terça-feira, 18 de março de 2014

O HABITANTE SOLITÁRIO DE UMA TERRA DE NINGUÉM: ou a apologia de Masha Marshon contra a sociedade de baixo nível cultural


Foi ano passado que, caminhando pela vizinhança do conjunto residencial onde moro, flagrei crianças a ser instruídas por suas genitoras e cuidadoras a cantar. A intenção é nobre, pois, quanto mais precoce for a iniciação do infante na educação artística, tanto maiores as chances de ele vir a se tornar um verdadeiro artista (ou, pelo menos, um adulto com bom gosto para arte, que se recusa a aceitar qualquer porcaria que lhe vendem sem o mínimo de qualidade). Seria uma cena prosaica, portanto, não fosse o fato de que as crianças eram "educadas" ao aprendizado do funk "Piradinha" (que eu soube depois ser tema de novela global). "Como um pai ou mãe é capaz de ensinar ao filho o 'kitsch' sem nenhum pudor?", refleti tristemente. "Na minha infância", recordei-me, "eu cantava 'Aquarela' do Toquinho, 'A Casa' de Vinícius de Moraes". Em que ponto da história a inteligência brasileira morreu? Em que momento da nossa sociedade o baixo nível cultural alastrou-se mais que a peste bubônica pela Europa Medieval?
 
Foi tomado por essas reflexões, incontornavelmente acabrunhado por uma sombra dostoievskiana, espécie de mau agouro de quem muita vez se sente sozinho lutando contra a mediocridade imperante no campo da cultura, que tornei a casa. Estava triste. Ver pais supliciarem os próprios filhos com cousas do tipo de "Piradinha" não é fácil. É uma tortura psicológica das mais covardes, que ataca justamente aqueles que, não tendo o necessário discernimento para distinguir o "kitsch" da arte, caem na armadilha da vulgaridade e pobreza cultural. Tanto pior ser uma criança hoje. É possível mesmo que esses pais cruéis filmem seus rebentos a dançar coreografias constrangedoras, embalados por músicas cujos compositores seriam reprovados em um teste de musicalização em qualquer conservatório sério do mundo. Tudo filmado e documentado para a história em vídeos caseiros compartilhados no Youtube. Dá-me pena dos intelectuais do futuro. Alguns deles terão de conviver com um passado sombrio de superexposição em redes sociais. Alguns deles estarão condenados à humilhação pública perpétua que atende pelo nome engraçado de Google.
 
Eis que me ponho a pensar: que futuro tem uma criança educada num seio familiar assim, isto é, instigada a cantar "Piradinha", "Beijinho no Ombro" e composições vulgares desse nível? Daí surge o papel da escola, que hoje, mais do que nunca, precisa substituir os próprios pais na tarefa hercúlea de proporcionar às crianças o acesso à cultura. Sim, pois quem quiser formar sua bagagem "cultural" pela TV aberta está inevitavelmente condenado a participar do BBB em algum momento da vida adulta e se "eternizar" pateticamente em 15 minutos de fama (uma fama desprezível, a propósito). Preocupa-me pensar que nossa sociedade naturaliza a ofensa aos ouvidos de uma criança, como se ouvir "Piradinha", "Beijinho no Ombro" etc. não causasse dano cerebral num infans. Mas sobretudo me entristece saber que, no futuro, pessoas que apreciam a música erudita continuarão a ser minoria, vistos como "elitistas", "boçais", "preconceituosos", entre outros adjetivos que são comumente atribuídos àqueles que ousam resistir à vulgaridade de uma sociedade mediocrizada, que tem como "modelos de sucesso" panicats e atores globais baladeiros. Uma sociedade em que as pessoas pagam milhares de reais por um abadá, a fim de ver um trio elétrico passar com um sujeito cantando "Lepo, Lepo", mas que não se envergonha de nunca ter frequentado uma sala de concerto na vida. Que cultura é essa? Que sociedade é essa? Não sem razão o crítico literário Luiz Costa Lima já se definiu em entrevista como "o habitante solitário de uma terra de ninguém".
 
Curiosamente, as pessoas que tacham os amantes da cultura erudita de "preconceituosos", dado o fato de estes não se conformarem com a miséria cultural humana, são as mesmas que habitualmente escrevem críticas ao meu trabalho. A censura, obviamente, repete o discurso estereotípico: sou preconceituoso, sou elitista. E, no entanto, onde está o elitismo da música erudita? Vai-se falar em "elitismo" no Brasil, onde tal estilo só sobrevive à custa do patrocínio do Estado? Lamento dizer, mas já perdi a conta de quantos concertos gratuitos assisti com a sala esvaziada. Onde está o público? Simples: está a pagar milhares de reais num abadá de carnaval ou enfurnado numa casa de shows, a ver uma dupla sertaneja "universitária" cantar refrães "ricos" em monossílabos ininteligíveis. Não há problema nisso, reafirmo. O mau gosto (e o mau emprego do dinheiro) vai de cada um. Mas não é aceitável que tais pessoas venham a público invocar o qualificativo de "arte" para o lixo que consomem, acusando de "preconceituoso" quem simplesmente sabe diferenciar, dentro da Filosofia, os campos da democracia e da estética. É democrático deixar que todos toquem e cantem e ouçam o que quiserem. Isso é política. Mas aceitar que a palavra "artista" pode ser usada para designar indistintamente Heitor Villa-Lobos e Valesca Popozuda é um descalabro. Isso é estética. E é a este último campo que dedico minhas pesquisas e ensaios.   
 
Pois bem. Aos meus críticos, sinto dizer, mas hei de continuar a arrostar a mediocridade. Tal enfrentamento é a missão precípua do crítico de cultura (seja literário, musical, de cinema etc.). Um crítico que sucumbir ao kitsch, tratando-o com condescendência, frauda a confiança do seu público leitor. E um crítico precisa ter coragem. A mesma coragem de que se valeu o poeta austríaco Georg Trakl ao versificar os traumas de guerra no poema em prosa "Verwandlung des Bösen" ("Metamorfose do Mal"), o seu genial tour de force poético que é homenageado no título deste blogue. Porque no dia em que qualquer porcaria que alguém fizer puder receber o selo de "arte", sob o argumento pálido de que "gosto não se discute", então não só se terá esvaziado o papel da crítica (o que significa desprezar toda a obra de Otto Maria Carpeaux, George Steiner, Edmund Wilson, Harold Bloom, Álvaro Lins, Alfredo Bosi, Antônio Cândido, Pauline Kael, Susan Sontag, Paulo Ronái, Benedito Nunes, Jorge Luis Borges, D. H. Lawrence, Ernesto Sábato, Truman Capote, Alex Ross etc) como ainda a inteligência humana, tal qual a conhecemos, terá regredido, quiçá desaparecido. Voltaremos às cavernas! Ecce Homo! O homem de neandertal! 
 
Apesar disso, não faço gosto do tom derrotista. Um crítico (no limite também um filósofo) não se pode deixar abater, não obstante a solidão do seu ofício. A despeito desses maus exemplos da minha vizinhança (e olhem que moro num conjunto cujos habitantes estão muito longe de pessoas que se poderia alegar não terem tido oportunidade de acesso à cultura por falta de recursos financeiros; antes o contrário, há algumas pessoas até bastante abastadas), acredito que ainda há esperança no mundo. Existem crianças que, vocacionadas para a arte, podem produzir maravilhas, contanto que sejam instruídas de maneira adequada na sua educação artística. São crianças capazes de protagonizar momentos extáticos de beleza. É o caso da jovem violinista israelense Masha Marshon, que, com apenas 11 anos de idade, surpreendeu o mundo (ou, pelo menos, quem acompanha o cenário erudito no mundo) ao entregar uma belíssima interpretação de "Méditation de Thaïs", interlúdio que integra a ópera "Thaïs", escrita em três atos pelo francês Jules Massenet no século XIX. Compartilho, dessa feita, esse sublime momento de um talento infantil promissor. E que o exemplo de Marsha Marshon seja seguido. Vê-la tocar dessa maneira é o que me dá a esperança de um novo amanhã - o póstero onde o belo substituirá a fealdade e os amantes da cultura erudita não mais se sentirão sozinhos num barco a singrar um mar sangrento e ameaçador de vulgaridade, mediocridade e, para falar com estes nossos tempos internéticos, de "veneno digital".
 
Viva o talento de Masha Marshon!  
 

6 comentários:

  1. Obrigado, RT, por compartilhar conosco sua visão de mundo e nos proporcionar esse tipo de reflexão.

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    1. Eu que agradeço a visita ao blog, Henrique. Hoje posso dizer que existe pelo menos um leitor que comenta por aqui (cousa raríssima, especialmente quando não é para ofender-me). Então obrigado por prestigiares este humilde blog de jornalismo cultural.

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  2. Rafael Teodoro, valeu ou obrigado por compartilhar a pura verdade do nosso país, vc me ajudou a ficar mais com a mente mais forte a Cultura de verdade, vc é o cara!

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    1. Obrigado, amigo Eder Mauro Neves, pelo elogio cortês ao trabalho que desenvolvo no plano do jornalismo cultural no blog Metamorfose do Mal. É gratificante tomar partido do contentamento do leitor, sobretudo quando tal "feedback" é, ao fim e ao cabo, o único retorno pretendido com este projeto. Portanto, eu que agradeço o comentário. Abraços!

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  3. Concordo tristemente com a nossa vergonha digital brasileira...
    Como amante da cultura erudita, só tenho a agradecer essa bela oportunidade de ouvir essa bela e talentosa criança (quem sabe uma encarnação nobre para nos trazer esperanças).
    Teresa Amorim - RJ

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    1. Obrigado pelo comentário, minha cara Teresa Amorim. Deixa-me contente saber que és uma amante da cultura erudita. Por certo, uma pessoa de bom gosto artístico. Sê sempre bem-vinda ao blogue.

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