sexta-feira, 16 de agosto de 2013

"SAIR, PARA NÃO ROUBAR": mais um episódio de humor "nonsense" na política brasileira

Márcio Faber, ex-prefeito de Paranapanema/SP. Foto: Divulgação.

Tinha dois rumos a seguir: ou voltava a trabalhar
e ganhava meu dinheiro honestamente,
ou tirava da prefeitura.
Preferi sair a roubar.
Márcio Faber, ex-prefeito de Paranapanema/SP.
 
Sempre defendi a democracia como regime de governo. Sempre entendi que é preferível um Parlamento problemático a uma ditatura funcional. Mas há certas situações que, de tão constrangedoras, por vezes me levam a duvidar da minha convicção inarredável no regime democrático.

Foi assim que me senti quando tomei partido, pelos jornais, da renúncia do então prefeito de Paranapanema, município do interior de São Paulo. Numa decisão surpreendente, Márcio Faber deixou o cargo no começo do mês de agosto. Surpreendente não pelo ato em si (como sabemos, renúncias fazem parte do jogo político), mas pelos motivos que levaram o alcaide ao gesto extremo de abdicar do poder. Que teria acontecido? Escândalo sexual? Ameaça de morte? Flagrante de corrupção? Dinheiro na cueca? Certamente o eleitor brasileiro, habituado aos vícios da política, teria mil razões infames a especular, mil conjeturas a fazer. Mas eis que o prefeito vem a público e anuncia: "Saí para não roubar".

É isto mesmo, caro leitor: o prefeito, ao renunciar, alegou que "preferiu sair a roubar". Ele declarou à imprensa que sua decisão foi motivada pelo baixo salário do cargo (5,8 mil reais). Como antes de ascender à condição de chefe do Executivo municipal Faber atuava como um bem sucedido médico ginecologista na região, o que lhe rendia um salário mensal em torno de trinta mil reais, considerou que o salário de prefeito não lhe permitiria manter o seu padrão de vida. Por isso, veio a público justificar a grandeza do seu gesto: "Preferi pedir para sair a roubar dinheiro dos cofres públicos", alegou aos jornais. Em entrevista televisiva, foi ainda mais incisivo na sua sinceridade de homem público corruptível: "Tinha dois rumos a seguir: ou voltava a trabalhar e ganhava meu dinheiro honestamente, ou tirava da prefeitura". Palmas, por favor.     

Sinceridade ética

Mas o pior do episódio ainda estava por vir. Conforme apurei pela leitura de comentários em jornais online e redes sociais, boa parte do público elogiou a atitude do ex-prefeito. "Ele é um homem muito ético", um sujeito escreveu. "Sabia que se ficasse teria de roubar, por isso preferiu sair antes de fazer isso". Outro disparou: "Preferiu renunciar a roubar o dinheiro da prefeitura: se essa moda pega, a sociedade seria mais beneficiada". Com efeito, não foram poucos os comentários elogiosos que li a respeito da "sinceridade ética" do prefeito.  

Ora, eu pergunto: que espécie de sinceridade elogiável é essa, segundo a qual o prefeito renuncia "para não roubar"? E desde quando salário baixo é justificativa moral aceitável para "roubar"? Que homem público é esse que age como se o dinheiro do povo fosse uma barra de chocolate que, diante da porta aberta da geladeira, o chocólatra não resiste e põe-se a devorá-la? Seria alguma espécie de adúltero compulsivo que, ao ver mulher alheia, não hesita em flertar, sob a alegação de "instinto masculino"? Por acaso desconhecia a remuneração do cargo quando se candidatou? Os jornais informam então que ele tentou aumentar o seu salário, mas a Câmara Municipal negou o pedido. Ah, está explicado. Melhor mesmo sair. Porque se ficasse, aí já sabíamos: ele com certeza ia roubar.    

Nivelando por baixo

Já não bastasse a piada de mau gosto que é alguém vir a público dizer que renuncia ao cargo por ser volúvel, do tipo corruptível, ainda há que se considerar o mais absoluto desrespeito de Faber para com seu eleitorado. Sim, pois o ex-prefeito obteve um total de 5.873 votos. E por votos, entenda, amigo leitor: mais de cinco mil pessoas, as quais, se soubessem que estavam a votar num candidato que após sete meses renunciaria a seu mandato por razões exclusivamente financeiras, decerto teriam optado por outro nome no pleito. Afinal, a abstrair as condições sociológicas, o voto representa - no limite filosófico-democrático - a expressão de um gesto de confiança. Quem vota em alguém, vota porque confia naquela candidatura, nas suas propostas, na esperança que ela encerra de uma boa gestão da res publica. Não me parece de nenhuma maneira justa, assim, a postura daquele que, uma vez eleito, ignora essa confiança, dando de ombros para o eleitor. E tal é exatamente o que ocorre quando o prefeito, após sete meses de mandato, decide renunciar, insatisfeito com o baixo salário. Toda a confiança depositada naquele candidato é posta a perder, e por motivação das mais inconsistentes.     
 
Assim, a impressão que fica é a de que não só a política brasileira encontra-se atolada num humor nonsense, mas que o próprio eleitor, ao elogiar a renúncia do prefeito insatisfeito com o baixo salário, vai "nivelando por baixo" seu juízo crítico, a satisfazer-se com o "menos pior". Porque o "sair, para não roubar" não passa de uma reinvenção do velho "rouba, mas faz": tanto em um quanto em outro caso estamos diante de condutas reprováveis, inadmissíveis na pessoa de um gestor público, mas que começam a ser socialmente toleradas por razões estultas. No "sair, para não roubar" tem-se um administrador vítima do determinismo ambiental, um corrupto em potência, um oportunista que teme a chance de que seu lado sombrio venha de chofre a se manifestar: "Se eu ficar, não adianta: com esse baixo salário, vou ter de roubar!" A ocasião faz o ladrão. Já no velho "rouba, mas faz", atravessa-se o umbral da falta de vergonha na cara; aqui o administrador é um criminoso assumido, um bandido infiltrado no Estado, mas que, para compensar cada centavo que põe no bolso, executa uma ou outra obra. "Tem gente que já é eleito pensando em roubar. Eu não. Eu roubo, ok, mas eu faço também alguma coisa pelo povo, né? Pior o cara que só fica roubando".

Inovação é agora
Diante de todo esse humor nonsense, para o qual o político brasileiro apresenta um talento inato (ou seria apenas cara de pau?), fica difícil sustentar convicções inarredáveis. Mas a democracia há de sobreviver; tem de sobreviver. O que não dá para aceitar é que o desapontamento do eleitor com a política leve-o a perder seu juízo crítico, nivelando-o "por baixo". Nesse sentido, o argumento do "sair, para não roubar" não é demonstração elogiável de desapego nem de ética. Pelo contrário, é ardil tão censurável quanto o "rouba, mas faz" e quaisquer outros bordões que visem a ridicularizar a vida pública, a ignorar a imensa responsabilidade que o administrador estatal - seja um prefeito, um governador ou um presidente - possui diante do mandato que lhe é outorgado pelo povo.

Contudo, justiça seja feita: pelo menos em uma coisa o ex-prefeito Márcio Faber merece ser aplaudido. Ao propor o argumento do "sair, para não roubar", ele inova o riquíssimo anedotário de "desculpas esfarrapadas" da política brasileira. E nisso ninguém poderá tachá-lo de não ter feito jus ao nome da coligação que o elegeu em Paranapanema: "Inovação é agora". Uma inovação e tanto, caro leitor.      

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