez que alguém lhe apontar tal ou qual registro sonoro, atribuindo-a a algum personagem famoso da história, cumpre ter cautela, para não se decepcionar. Mais cautela ainda se se tratar de música erudita, que, no nosso mundo de majoritário baixo nível cultural, é arte para poucos ouvidos exigentes e para muito poucos musicistas executarem a contento.     

Superado esse infortúnio, ao menos posso dizer que a gravação sugerida me permitiu ouvir boa música pelo telemóvel. A sonata para violino em Si bemol maior, de Mozart, é linda, em que pese não tenha sido o cientista Albert Einstein quem a gravou. Acrescento que não deixa de ser curioso – e isto é o mais divertido – saber que alguém deu-se ao trabalho de criar, em meio a tantas estupidezes na forma de hoax que se espalham pela internet, um embuste dedicado à música erudita e a um personagem conhecido do mundo científico. Infelizmente, é uma fraude que sucumbe com facilidade diante dos ouvidos apurados dum ouvinte erudito mais experiente.  
 

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