sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A LAVOURA NÃO É ARCAICA, É SILENCIOSA: o exemplo de desprendimento e liberdade de Raduan Nassar

O escritor e agricultor Raduan Nassar em foto tirada em 2012.

(...) fui confessando e recolhendo nas palavras
o licor inútil que eu filtrava, mas que doce amargura dizer as coisas,
traçando num quadro de silêncio a simetria dos canteiros,
a sinuosidade dos caminhos de pedra no meio da relva,
fincando as estacas de eucalipto dos viveiros,
abrindo com mãos cavas a boca das olarias,
erguendo em prumo as paredes úmidas das esterqueiras,
e nesse silêncio esquadrinhando em harmonia,
cheirando a vinho, cheirando a estrume,
compor aí o tempo, pacientemente.
Raduan Nassar, "Lavoura arcaica".

O enigma do escritor que abandonou a literatura

Há algum tempo atrás uma notícia chamou-me a atenção. Ela dava conta de que o escritor brasileiro Raduan Nassar doara sua fazenda, situada entre os municípios de Buri e Campina do Monte Alegre, no Estado de São Paulo, para a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). O detalhe é que a fazenda, segundo alguns especialistas em imóveis rurais, em condições normais de venda no mercado, poderia ser arrematada por até vinte milhões de reais. Isto mesmo: vinte milhões! O seu proprietário, no entanto, não exigiu um centavo sequer: doou-a de bom grado a uma instituição de ensino. E doação, até por definição jurídica, significa negócio jurídico gratuito.
  
A atitude de Raduan Nassar pareceu mais um ato enigmático na biografia de um escritor marcado por decisões aparentemente inexplicáveis. Como encontrar, por exemplo, uma razão que justifique um autor, no auge do sucesso, abandonar, sem maiores explicações, a literatura? Pois foi exatamente o que Raduan fez após lançar as novelas Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978) - ambas recebidas com entusiasmo pela crítica. De chofre, sem mais nem menos, no começo da década de 1980, ele simplesmente decidiu parar de escrever. E parou.  

A decisão do escritor brasileiro era tão absurdamente incompreensível que houve mesmo quem supusesse tratar-se de uma bravata. Ela voltaria em pouco tempo, ânimo renovado, rancor arrefecido. Seu retorno seria triunfal.

Mas Raduan Nassar não voltou. Parou de escrever. Parou de publicar. Para desespero dos cultores da boa literatura, ele havia largado definitivamente o ofício de escritor. Queria mesmo era se dedicar à agricultura.

Por isso, paralelamente a essa despedida súbita do meio literário - que, por sinal, oficialmente nunca ocorreu -, o escritor investiu dinheiro e comprou uma fazenda: Lagoa dos Sinos, localizada no interior de São Paulo. Foi lá que Raduan Nassar passou os últimos 20 anos, recluso, dedicando-se a atividades agropastoris. Criou galinhas, pasceu o gado, plantou arroz, cultivou soja e milho. Amargou prejuízos. Com o tempo e a perseverança, todavia, veio o sucesso. Uma vida dedicada à terra e sua propriedade o tornara um homem rico. Vinte milhões. Eis o valor.      

O enigma do agricultor que abandonou a agricultura

De repente, nova reviravolta: Raduan Nassar doa sua fazenda. Como que a repetir o passado, o escritor-agricultor, célebre por sua curta e habilidosa carreira literária, mas também por seus enigmas, torna a impressionar a todos ao desfazer-se de seu patrimônio milionário - a fazenda à qual dedicara o trabalho de toda uma vida.  

Para doar Lagoa dos Sinos, Raduan fez algumas exigências à donatária. Exigiu que a universidade instalasse cursos de graduação na fazenda; queria que ela se tornasse um campus. Exigiu também que, quando da assinatura do contrato de doação, não houvesse ninguém da imprensa. Nem uma câmera, nem um repórter, ninguém do público por perto: Raduan queria doar sua lavoura em silêncio. 

No meado  de 2012, o escritor assinou a papelada e a burocracia atestou definitivamente: a fazenda Lagoa dos Sinos passou para o patrimônio da UFSCAR. Raduan Nassar deixou, assim, um imóvel milionário para trás. Deixou, acima de tudo, a terra à qual dedicara sua vida de agricultor, onde fizera vicejar a soja, onde colhera o milho. Raduan abandonou a lavoura como abandonou a literatura.   
    
O homem que amou sua lavoura

Quando tomei partido da decisão de Raduan, pus-me incontinênti a pensar sobre o quão significativo é seu exemplo hodiernamente. Sob a égide do ímpeto da ganância, quantos seriam capazes de desfazer-se de uma fazenda tão valiosa? Estimulados a acreditar que enriquecer é o único sentido possível que se pode ter na vida, quem ousaria abdicar da própria fortuna, de um imóvel milionário, assim, de repente? E a crença patrimonialista na "família brasileira", que faz com que cargos públicos sejam loteados entre parentes, que o erário seja repartido como um bolo de aniversário entre poucos ilustres convidados? Raduan não concorda? Por que não doou a fazenda aos irmãos? Por quê?       

Perguntas como essas nos conduzem à perplexidade proporcionalmente à mesquinhez de nossas existências. Apegados em demasia ao poder do dinheiro, tornamo-nos sovinas com a própria vida. Somos incapazes de perceber a lição de Raduan: o desprendimento é parte do ser humano, da tão propalada liberdade que almejamos. Ser livre é tomar as decisões de peito aberto, de coração sincero, mesmo quando elas se afigurem incompreensíveis. Ser livre é nadar contra a corrente, é trocar os prestigiosos holofotes do mundo literário pelos raios do sol quente numa manhã comum, um chapéu de palha sobre a cabeça, uma enxada a capinar a terra, o mero bruxuleio da luz de uma lâmpada a iluminar a plantação. Ser livre é dedicar-se ao trabalho na fazenda só pelo prazer de vê-la crescer, ter sucesso, ser produtiva. E depois a doar a uma universidade, sem pensar em quantias, em somas, em números - ou no patrimônio da família. Doar a terra que tanto cultivou para os outros, para o próximo, o seu semelhante. Se os que irão se beneficiar não são parentes, tampouco são desconhecidos:  são estudantes que hão de aprender na terra o seu ofício, para que nela trabalhem, como o escritor trabalhou, para que a amem - como Raduan amou sua lavoura.      

Um exemplo de liberdade

Uma decisão como a de Raduan, em um mundo de aparências e falsas caridades, poderia muio bem servir para evidenciar seu comportamente generoso. À reputação de grande artista da palavra somar-se-ia a de filantropo benemérito, respeitável pela sua biografia como pela sua literatura. Mas, quando da celebração do negócio, o doador não quis a presença da imprensa, dos jornais, da TV, de ninguém. E o que significa isso? Significa que o escritor doou sua fazenda não para ser visto, observado, admirado ou querido. Doou-a exclusivamente por sua consciência altruísta, por desejar retribuir com educação ao povo da terra que o acolheu, ou por uma outra razão qualquer indecifrável, digna de um grande enigmatista.

Em sua curtíssima carreira literária, naquele que é seu livro mais conhecido (a novela Lavoura arcaica), Raduan Nassar (2009, p. 11-12) escreveu: 

Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? (meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo).

Tal qual André, a personagem que protagoniza a novela e narra as consequências de seu asfastamento da propriedade rural da família, Raduan Nassar também está a empreender uma fuga. Foge do estereótipo cúpido, tão comum em nossos dias, para dedicar-se ao exame consciencioso da própria vida. Na solidão do campo, a contrario sensu, encontra a temperança. É mais humano no meio de bois e galinhas, no meio do milharal e da sojicultura. Aventura-se na terra não porque precisa, mas porque a ama e porque essa é a sua decisão. A sua decisão personalíssima.  

Enquanto em Lavoura arcaica André - o personagem - foge da vida rural, para contrapor-se à crença excessivamente rigorosa do pai na ordem familiar, na vida real, Raduan - o homem - regressa ao campo sem ceticismos: troca os livros pelo arado, a biblioteca pelo trator, as palavras pelos grãos de sementes. Deixa a cidade e as letras pela agricultura. Essa é a sua decisão, a decisão de um homem livre. Então, muitos anos depois, doa sua fazenda. Vai arar outros campos, lavrar novas terras. Se sulcar o mesmo chão já não o faz livre, sua fuga já não se justifica. Vai-se embora. Procura outro caminho, uma nova lavoura, para amar, semear, cultivar. E o que a todos surpreende como um enigma, para o escritor faz todo o sentido, pois essa é a sua decisão. Nesse sentido, não existe ninguém neste mundo mais livre do que Raduan Nassar.   

REFERÊNCIAS

NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. 3ª ed. rev. pelo autor. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 194 p.

2 comentários:

  1. Esta era a verdadeira filosofia defendida por Tólstoi, desvirtuada por seus sucessores q tornaram o Tolstoianismo uma "anarquia cristã". Raduan Nassar, tal qual o mestre russo, parece q era adepto da verdadeira humildade, aquela condição humana que, derivada de "humus", nos ensina q o contato com a terra é um elemento de resgate da razão humana. Para ambos escritores o q produz dinheiro fomenta o consumismo e afasta o homem de seus propósitos. Só podemos admirar e desejar chegar lá. Belo texto.
    Ana

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